terça-feira, 17 de novembro de 2015

Pacto das Catacumbas: Por uma Igreja fiel ao Espírito de Jesus

           No dia 16 de novembro de 1965, há exatos 50 anos, cerca de 40 Padres conciliares, pouco antes do encerramento do Concílio Vaticano II, celebraram a Eucaristia nas Catacumbas de Domitila, em Roma. Depois da celebração, assinaram um pacto que recebeu o nome de “Pacto das Catacumbas”.  

Qual o significado teológico e espiritual deste Pacto para a vida da Igreja? Não queremos fazer uma análise do Pacto, em suas proposições, mas, para que o mesmo não caia no esquecimento – tentação corrente na Igreja – queremos oferecer algumas provocações necessárias para nossos dias.

            O texto do Pacto, logo abaixo transcrito, revela que seus signatários estavam convencidos da necessidade de conversão ao Espírito de Jesus: Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho...” Antes do Vaticano II, os bispos, salvo exceções, viviam dominados pela “psicologia de príncipes” (expressão do papa Francisco).  

Neste sentido, o Pacto aparece como um convite à conversão do coração e da vida toda a Jesus. Os bispos descobriram que na qualidade de apóstolos de Jesus, pois reivindicam a sucessão apostólica, devem ser como o Mestre: Pobre entre os pobres. Príncipes não são pobres, mas ricos, orgulhosamente vaidosos e entregues aos prazeres e seguranças.

            Viver no estilo dos pobres não é algo fácil em um mundo marcado pela busca incansável da riqueza, do poder e do prestígio. Desde tempos antigos, estes três males tem afetado a vida da Igreja, especialmente os clérigos (padres e bispos, cardeais e papas). Não precisamos explicitar com detalhes a história da Igreja desde a época em que foi reconhecida religião oficial do império romano.  

Os fatos falam por si e nos causam vergonha até os dias de hoje: Uma história marcada pelo apego à opulência e a toda espécie de devassidão. O reconhecimento desse passado sombrio é um passo significativo no caminho da conversão, pois esta não é possível sem o reconhecimento humilde dos pecados e crimes cometidos no passado. Não há arrependimento sem reconhecimento das fraquezas.

            Os bispos que assinaram o Pacto não quiseram somente ficar no reconhecimento das fraquezas: “...colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos...” Quiseram assumir um compromisso perante Deus e toda a Igreja: O compromisso de seres homens pobres entre os pobres, em vista de uma Igreja servidora e pobre. 

Dentre outros brasileiros, Dom Helder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife (PE) foi um dos propositores que assinou o Pacto. Assinou com o testemunho da própria vida, e quem o conheceu de perto viu que, de fato, vivia o estilo de vida dos pobres, residindo, humilde e despojadamente, na sacristia de uma pequena igreja, em Recife, após ter renunciado ao conforto do palácio episcopal.

            O Pacto é um instrumento profético que denuncia a vida luxuosa de inúmeros bispos da Igreja, que viviam e até hoje vivem segundo o “mundanismo espiritual” (outra expressão utilizada pelo papa Francisco). Em que consiste esse mundanismo espiritual na vida dos bispos?  

Consiste naquilo que o Pacto denuncia como pecado contra a vida apostólica: aparência e realidade de riqueza (ouro, prata, roupas caras, paramentos luxuosos, insígnias de matéria preciosa; posse de imóveis e somas de dinheiro em conta pessoal; uso de títulos que signifiquem grandeza e poder; gozo de privilégios e honrarias; preferência pelos ricos e poderosos; distanciamento dos pobres e sofredores; ausência nas lutas por justiça e paz; aposentadorias que envolvem grandes somas; recusa à vivência da colegialidade episcopal; depravação sexual; abuso de poder e autoridade; uso de palácio ou de residências luxuosas; uso de carros luxuosos; entre outros comportamentos que causam escândalo ao povo santo de Deus.

            Bispos verdadeiramente pobres, que aspiram viver como Jesus viveu, não podem aderir a estas condutas e/ou formas de proceder. Não há discurso que convença o povo de que quem assim vive possa agradar a Deus. O Deus e Pai de Jesus se encarnou na periferia do mundo. Na pessoa de Jesus de Nazaré, o bom Deus optou claramente pelos pobres, e esta deve ser a opção da Igreja.

O evangelho de Jesus é muito claro quanto a isto: Seus seguidores devem viver segundo o seu estilo: Pobre e despojado. Com isto, não estamos fazendo apologia à miséria. Jesus não defendeu a miséria, mas a denunciou, assim como denunciou a riqueza. Os discípulos missionários de Jesus precisam ser pessoas pobres, não miseráveis nem ricos. Entendemos como miséria a situação de escassez crônica, da falta do necessário para viver. Por isso, não está de acordo com a vontade do Deus que é fonte da vida em abundância.

            Mesmo após o Vaticano II ter apontado para o caminho da conversão pessoal, estrutural e pastoral, inúmeros clérigos continuaram e até hoje continuam optando pelos ricos e poderosos. Neste sentido, os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, apesar de seus pontos positivos, infelizmente, não ajudaram os clérigos a se converterem a Jesus. A nomeação de bispos fechados às indicações do Vaticano II e aos sinais dos tempos, fizeram com que a Igreja se tornasse cada vez mais uma instituição distante do povo.

A preocupação pelo cumprimento fiel das regras litúrgicas, o devocionismo, o culto à personalidade do papa, a prática de eventos de massa, o rigor disciplinar, as sanções aos teólogos que ousaram evoluir na reflexão sobre a fé, a omissão diante dos abusos sexuais, os acordos firmados com os poderosos deste mundo, a marginalização dos projetos e iniciativas populares, e tantos outros males marcaram mais de três décadas de inverno espiritual na Igreja pós-Conciliar. Neste período, salvo exceções de experiências isoladas e perseguidas, o conservadorismo fez com que o Pacto fosse esquecido. Para os conservadores, o Pacto não é evangélico, mas coisa do comunismo, este entendido como um mal a ser combatido.

            De repente, eis que o colégio cardinalício resolveu permitir que o Espírito trabalhasse na escolha do novo papa e, pela primeira vez na história da Igreja, chega à Diocese de Roma um latino-americano, filho da Argentina e da Companhia de Jesus (Jesuítas). Escandalosamente, um papa sintonizado com o Espírito de Jesus e com o espírito do Vaticano II.  

Ousado, iniciou a reforma da Cúria Romana, sua maior inimiga. Apreciado pelo povo e odiado pelos que vivem apegados ao poder e ao dinheiro, o papa Francisco insiste na continuidade da reforma, apesar dos riscos. Sendo acompanhado pelas preces de toda a Igreja, sob a proteção de Deus, espera-se novos tempos. Mantendo-se fiel à missão recebida, está fazendo jus ao nome escolhido: Franciscus, homem da humildade, da simplicidade e da caridade evangélica, desde Assis, Itália, antes da grande reforma luterana. Para a alegria de muitos e a tristeza de outros, pela primeira vez após o Vaticano II, um papa retoma o Concílio para o bem da Igreja, e as orientações do Pacto para a vida episcopal.

            O que esperar da situação na qual estamos inseridos? A esperança não decepciona porque Deus permanece fiel. À luz do evangelho de Jesus, marcados pelo batismo e auxiliados pela força da Trindade, somos chamados a manter viva a esperança, o amor e a fé. Tanto dentro quanto fora das fronteiras da Igreja, vivemos tempos sombrios, difíceis. Tempos que exigem mulheres e homens fortes, convictos, fieis, alegres, ousados, cheios de amor e fé.

Desastres naturais, atentados terroristas, injustiças de toda espécie, gente sofrendo e morrendo, gritos e lágrimas, indiferença e frieza tem tomado conta do mundo. Apesar disso, os sinais de Ressurreição permanecem vivos. Há muita gente amando em nome de Jesus, construindo, desse modo, o Reino de Deus; livres do desespero, gerador da morte.  

O chamado divino não cessa. Jesus está batendo à porta do nosso coração. Ele quer habitar em nós. Não sejamos omissos. O tempo é de profecia, de graça e salvação. Ai daquele que não enxergar Jesus passar! Mantenhamos as lâmpadas acesas. Deus é amor. A sua presença é certa, peçamos a graça de percebê-la e senti-la. Ele liberta do medo. Ele é vida na liberdade e no amor. Chama-nos, chama-nos, chama-nos... Qual é a nossa resposta?... O Pacto indica o sim generoso, ousado, alegre, manso e confiante.

Tiago de França da Silva
Desde Belo Horizonte – MG, 17 de novembro de 2015.
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PACTO DAS CATACUMBAS (Texto integral)

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

- a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

- a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:

- esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;

- suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

- procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;

- mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.
Ajude-nos Deus a sermos fiéis.


(Catacumba de Domitila, 16 de novembro de 1965)

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