A situação do Judiciário
brasileiro tem demonstrado, com muita clareza, que estamos longe de termos uma
justiça verdadeiramente imparcial. O que seria uma justiça imparcial? A resposta
para esta questão exige coerência com o que acontece hoje no País. Não apelemos
para conceitos estritamente jurídicos. Ninguém precisa ser especialista em
Direito para entender que uma justiça imparcial é aquela que não adere ao
projeto de poder político em detrimento do bem comum. É desse tipo de justiça
que precisamos. Neste sentido, o Judiciário precisa se transformar, de fato, em
um instrumento de promoção da democracia e do Estado Democrático de Direito. Mas
como isto é possível?
Inicialmente, é preciso considerar uma outra questão
fundamental: Os operadores do Direito, especialmente os membros do Judiciário e
do Ministério Público, tem interesse em promover o Estado Democrático de
Direito? É verdade que não podemos cair na tentação de pensarmos que todos os
operadores do Direito são antidemocráticos ou inimigos da democracia. Jamais. Mas
é verdade também que há setores importantes destes Poderes que estão a serviço
de uma minoria endinheirada que há séculos saqueia as riquezas e mantém sob
controle a funcionalidade das instituições judiciárias do País.
Jessé de Souza, renomado sociólogo brasileiro, autor de
inúmeras obras, dentre as quais encontramos A
elite do atraso – Da escravidão à Lava Jato, classifica esta elite
endinheirada como elite do atraso. De fato, é esta elite que tem mantido o País
em um permanente regime de escravidão. Esta mesma elite é dona dos meios de
produção que controlam a economia e que também controlam a política.
Para
continuar exercendo o controle, a elite do atraso procura manipular as
instituições responsáveis pela aplicação da lei, para que estas não se transformem
em pedras de tropeço, o que causaria a interrupção do grandioso projeto de
escravidão permanente que impera no Brasil. Recomendamos vivamente a leitura
atenta das últimas obras do Jessé de Souza, especialmente a supracitada. Vale a
pena.
Quase que diariamente assistimos a espetáculos deprimentes,
realizados por operadores importantes de setores do Judiciário. No último
domingo, 8 de julho, apareceu, explicitamente e mais uma vez, a parcialidade de
juízes no tratamento que tem dado ao ex-presidente Lula, condenado na operação Lava
Jato e candidato à presidência da República. Um desembargador recebe a petição
de habeas corpus, defere a ordem e manda soltar. O juiz de primeiro grau,
responsável pela operação, que tinha sentenciado inicialmente o réu, publica
despacho, dizendo que não iria obedecer e mandando a Polícia Federal fazer o
mesmo. Aqui temos a chamada quebra de hierarquia. Curiosamente, o juiz
desobediente está de férias, pois tinha alegado cansaço e excesso de trabalho!
Poucas
horas depois, o mesmo desembargador reforça a ordem de habeas corpus. Não sendo
suficiente a confusão, mais dois desembargadores entraram na confusão: o
desembargador relator do processo do réu, que cassou a decisão do seu colega,
avocando (chamando para si) a competência. Também o presidente do Tribunal se
manifestou, opinando pela manutenção da prisão. E para fechar com chave de ouro
este capítulo intenso do espetáculo judicial, a presidente do Supremo Tribunal
Federal também se manifestou e, ironicamente, discorreu, de forma breve, sobre
a importância de duas questões jurídicas essenciais ao Judiciário: disse que a
justiça é imparcial e que os ritos e recursos próprios devem ser espeitados. O Judiciário
tem pecado justamente porque estes dois fatores andam bem ausentes na
tramitação de inúmeros processos, principalmente nos processos que correm
contra o ex-presidente Lula.
Esta
confusão toda não teria ocorrido se o ex-presidente Lula não fosse candidato à presidência
da República, estando em primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de
voto. O mais desinformado dos brasileiros sabe disso. A prisão do ex-presidente
é um escândalo permanente, conhecido no mundo inteiro. Não é novidade para
ninguém que personagens centrais do Judiciário realizam manobras espetaculares
para mantê-lo preso. Trata-se de uma condenação e prisão que não se sustentam,
juridicamente falando. Condenação sem provas cabais ameaça o Estado Democrático
de Direito.
A utilização
de instrumentos jurídicos com fins meramente político-partidários é algo
assombroso. Mas o que fazer diante de uma ditadura judicial? A quem recorrer? Quando
a classe das mulheres e homens togados tende a dominar a vida política e social
de uma nação, não há liberdade nem democracia possíveis.
Qual
a importância da Constituição e das leis? Como é possível o Estado Democrático
de Direito se a interpretação constitucional obedece à ética da conveniência? Quando
convém, condena-se; quando não, absolve-se. Contra algumas figuras,
reconhecidamente corruptas, que subtraem milhões e milhões dos cofres públicos,
não há sequer investigação. E quando há, misteriosamente, tais investigações
não chegam a lugar nenhum.
Dependendo
do réu, quando há condenação, converte-se a prisão comum em prisão domiciliar. A
impressão que se tem é que os ricos somente podem cumprir prisão domiciliar,
quando são condenados, o que é raro. Tal raridade se comprova quando visitamos
um presídio superlotado: a grande maioria dos encarcerados é pobre, negra,
analfabeta ou semianalfabeta, e jovem. As prisões sempre foram destinadas aos “lascados”
da sociedade. Esta é a realidade que historicamente se comprova.
O rigor
das normas vigentes não é aplicado a todos. As pessoas não são iguais perante a
lei. A resposta judicial às demandas é ineficiente e parcial. O cotidiano
forense mostra claramente isso. Não há teoria que consiga esconder esta
realidade. Por mais que a mídia hegemônica tente camuflar a realidade, numa
tentativa desesperada de passar a falsa imagem do fim da corrupção, esta tentativa
já constitui corrupção.
A mídia
mente até certo ponto. A mentira é tão mal contada que o povo desconfia em
pouco tempo. Há sempre uma parcela do povo que anda acordada, e quando tem
oportunidade, mostra que nem toda a população é enganada. O engano nunca é
eterno. Chega um momento em que as pessoas cansam de levar chibatadas. Foi assim
no Brasil colonial. Os escravos foram se organizando e se insurgindo, fugindo
para os quilombos, lugares de liberdade.
Somos um povo marcado pela escravidão. Foram séculos de
chibatadas. Até hoje há uma multidão de gente habituada ao chicote. Há um
silêncio ensurdecedor por parte de milhões de escravos no Brasil. A escravidão
moderna se refaz, se reinventa e quer crescer. O sistema econômico é poderoso. É
tão poderoso que impede as pessoas de enxergarem a realidade.
Quem
controla o sistema sabe muito bem que a visão da realidade é atividade
perigosa, arriscadamente subversiva. Os poderosos querem contar sempre com um
povo fraco e obediente, desprovido de organização, livre da consciência
crítica. Esta, para eles, é muito perigosa, pois faz o oprimido colocar para
fora da sua mente a imagem opressora do seu senhor. Um povo que é senhor de si
mesmo é a grande utopia que faz os homens livres lutarem sem cessar. Lutam porque
acreditam noutro mundo possível.
O que
fazer diante de tamanha aberração? Não cabe o desespero. Este parece não resolver
absolutamente nada. Um povo desesperado não tem futuro porque não tem rumo. Uma
pessoa desesperada, de modo geral, é cega. Os poderosos amam situações
desesperadores. Não é à toa que eles ganham muito dinheiro em tempos de crise. Só
existe crise para os pobres. Estes arcam com as consequências das crises, são
acusados de provocá-las, bem como também são obrigados a trabalharem muito para
que sejam superadas. São sempre considerados culpados.
Os mais
ricos do País nunca tem culpa de nada. A mídia os apresenta como os
responsáveis pelo desenvolvimento, como aqueles que somente pensam e fazem o
melhor para o País. Na verdade, ocorre o contrário. Quem saqueou a Petrobrás e
saqueia os cofres públicos no Brasil? Os pobres? Sabemos muito bem quem são. Os
donos das empreiteiras e demais grandes empresários são uns pobres coitados? Nossa
classe política é formada por pobres coitados? Reflitamos.
Por mais
arriscado que seja, o Brasil precisa, urgentemente, de mulheres e homens
capazes de conscientizar e organizar o povo. Precisamos de autênticos líderes
políticos: pessoas corajosas que visem o bem comum. Estamos fartos de políticos
que são eleitos e se aproveitam dos seus mandatos para saquear as riquezas do
povo. Hoje, infelizmente, os inimigos do povo estão na classe política que
deveria representá-lo e gerir, com justiça, seu patrimônio.
Neste
sentido, é extremamente importante que reflitamos sobre a realidade e
procuremos oferecer a nossa contribuição para a construção da verdadeira
democracia. Não é verdade que temos uma democracia segura e forte. A realidade
mostra que a democracia brasileira é jovem, insegura e fraca. Inúmeros brasileiros
são desrespeitados e espancados, diuturnamente.
Os direitos
fundamentais, os mais básicos e, portanto, essenciais não são promovidos nem
respeitados. Tudo não acontece sequer pela metade. A situação é tensa, mas nem
tudo está perdido. Ainda é possível devolver o Brasil aos brasileiros. Trata-se
de uma caminhada lenta e sofrida, marcada pelas dores e esperanças de quem
acorda cedo para ver o sol nascer, tomar o café quente que desperta e sentir o
calor humano das relações que constroem uma sociedade que poderá ser justa e
fraterna. Precisamos crer nisso. É possível.
Tiago
de França