“Agora,
diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e
gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus;
ele é benigno e compassivo, inclinado a perdoar o castigo” (Joel
2, 12).
A
modo de Introdução
Chegamos ao santo e fecundo tempo da Quaresma: Quarenta
dias de caminhada rumo à celebração da Páscoa de Jesus de Nazaré. Tempo de
escuta da palavra de Deus, tempo para acolher o chamado à conversão, tempo de
oração, jejum e solidariedade. É verdade que durante todo o ano somos chamados
a tudo isto, mas, na Quaresma, este chamado nos aparece com mais força. Nossa
reflexão para iniciarmos este tempo favorável quer chamar a atenção para este apelo
à conversão.
O
que significa conversão? Por que precisamos nos converter? Por que temos
dificuldade para mudarmos de vida? Estamos dispostos a trilhar o itinerário
quaresmal, ou vamos mais uma vez adiar a nossa conversão? À luz da profecia de
Joel, no versículo acima mencionado, assim como da palavra de Jesus em Mateus
6, 1 – 6.16 – 18, vamos escutar o que o Espírito está nos revelando nessa hora
difícil de nossa história.
Voltar-se
para Deus, rasgando o coração
Assim como todos
os profetas, Joel se utiliza de uma linguagem apropriada para convidar o povo à
mudança de vida: “...voltai para mim com
todo o vosso coração...” Precisamos entregar o nosso coração a Deus, nosso
bom Pai. Somente Ele é capaz de libertar o nosso coração de nossos apegos, de
tudo aquilo que tende a nos escravizar. Há muitas pessoas que estão com o
coração aprisionado, amarrado aos bens materiais e às ilusões da vida. Como
pode Deus habitar neste coração? A presença de Deus quebra as prisões,
libertando das ilusões; mas este Deus pede para entrar. Ele não invade o coração
de ninguém. Ele pede para ser acolhido. Sua vontade é amar a pessoa, habitando
em seu coração.
Eis uma prece que todo cristão deveria fazer: Ó Deus, meu amado Senhor, rasgo o meu
coração diante de Ti. Sinto-me atribulado, cercado pelos lobos ferozes desta
vida. Já não dou conta de viver sem Ti. Tu és a razão do meu viver. Por isso,
peço-Te, em nome de Jesus, vem fazer morada em meu coração. Quero sentir a Tua
presença. Tu és a minha segurança, a força que me faz viver. Vem, com Jesus e Teu
Espírito, fazer morada em meu pobre coração. E, estando definitivamente nele,
liberta-me do poder das trevas com a Tua luz. Que habitado por Ti, eu possa
ser, verdadeiramente, a Tua testemunha neste mundo, cheio de mulheres e homens
sedentos de Ti. Guarda-me, ó Trindade, com a Tua presença em mim. Amém!”
Ele
é benigno e compassivo, inclinado sempre a perdoar
Quem poderá
conhecer e sentir a misericórdia de Deus? Quem são os que realmente conhecem e
sentem o seu perdão? Com certeza, são os que abrem o coração para que Ele possa
fazer a sua morada. Deus não é uma ideia, não é mera abstração. É o Amor que
quer permanecer em nós. Este é o seu desejo, a sua vontade: Permanecer em seus
filhos e filhas, habitando seus corações. Este é um mistério grandioso.
Acolhendo o Pai, o Filho e o Espírito, a pessoa conhecerá o mistério divino,
que se revela em seu amor. Não se conhece a Deus nas escolas de teologia, mas
acolhendo-O no coração. Trata-se de uma experiência profundamente amorosa e
transformadora. Deus transforma quem O acolhe. Ele transforma a partir de
dentro. Sem acolhê-lo, não é impossível conhecer o poder transformador da sua
misericórdia e do seu amor.
Deus não é o Senhor dos Exércitos, o grande vingador do
seu povo, aquele que vigia para saber quem está pecando, em vista do castigo.
Esta é uma imagem falsa de Deus. Também não podemos crer que Ele acolhe a uns e
despreza a outros, recordando-se de alguns e abandonando a outros. Não. Isto é
mentira. Na verdade, toda a humanidade forma a grande família de Deus. Ele
acolhe a todos, amando-os, sem limites. Ele não faz acepção de pessoas, mas
volta-se, especialmente, para os que sofrem e para os que invocam,
sinceramente, o seu nome. Ele não olha as nossas faltas. Certamente, as reprova,
mas não as utiliza como motivo para nos castigar. O Deus e Pai de Jesus não é o
Deus do castigo, mas é um Pai amoroso, que não sabe fazer outra coisa a não ser
amar, infinitamente. Seu amor alcança a todos, na liberdade e para a liberdade.
Por isso, não precisamos ter medo de Deus. Nele não há maldade porque a sua
essência é o amor. Deus é amor e só responde com amor. Para conhecer tudo isso,
só há um caminho: O caminho da acolhida. Sem acolhê-lo no coração é impossível
experimentar o seu amor.
Deixar-se
amar por Deus para amar, generosamente, os outros
Quem professa a fé
em Jesus não pode viver como se Deus não existisse. Isto é uma contradição
inaceitável. Nossas liturgias precisam celebrar nosso testemunho diante dos
homens e mulheres. Sem este testemunho de vida e de liberdade, de amor e de
misericórdia, nossas liturgias não chegam aos ouvidos de Deus. Os profetas são
unânimes em dizer que Deus não escuta as preces e o louvor de um povo que se
recusa a fazer a Sua vontade. É verdade que somos um povo marcado pela fraqueza
e pelo pecado, mas é em meio à fraqueza e ao pecado que somos chamados a fazer
a vontade de Deus. E aí que a Sua misericórdia e força se manifestam. Nossa
fraqueza não nos afasta de Deus, pois Ele sabe de que somos feitos. Com seu
Espírito, Ele vem em socorro de nossas fraquezas. Até no pecado, Deus nos
alcança! É no pecado que reconhecemos a grandeza da misericórdia divina, que
nos levanta do chão e nos devolve a dignidade de filhos e filhas de Deus.
Quando o amor de Deus nos preenche, pois Ele está em nós,
então nos convertemos em pessoas verdadeiramente humanas. O amor de Deus nos
devolve o que há de mais profundamente humano e divino em nós: A capacidade de
amar. Quando Deus permanece em nós, com seu amor e sua ternura, imediatamente
sentimos a necessidade de nos abrirmos aos outros, amando-os sem fazer
distinção e sem impor limites. O amor de Deus em nós nos concede a graça de nos
libertarmos da tentação do egoísmo, de nossa infeliz tendência de transformarmos
as pessoas em objetos de satisfação de nossos desejos mesquinhos. Livres do
egoísmo, somos capazes do amor. A partir daí vai surgindo a nova humanidade,
chamada por Jesus, de Reino de Deus. O amor ao próximo é a prova de que em nós
há o amor a Deus, pois quando recusamos o amor ao próximo e afirmamos que
amamos a Deus, não há verdade em nós. Jesus foi claro na mensagem que nos
deixou como Boa Notícia: O amor a Deus passa, necessariamente, pelo amor ao
próximo.
Por
uma Igreja humilde e misericordiosa
A Igreja prega ao
mundo o amor de Deus: Esta, de fato, é a sua missão. Neste tempo de Quaresma,
como Igreja que somos, uma indagação nos poderá ajudar em nossa meditação e
caminho de conversão: Em nossas comunidades, vivemos, de fato, a humildade e a
misericórdia de Deus? Infelizmente, não podemos esconder a verdade de que há
muita rivalidade entre os cristãos. Ainda há muita falta de humildade e
misericórdia nas comunidades cristãs. No interior destas, muitas pessoas ainda
fazem uso do julgamento e condenação do próximo. Muitas outras continuam sendo
humilhadas e expostas, por causa de seus pecados. Tanto dentro quanto fora de
nossas Igrejas, assistimos, vergonhosamente, à intolerância religiosa, ao
preconceito e ao racismo. Há muita arrogância e prepotência na maneira de
tratar os outros. Muitos “crentes” continuam com a velha e vergonhosa mania de
se sentir melhor e mais santo que os outros, ousando apontar-lhes o dedo, julgando-os
e condenando-os. Todas estas coisas envergonham o Cristianismo, constituindo um
contratestemunho que precisa ser vencido com a prática da humildade e da
misericórdia. Quem não é humilde não consegue ser misericordioso, pois
humildade e misericórdia caminham juntas: A primeira é como que o alicerce da
segunda.
A
modo de conclusão
O mundo está
gravemente enfermo pela ausência do amor e da misericórdia. Os intolerantes e
violentos não podem dizer que amam a Deus. Os cristãos precisam, urgentemente,
aceitar o amor a Deus em seus corações para, assim, se transformarem em autênticos
seres humanos: Mulheres e homens transformados pelo amor. Sem esta conversão ao
amor é impossível termos justiça e paz. Sem amor, todos os esforços são
incapazes de frutificar. Somente o amor nos concede a visão do outro,
fazendo-nos capazes de amá-lo, vendo-o como irmão, como um ser humano, que deve
ser tratado com respeito e dignidade. Não reconhecer a dignidade do outro é um
pecado gravíssimo aos olhos de Deus.
Também
nas leis humanas, esta negação da dignidade é um crime contra a humanidade. Somos
da mesma raça e da mesma espécie e, segundo a fé cristã, formamos uma só
família. Por isso, não podemos viver nos estranhando e nos tratando,
mutuamente, como inimigos. Peca gravemente todo cristão que ver no outro um
inimigo a ser vencido e eliminado. O outro é irmão porque Deus é Pai de todos,
indistintamente: Esta é uma verdade fundamental da fé cristã, confirmada pelo
testemunho das Sagradas Escrituras. Quem chama a Deus de Pai, deve considerar o
outro como irmão, seja este quem for.
É tempo de Quaresma. Este é o apelo que o Espírito nos
dirige: Sejamos irmãos no amor. Basta de violência e covardia! Basta de mentira
e ilusão! Abramos o nosso coração, a fim de que Deus possa nos revelar o seu
amor. Permanecendo em nós, Ele nos revelará também quem realmente somos, o
nosso verdadeiro eu. Desse modo, conhecendo-nos verdadeiramente,
aceitar-nos-emos como somos, sem medo, sem fuga, sem vergonha de ser feliz. Isto
é extraordinariamente maravilhoso! É pura graça, puro dom, verdadeira alegria.
Deus quer ser Tudo em nós. Não percamos esta valiosa oportunidade; do
contrário, nossa vida cairá no vazio e na mediocridade.
A todos, meu abraço e minha prece. Que o Espírito do Senhor
nos conduza neste itinerário quaresmal e durante toda a nossa vida. Que não nos
falte o dom de sua Iluminação. Assim seja.
Tiago de França
2 comentários:
Extraordinária reflexão, como esta mensagem vai me ajudar a viver nesse período da quaresma uma parada obrigatória pra rever meu cotidiano de vida cristã.
Que bom que se identificou com a mensagem, Otilia.
Grande abraço!
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