“Não
fostes vós que me escolhestes; eu vos escolhi e vos destinei a ir e dar fruto,
um fruto que permaneça” (Jo 15, 16).
Este versículo presente no Evangelho de Jesus segundo João é
de uma beleza e profundidade grandiosas. O chamado de Deus é um tema que jamais
pode ser esquecido, porque aponta para a realidade da missão. Não existe missão
sem missionário, bem como não há missionário sem o chamado de Deus. Em breves
linhas, queremos refletir um pouco sobre algumas características deste chamado.
A partir do testemunho de Jesus de Nazaré, missionário do Pai, queremos ousar
algumas provocações sobre o tema da vocação. Na Igreja, durante o mês de
agosto, reflete-se sobre este tema, que é muito caro à vida eclesial.
A
escolha é sempre de Deus
Deus nos escolhe antes mesmo
da nossa concepção. No projeto de salvação da humanidade, Deus pensa uma missão
para cada pessoa. Na medida em que as necessidades humanas vão aparecendo,
também vão surgindo, simultaneamente, mulheres e homens que se colocam a
serviço da construção de um mundo mais justo e fraterno. Cada pessoa vai
descobrindo suas aptidões, e busca, na medida do possível, desenvolvê-las para
servir, realizar-se e ser feliz. São inúmeras as profissões e competências.
No seio das religiões, há aqueles que optam por servir a Deus
em ministérios específicos. No Cristianismo, serve-se a Deus no caminho de
Jesus. Não há como servir a Deus fora deste caminho, porque Jesus é o Caminho
que leva ao Pai. Assim, Deus escolhe mulheres e homens para servi-lo na pessoa
do próximo. O Evangelho de Jesus revela que este próximo é o que está distante,
o desconhecido, aquele que nos olha nos olhos e nos interpela para a missão.
Jesus chega a dizer que o próximo também é o nosso inimigo, a quem devemos
amar. Esta é a missão.
O Evangelho de Jesus nos fala da escolha divina. Quando Jesus
escolhe as pessoas que irão acompanhá-lo mais de perto, a escolha recai sobre
pessoas simples e humildes, desprovidas de dinheiro, poder e prestígio. Ele não
escolheu pessoas extraordinárias, mas mulheres e homens comuns. No Antigo
Testamento das Escrituras encontramos o mesmo critério: Deus escolheu pessoas
comuns para servi-lo em situações desafiadoras. Jesus revela que Deus não
escolhe pessoas fortes e dotadas de grande inteligência, mas pessoas fracas e
desprovidas da cultura erudita deste mundo.
Com
isso, não estamos condenando a necessidade de cultura e erudição, mas esta não
é condição ou requisito para ser missionário de Jesus. Um missionário não
precisa ser, necessariamente, erudito. A história mostra que, em muitos casos,
tal erudição atrapalhou e continua atrapalhando a muitos no caminho de Jesus. À
luz da sabedoria humana, Jesus não era um homem erudito, mas um simples filho
de carpinteiro, dotado da sabedoria divina que conhece todas as coisas.
Com
isso, queremos dizer que, no caminho de Jesus, o mais importante é o seguimento
que acontece na plena comunhão com a Trindade. Sem esta comunhão, não adianta
conhecer toda a ciência disponível neste mundo. É preciso ter muito cuidado com
a tentação de deixar de lado o essencial da missão, que é a comunhão plena com
a Trindade Santa, que escolhe, chama, consagra e envia para a missão.
Deus
chama e envia para a missão
Muito se pode falar sobre a
missão. Há uma teologia da missão com muitas obras valiosas. Aqui vamos ao
essencial, compreendendo a missão a partir da experiência de Jesus, o
missionário do Pai, enviado a este mundo para inaugurar o Reino de Deus. Ao
longo da história do Cristianismo, apareceram várias formas de se compreender a
missão do cristão e da Igreja. Cada época é marcada por uma concepção
diferente. Em várias circunstâncias, as concepções se afastaram do sentido que
o Evangelho confere à missão.
É importante sabermos para qual tipo de missão somos
chamados, para não cairmos na tentação de pensarmos que estamos servindo ao
Senhor, sendo que, na realidade, podemos estar nos servindo da missão para a
satisfação de nossas necessidades e caprichos. No centro da missão a que somos
chamados está a opção de Jesus, que é a opção pelos pobres. Portanto, não há
missão fora desta opção. Esta revela a parcialidade de Jesus, ou seja, ele não
era um missionário neutro, apolítico, desvinculado da realidade, um alienado.
Jesus era pobre, viveu entre os pobres, realizou a sua missão a partir da
realidade dos pobres e morreu como um despossuído, como alguém que não tinha
onde reclinar a cabeça.
O lugar da missão de Jesus é muito importante para
compreendermos os desígnios divinos. Desde a saída do povo da escravidão no
Egito, Deus fez uma opção clara pelos oprimidos. Estes estão presentes na
história da humanidade desde sempre. A humanidade se organizou em sociedade, e
nesta encontramos as classes sociais. Visivelmente, sempre existiram duas
grandes classes: a classe dos que possuem o poder para mandar e explorar, e a
classe dos que não tem poder e são explorados.
A
classe dos explorados é a classe dos que foram empobrecidos. A maioria das
riquezas é concentrada nas mãos de uma minoria poderosa, enquanto que o resto
da humanidade sobrevive com aquilo que sobra. Esta é uma realidade antiga, que
tende a se perpetuar. Os poderosos sempre encontram formas cada vez mais
sofisticadas para manter suas riquezas e privilégios. Enquanto isso, as vítimas
do saque da riqueza lutam, diuturnamente, para continuar sobrevivendo. A opção
de Deus é por estes últimos de todos os tempos e lugares. Toda a Bíblia
testemunha, com clareza, esta opção, do Gênesis ao Apocalipse.
Desse
modo, a missão do cristão é seguir Jesus, o Messias enviado do Pai. Segui-lo é
colocar-se em seu caminho e nele perseverar. Este caminho nos leva ao encontro
do Outro (Deus) nos outros (as pessoas e suas circunstâncias, especialmente os
pobres). O grande desafio da missão é permanecer com os pobres. Falamos em
desafio porque a realidade dos pobres é muito difícil, marcada pelo sofrimento.
Basta
olhar para a situação dos pobres em todas as partes do mundo, principalmente na
África e América Latina: há muito desemprego; fome; violência; serviços
públicos precários; criminalização dos pobres e dos movimentos que os apoiam;
violação dos direitos humanos e garantias fundamentais; uma massa enorme de
jovens pobres nas prisões e sem perspectivas, jogados nas periferias; falta de
saneamento básico; entre tantos outros males.
É
para cuidar deste povo sofredor que Deus chama e envia. Este cuidado exige
aproximação, despojamento, entrega e muita coragem. O missionário não é chamado
a resolver todos estes problemas. O Poder Público tem o dever constitucional de
resolvê-los. O missionário é chamado a permanecer presente, despertando a
esperança e fazendo o povo enxergar que Deus não está ausente. É chamado a
denunciar todas essas injustiças, nomeando os verdadeiros responsáveis. O
missionário deve despertar a consciência adormecida dos que sofrem, para que
não caiam na ilusão de pensar que os próprios pobres são os responsáveis pela
existência de tantos males. O mal não surge do nada. Há sempre alguém ou certas
categorias de pessoas que o provocam.
A
missão do cristão no mundo consiste é ir ao encontro dos que sofrem, para fazer
o que fez o samaritano da parábola do Evangelho: ver, aproximar-se e curar as
feridas. Neste sentido, o missionário é alguém sensível aos sofrimentos dos
outros. Não há como enxergá-los sem esta sensibilidade. Quem tem aversão aos
pobres não consegue sequer enxergá-los. Aproximar-se, permanentemente, é outra
exigência da missão. Esta cura das feridas é muito abrangente: cura-se por meio
da escuta dos outros; da ajuda financeira; do abraço que conforta; da palavra
que ilumina e orienta; da simples presença que acompanha e tira os outros da
solidão etc. Estas e outras formas de cura das feridas constituem anúncio do
Evangelho de Jesus. Trata-se da mensagem encarnada do Mestre.
Ser
missionário na e com a Igreja
“A Igreja é sinal e
instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano”
(Constituição dogmática Lumen Gentium,
n. 1). Para que este pensamento conciliar seja, de fato, a realidade da Igreja,
todo cristão católico precisa ser missionário. Este é o desafio que sempre se
apresentou à Igreja, especialmente e de forma mais insistente após o Concílio
Vaticano II. Até a realização deste Concílio, os católicos, de modo geral, não
se enxergavam como Igreja, mas como pessoas que assistiam às celebrações e recebiam
os sacramentos.
A história da Igreja no Brasil fala de um povo muito piedoso
e tradicional, mas que não compreendia a própria fé. Não existia um esforço
para levar as pessoas a pensar a própria fé e conhecer melhor o sentido da
missão da Igreja. A Igreja existia para salvar as almas da perdição eterna,
orientando, assim, o rebanho do Senhor para o caminho do bem. A piedade popular
era a marca do peregrinar do povo de Deus. Havia o povo de Deus e,
separadamente, a hierarquia clerical. Missionários eram os padres e as freiras.
Os bispos eram as autoridades máximas da Igreja, homens distantes, vistos muito
raramente pelos fieis. Batizava-se para não ser chamado de pagão, pois não se
compreendia o batismo como compromisso para a missão. Resumidamente, esta era a
compreensão da Igreja pré-conciliar.
O Vaticano II fez a Igreja voltar às suas fontes primitivas.
Aquela foi obrigada a rever a sua própria identidade e missão no mundo. A
Igreja é Povo de Deus: eis a grande e valiosa concepção que resume, belamente,
a identidade da Igreja pós-conciliar. Dentre outras mudanças, a hierarquia
eclesiástica passa a fazer parte do povo de Deus, e este povo passa a ser um
povo sacerdotal. A Igreja deixa de ser vista como uma sociedade perfeita no
meio do mundo, para ser considerada uma realidade sujeita a reformas
constantes. Apesar disso, uma das maiores dificuldades da instituição
eclesiástica é justamente a de reformar-se.
Esta dificuldade impõe um ritmo à vida da Igreja que, em
muitos aspectos, dificulta a prática do Evangelho. Atualmente, o Papa Francisco
está trilhando o caminho das reformas. As dificuldades e resistências são
muitas. Há quem se oponha às reformas, e o número dos que assim procedem não é
pequeno. As resistências são visíveis e em diversas circunstâncias e lugares
tem se mostrado de forma bastante violenta. Por outro lado, há muito entusiasmo
por parte daqueles que são favoráveis às reformas. É verdade que o Papa sozinho
não reformará uma instituição milenar, que herdou do passado problemas e vícios
aparentemente insanáveis.
As ideologias e modismos do tempo presente não ajudam a
Igreja a reformar-se. Em seu seio há inúmeros clérigos e fieis que estão
contaminados pelo que o Papa chamou de mundanismo espiritual. O apego ao
dinheiro e ao poder; o espírito de competição e a vaidade; entre outros males,
são verdadeiros entraves à conversão da Igreja. Mudanças estruturais não
caminham, devido ao medo de se expor à insegurança. O relativismo que, entre
outros fatores, gera a globalização da indiferença, e uma crise moral global
são fermentos farisaicos que ganharam proporções gigantescas na vida dita
pós-moderna.
Para ser discípula e missionária de Jesus, a Igreja – povo de
Deus em marcha na história –, precisa, humildemente, levar mais a sério a chamada
conciliar à comunhão e participação, tendo em vista a centralidade do Reino de
Deus. A Igreja precisa, de uma vez por todas, ser advogada dos pobres em
detrimento dos interesses dos poderosos deste mundo. Não se pode adotar a
política da boa vizinhança, visando manter a boa aparência e a aprovação junto
a um público descomprometido com as grandes causas do Reino de Deus. Esta
política e preocupação com aprovação são instrumentos de políticos que não
prezam o bem comum.
Neste mesmo sentido, escreveu o Papa Francisco, na Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium, n. 49:
“Saiamos,
saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a
Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos
Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às
próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que
acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos
deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos
irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus
Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e
de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos
encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos
transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos,
enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar:
«Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37)”.
O fechamento, a comodidade e
o apego às próprias seguranças sempre foram grandes pecados na vida da Igreja.
Em tempos de modernidade, o medo de tudo o que é moderno a deixou isolada do
mundo, como se fosse uma ilha. Pensava-se que o mudo seria o lugar da perdição,
e não o lugar da missão. Enclausurava-se numa vida profundamente marcada pela
ascese e piedade, longe dos problemas humanos. Religiosos e clérigos eram
reconhecidos pela batina preta e hábitos que vestiam e pelas práticas de oração
que excluíam a vida do mundo. Havia uma clara diferença entre ser fiel à batina
ou ao hábito e ser fiel a Jesus. A fidelidade era sinônimo de obediência às
prescrições legais e morais.
A comodidade é outro mal a ser combatido no seguimento de
Jesus. Para quem não opta pelo seguimento de Jesus, a comodidade, a priori, não parece ser um mal. À luz
da mentalidade capitalista, as pessoas devem procurar viver comodamente. É verdade
que toda pessoa merece e deve ter as suas necessidades básicas atendidas:
alimento, moradia, saúde, educação, lazer etc. O Papa não está ignorando estas
necessidades. A comodidade aparece no sentido de que os missionários, clérigos
e não clérigos, não podem buscar viver comodamente, no sentido de viver de
forma indiferente aos sofrimentos dos outros, encerrados numa vida tranquila. Assim,
comodidade é sinônimo de segurança, que induz à preguiça e impede a saída de si
mesmo para o encontro com os outros.
Apegar-se às próprias seguranças só é possível quando elas
existem. Uma pessoa pobre não compra um carro de luxo nem adquire uma mansão.
Os pobres não contam com a comodidade oriunda das seguranças que o dinheiro
pode oferecer. Os despossuídos estão expostos à falta de segurança. Assim como
Jesus, não tem a quem se apegar. Deus é a riqueza dos pobres. A segurança
oriunda do dinheiro, das leis, dos procedimentos e das estruturas constitui um
gravíssimo entrave na caminhada da Igreja. Para que existam missionários
abertos, livres e disponíveis, é necessário que haja desapego. Um missionário
apegado às seguranças que as estruturas oferecem é um peso para a vida da
Igreja.
Por fim, precisamos considerar que a reflexão sobre o chamado
de Deus nos coloca diante da necessidade de nos convertermos, pessoal e
eclesialmente. Precisamos ser para os outros força, luz e consolação. Com certa
urgência, precisamos também renunciar a tudo aquilo que nos prende e aliena, a
tudo o que nos impede de sermos verdadeiramente humanos.
Ser
missionário de Jesus na Igreja não é tarefa para pessoas dotadas de espírito
angelical. É o Espírito de Jesus que nos ilumina, guia e orienta na missão. Sem
medo e com alegria, despojemo-nos de nossas falsas pretensões e nos coloquemos
no caminho de Jesus. É Jesus a regra da missão, dizia São Vicente de Paulo. É o
Mestre que ocupa a centralidade da caminhada. Com os olhos fixos nele podemos
andar sobre as águas agitadas do mar da vida.
Entregues
sem reservas, nada nos falta. Na missão encontramos a verdadeira alegria,
aquela que dura para a vida eterna. Sem esta disposição e entrega total de si
mesmo, não há conversão possível. A Igreja será outra, totalmente diferente,
mais livre e fiel a Jesus, quando nós, seus membros, nos deixarmos guiar pelo
Espírito que sonda todas as coisas e nos faz missionários do Reino de Deus, na
Igreja e no mundo.
Tiago
de França