quarta-feira, 25 de abril de 2018

O Judiciário, a cultura do ódio e o punitivismo


        A condenação e prisão do ex-presidente Lula revelaram algo assustador na sociedade brasileira: um Judiciário que satisfaz à cultura do ódio que impera e assusta. É verdade que este sentimento de ódio e vingança não é algo generalizado, que brota do coração e da mente de todos os brasileiros. Se assim fosse, estaríamos perdidos.

        Quem faz uso do bom senso não é contrário à investigação, processo e punição dos verdadeiros culpados. O devido processo legal é uma exigência do estado democrático de direito. Não há justiça sem o devido processo legal. A Constituição da República, promulgada em 1988, assegura esta exigência fundamental, que a todos garante, pelo menos formalmente, isonomia de tratamento, no que se refere à aplicação das leis penal e processual penal, assunto central destas provocações.

        Em nome do combate à corrupção não é legítimo o cometimento de ilegalidades, pois toda ilegalidade, como o próprio nome indica, é uma afronta à Constituição. Quando há violação do devido processo legal, ou seja, quando as leis que regem o processo não são respeitadas, então temos, flagrantemente, a denominada pseudolegalidade. Longe de cairmos no puro legalismo, precisamos resgatar o verdadeiro sentimento de justiça, para que, de fato, a lei seja uma só para todos, e todos sejam iguais perante a lei.

        Neste sentido, não está dentro da legalidade nem comunga com o verdadeiro espírito do genuíno estado democrático de direito a persecução penal pautada na perseguição a quem quer que seja. Como isto se torna perceptível? Um dos princípios que rege o processo penal é o da ampla defesa. O réu tem direito a se defender, utilizando-se de todos os meios legalmente previstos no direito. E é assim porque até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ele é inocente. Enquanto houver possibilidade de recurso, cabe ao réu ter reconhecida a sua inocência. Esta é uma presunção constitucional, que não pode ser modificada para satisfazer o juízo de conveniência de quem quer que seja.

        Outro dado relevante em um processo são as funções de cada operador do direito: o juiz não é o acusador, mas o julgador. O réu não pode encontrar na pessoa de juiz alguém que o acusa e que, declaradamente, o afronta no processo, dominado por um desejo incontrolável de condenação a todo custo. Não se condena ninguém a todo custo. Condena-se na forma da lei. O juiz deve conformar a sua vontade à lei, pois a vontade pessoal, bem como as convicções não podem ocupar o lugar da lei. Submetido ao ordenamento jurídico, que confere a devida segurança a todos os atores do processo, cabe ao juiz conduzir, harmoniosa e respeitosamente, o processo.

        O promotor de justiça ou procurador não julga, mas acusa o réu. Tal acusação não deve ser fruto da fértil imaginação, mas pautada nos indícios mínimos de materialidade e autoria do crime. Se não há indícios que sejam suficientemente plausíveis para o oferecimento da denúncia, então a virtude da prudência e a lei recomendam que não se denuncie. Acusar não é atividade de entretenimento, não serve para chamar a atenção para si mesmo, mas para postular pela justiça, apresentando uma denúncia que contenha os requisitos legalmente previstos, tendo em vista a instrução processual, nos termos da lei. Se quem acusa não apresenta as provas cabais para o justo e necessário convencimento do juiz, então arquiva-se a denúncia porque manifestamente descabida.

        O que se assiste no Brasil? Em inúmeros lugares, e com maior evidência em inúmeros processos da denominada operação Lava Jato, assiste-se a verdadeiras anomalias. O que pode um advogado criminalista, por melhor que seja, fazer no trato com um órgão jurisdicional que não observa os contornos e limites da lei? A quem vai apelar? Como provar a inocência de uma pessoa diante dos sucessivos indeferimentos pedidos de produção de provas relevantes ao processo? Se a prova não pode ser produzida, o que resta? Restam as convicções de quem acusa e de quem julga.

        Inúmeros e renomados juristas, especialmente os que se debruçam sobre a sistemática do direito penal e processual penal, estão estarrecidos com a sede punitivista do Judiciário brasileiro. No punitivismo, quando necessário à satisfação da sede de condenar a todo custo, muda-se, assustadora e casuisticamente, o entendimento da lei (jurisprudência), e alguns ousam até a mudar o sentido da lei, sem alteração textual; ou seja, o texto diz não e o operador diz sim. E não vale o que diz a lei, mas vincula a subjetividade do julgador, o que ele acredita ser justo, mesmo que esta crença contrarie as provas e a lei.

        E assim a democracia brasileira vai passando vergonha perante o mundo. Como os malabarismos jurídicos são descaradamente cometidos aos olhos da população, quem entende um pouco de direito fica sem saber o que pensar e fazer. Seleciona-se certas figuras para levá-las ao cárcere. Este se tornou a regra, quando deveria ser a exceção.

A mídia, por sua vez, para ajudar no processo de legitimação do Judiciário perante à sociedade, convence o povo de que certas figuras precisam ser crucificadas, para o bem da nação. A culpa por toda a corrupção, do “descobrimento” do País até os dias atuais, é reduzida a uma pessoa, um grupo ou partido político. Insiste-se na falsa ideia de que o sacrifício de algumas pessoas representa o fim da corrupção. Quem se beneficia com isso? Os verdadeiros corruptos saem ganhando, pois não é alterado o sistema gerador das inúmeras formas de corrupção, bem como permanece intocáveis inúmeras figuras importantes, próximas a gente que veste toga e que possui forte influência no Judiciário.

        Contra os verdadeiros corruptos há inúmeras provas, pois seus crimes foram e são cometidos à luz do dia. Eles vivem passeando, se encontrando, carregando malas fartas de dinheiro, tendo conversas pouco republicanas na calada da noite, guardando milhões em apartamento, saqueando os cofres públicos com inteligência, ousadia e maestria. Eles residem e atuam próximos aos homens de toga, que fingem nada ver e nada entender. Eles sabem que a punição não os alcança, e neste ano, se articulam para permanecer no poder, porque são insaciáveis, são como urubus na carniça.

        A cultura do ódio e da eliminação do outro não pode ser a regra utilizada para o oferecimento de denúncias e condução da instrução processual. A lei não pode ser afastada. As instituições precisam funcionar em função da justiça, e não para a satisfação de interesses pouco ou nada republicanos. A República Federativa do Brasil está mergulhada no descrédito, em um caos. Experimenta um dos seus piores momentos, desde a redemocratização.

Precisamos de um Judiciário que nos convença de que a lei é uma só para todos, não a partir de discursos bonitos e complexos, mas a partir da observância do devido processo legal e da legalidade democrática. Não há estado democrático de direito se os direitos e garantias fundamentais não são respeitados e promovidos. Se o cidadão não tem a certeza de que é, presumivelmente, inocente, até que se prove o contrário, então vivemos em um estado de exceção.

E em um estado de exceção ninguém está em segurança, todos estão expostos à força bruta de um Estado que ceifa, impiedosamente, a liberdade e a vida dos seus cidadãos. Até quando assistiremos a tudo isso? Até quando assistiremos ao silêncio dos bons? A esperança é filha do tempo e porto seguro dos indefesos e injustiçados. Sigamos firmes, pois nem todo mundo é cego, nem todo mundo está contaminado pelo vírus da ignorância. Há muita gente acordada, que diuturnamente luta e crê num outro mundo possível.

Tiago de França

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