quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O CHAMADO DE DEUS (Reflexão por ocasião do Mês Vocacional)


“Não fostes vós que me escolhestes; eu vos escolhi e vos destinei a ir e dar fruto, um fruto que permaneça” (Jo 15, 16).

        Este versículo presente no Evangelho de Jesus segundo João é de uma beleza e profundidade grandiosas. O chamado de Deus é um tema que jamais pode ser esquecido, porque aponta para a realidade da missão. Não existe missão sem missionário, bem como não há missionário sem o chamado de Deus. Em breves linhas, queremos refletir um pouco sobre algumas características deste chamado. A partir do testemunho de Jesus de Nazaré, missionário do Pai, queremos ousar algumas provocações sobre o tema da vocação. Na Igreja, durante o mês de agosto, reflete-se sobre este tema, que é muito caro à vida eclesial.

A escolha é sempre de Deus

        Deus nos escolhe antes mesmo da nossa concepção. No projeto de salvação da humanidade, Deus pensa uma missão para cada pessoa. Na medida em que as necessidades humanas vão aparecendo, também vão surgindo, simultaneamente, mulheres e homens que se colocam a serviço da construção de um mundo mais justo e fraterno. Cada pessoa vai descobrindo suas aptidões, e busca, na medida do possível, desenvolvê-las para servir, realizar-se e ser feliz. São inúmeras as profissões e competências.

        No seio das religiões, há aqueles que optam por servir a Deus em ministérios específicos. No Cristianismo, serve-se a Deus no caminho de Jesus. Não há como servir a Deus fora deste caminho, porque Jesus é o Caminho que leva ao Pai. Assim, Deus escolhe mulheres e homens para servi-lo na pessoa do próximo. O Evangelho de Jesus revela que este próximo é o que está distante, o desconhecido, aquele que nos olha nos olhos e nos interpela para a missão. Jesus chega a dizer que o próximo também é o nosso inimigo, a quem devemos amar. Esta é a missão.

        O Evangelho de Jesus nos fala da escolha divina. Quando Jesus escolhe as pessoas que irão acompanhá-lo mais de perto, a escolha recai sobre pessoas simples e humildes, desprovidas de dinheiro, poder e prestígio. Ele não escolheu pessoas extraordinárias, mas mulheres e homens comuns. No Antigo Testamento das Escrituras encontramos o mesmo critério: Deus escolheu pessoas comuns para servi-lo em situações desafiadoras. Jesus revela que Deus não escolhe pessoas fortes e dotadas de grande inteligência, mas pessoas fracas e desprovidas da cultura erudita deste mundo.

Com isso, não estamos condenando a necessidade de cultura e erudição, mas esta não é condição ou requisito para ser missionário de Jesus. Um missionário não precisa ser, necessariamente, erudito. A história mostra que, em muitos casos, tal erudição atrapalhou e continua atrapalhando a muitos no caminho de Jesus. À luz da sabedoria humana, Jesus não era um homem erudito, mas um simples filho de carpinteiro, dotado da sabedoria divina que conhece todas as coisas.

Com isso, queremos dizer que, no caminho de Jesus, o mais importante é o seguimento que acontece na plena comunhão com a Trindade. Sem esta comunhão, não adianta conhecer toda a ciência disponível neste mundo. É preciso ter muito cuidado com a tentação de deixar de lado o essencial da missão, que é a comunhão plena com a Trindade Santa, que escolhe, chama, consagra e envia para a missão.

Deus chama e envia para a missão

        Muito se pode falar sobre a missão. Há uma teologia da missão com muitas obras valiosas. Aqui vamos ao essencial, compreendendo a missão a partir da experiência de Jesus, o missionário do Pai, enviado a este mundo para inaugurar o Reino de Deus. Ao longo da história do Cristianismo, apareceram várias formas de se compreender a missão do cristão e da Igreja. Cada época é marcada por uma concepção diferente. Em várias circunstâncias, as concepções se afastaram do sentido que o Evangelho confere à missão.

        É importante sabermos para qual tipo de missão somos chamados, para não cairmos na tentação de pensarmos que estamos servindo ao Senhor, sendo que, na realidade, podemos estar nos servindo da missão para a satisfação de nossas necessidades e caprichos. No centro da missão a que somos chamados está a opção de Jesus, que é a opção pelos pobres. Portanto, não há missão fora desta opção. Esta revela a parcialidade de Jesus, ou seja, ele não era um missionário neutro, apolítico, desvinculado da realidade, um alienado. Jesus era pobre, viveu entre os pobres, realizou a sua missão a partir da realidade dos pobres e morreu como um despossuído, como alguém que não tinha onde reclinar a cabeça.

        O lugar da missão de Jesus é muito importante para compreendermos os desígnios divinos. Desde a saída do povo da escravidão no Egito, Deus fez uma opção clara pelos oprimidos. Estes estão presentes na história da humanidade desde sempre. A humanidade se organizou em sociedade, e nesta encontramos as classes sociais. Visivelmente, sempre existiram duas grandes classes: a classe dos que possuem o poder para mandar e explorar, e a classe dos que não tem poder e são explorados.

A classe dos explorados é a classe dos que foram empobrecidos. A maioria das riquezas é concentrada nas mãos de uma minoria poderosa, enquanto que o resto da humanidade sobrevive com aquilo que sobra. Esta é uma realidade antiga, que tende a se perpetuar. Os poderosos sempre encontram formas cada vez mais sofisticadas para manter suas riquezas e privilégios. Enquanto isso, as vítimas do saque da riqueza lutam, diuturnamente, para continuar sobrevivendo. A opção de Deus é por estes últimos de todos os tempos e lugares. Toda a Bíblia testemunha, com clareza, esta opção, do Gênesis ao Apocalipse.

Desse modo, a missão do cristão é seguir Jesus, o Messias enviado do Pai. Segui-lo é colocar-se em seu caminho e nele perseverar. Este caminho nos leva ao encontro do Outro (Deus) nos outros (as pessoas e suas circunstâncias, especialmente os pobres). O grande desafio da missão é permanecer com os pobres. Falamos em desafio porque a realidade dos pobres é muito difícil, marcada pelo sofrimento.

Basta olhar para a situação dos pobres em todas as partes do mundo, principalmente na África e América Latina: há muito desemprego; fome; violência; serviços públicos precários; criminalização dos pobres e dos movimentos que os apoiam; violação dos direitos humanos e garantias fundamentais; uma massa enorme de jovens pobres nas prisões e sem perspectivas, jogados nas periferias; falta de saneamento básico; entre tantos outros males.

É para cuidar deste povo sofredor que Deus chama e envia. Este cuidado exige aproximação, despojamento, entrega e muita coragem. O missionário não é chamado a resolver todos estes problemas. O Poder Público tem o dever constitucional de resolvê-los. O missionário é chamado a permanecer presente, despertando a esperança e fazendo o povo enxergar que Deus não está ausente. É chamado a denunciar todas essas injustiças, nomeando os verdadeiros responsáveis. O missionário deve despertar a consciência adormecida dos que sofrem, para que não caiam na ilusão de pensar que os próprios pobres são os responsáveis pela existência de tantos males. O mal não surge do nada. Há sempre alguém ou certas categorias de pessoas que o provocam.

A missão do cristão no mundo consiste é ir ao encontro dos que sofrem, para fazer o que fez o samaritano da parábola do Evangelho: ver, aproximar-se e curar as feridas. Neste sentido, o missionário é alguém sensível aos sofrimentos dos outros. Não há como enxergá-los sem esta sensibilidade. Quem tem aversão aos pobres não consegue sequer enxergá-los. Aproximar-se, permanentemente, é outra exigência da missão. Esta cura das feridas é muito abrangente: cura-se por meio da escuta dos outros; da ajuda financeira; do abraço que conforta; da palavra que ilumina e orienta; da simples presença que acompanha e tira os outros da solidão etc. Estas e outras formas de cura das feridas constituem anúncio do Evangelho de Jesus. Trata-se da mensagem encarnada do Mestre.

Ser missionário na e com a Igreja

        “A Igreja é sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano” (Constituição dogmática Lumen Gentium, n. 1). Para que este pensamento conciliar seja, de fato, a realidade da Igreja, todo cristão católico precisa ser missionário. Este é o desafio que sempre se apresentou à Igreja, especialmente e de forma mais insistente após o Concílio Vaticano II. Até a realização deste Concílio, os católicos, de modo geral, não se enxergavam como Igreja, mas como pessoas que assistiam às celebrações e recebiam os sacramentos.

        A história da Igreja no Brasil fala de um povo muito piedoso e tradicional, mas que não compreendia a própria fé. Não existia um esforço para levar as pessoas a pensar a própria fé e conhecer melhor o sentido da missão da Igreja. A Igreja existia para salvar as almas da perdição eterna, orientando, assim, o rebanho do Senhor para o caminho do bem. A piedade popular era a marca do peregrinar do povo de Deus. Havia o povo de Deus e, separadamente, a hierarquia clerical. Missionários eram os padres e as freiras. Os bispos eram as autoridades máximas da Igreja, homens distantes, vistos muito raramente pelos fieis. Batizava-se para não ser chamado de pagão, pois não se compreendia o batismo como compromisso para a missão. Resumidamente, esta era a compreensão da Igreja pré-conciliar.

        O Vaticano II fez a Igreja voltar às suas fontes primitivas. Aquela foi obrigada a rever a sua própria identidade e missão no mundo. A Igreja é Povo de Deus: eis a grande e valiosa concepção que resume, belamente, a identidade da Igreja pós-conciliar. Dentre outras mudanças, a hierarquia eclesiástica passa a fazer parte do povo de Deus, e este povo passa a ser um povo sacerdotal. A Igreja deixa de ser vista como uma sociedade perfeita no meio do mundo, para ser considerada uma realidade sujeita a reformas constantes. Apesar disso, uma das maiores dificuldades da instituição eclesiástica é justamente a de reformar-se.

        Esta dificuldade impõe um ritmo à vida da Igreja que, em muitos aspectos, dificulta a prática do Evangelho. Atualmente, o Papa Francisco está trilhando o caminho das reformas. As dificuldades e resistências são muitas. Há quem se oponha às reformas, e o número dos que assim procedem não é pequeno. As resistências são visíveis e em diversas circunstâncias e lugares tem se mostrado de forma bastante violenta. Por outro lado, há muito entusiasmo por parte daqueles que são favoráveis às reformas. É verdade que o Papa sozinho não reformará uma instituição milenar, que herdou do passado problemas e vícios aparentemente insanáveis.

        As ideologias e modismos do tempo presente não ajudam a Igreja a reformar-se. Em seu seio há inúmeros clérigos e fieis que estão contaminados pelo que o Papa chamou de mundanismo espiritual. O apego ao dinheiro e ao poder; o espírito de competição e a vaidade; entre outros males, são verdadeiros entraves à conversão da Igreja. Mudanças estruturais não caminham, devido ao medo de se expor à insegurança. O relativismo que, entre outros fatores, gera a globalização da indiferença, e uma crise moral global são fermentos farisaicos que ganharam proporções gigantescas na vida dita pós-moderna.

        Para ser discípula e missionária de Jesus, a Igreja – povo de Deus em marcha na história –, precisa, humildemente, levar mais a sério a chamada conciliar à comunhão e participação, tendo em vista a centralidade do Reino de Deus. A Igreja precisa, de uma vez por todas, ser advogada dos pobres em detrimento dos interesses dos poderosos deste mundo. Não se pode adotar a política da boa vizinhança, visando manter a boa aparência e a aprovação junto a um público descomprometido com as grandes causas do Reino de Deus. Esta política e preocupação com aprovação são instrumentos de políticos que não prezam o bem comum.

        Neste mesmo sentido, escreveu o Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 49:

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37)”.

         O fechamento, a comodidade e o apego às próprias seguranças sempre foram grandes pecados na vida da Igreja. Em tempos de modernidade, o medo de tudo o que é moderno a deixou isolada do mundo, como se fosse uma ilha. Pensava-se que o mudo seria o lugar da perdição, e não o lugar da missão. Enclausurava-se numa vida profundamente marcada pela ascese e piedade, longe dos problemas humanos. Religiosos e clérigos eram reconhecidos pela batina preta e hábitos que vestiam e pelas práticas de oração que excluíam a vida do mundo. Havia uma clara diferença entre ser fiel à batina ou ao hábito e ser fiel a Jesus. A fidelidade era sinônimo de obediência às prescrições legais e morais.

        A comodidade é outro mal a ser combatido no seguimento de Jesus. Para quem não opta pelo seguimento de Jesus, a comodidade, a priori, não parece ser um mal. À luz da mentalidade capitalista, as pessoas devem procurar viver comodamente. É verdade que toda pessoa merece e deve ter as suas necessidades básicas atendidas: alimento, moradia, saúde, educação, lazer etc. O Papa não está ignorando estas necessidades. A comodidade aparece no sentido de que os missionários, clérigos e não clérigos, não podem buscar viver comodamente, no sentido de viver de forma indiferente aos sofrimentos dos outros, encerrados numa vida tranquila. Assim, comodidade é sinônimo de segurança, que induz à preguiça e impede a saída de si mesmo para o encontro com os outros.

        Apegar-se às próprias seguranças só é possível quando elas existem. Uma pessoa pobre não compra um carro de luxo nem adquire uma mansão. Os pobres não contam com a comodidade oriunda das seguranças que o dinheiro pode oferecer. Os despossuídos estão expostos à falta de segurança. Assim como Jesus, não tem a quem se apegar. Deus é a riqueza dos pobres. A segurança oriunda do dinheiro, das leis, dos procedimentos e das estruturas constitui um gravíssimo entrave na caminhada da Igreja. Para que existam missionários abertos, livres e disponíveis, é necessário que haja desapego. Um missionário apegado às seguranças que as estruturas oferecem é um peso para a vida da Igreja.

        Por fim, precisamos considerar que a reflexão sobre o chamado de Deus nos coloca diante da necessidade de nos convertermos, pessoal e eclesialmente. Precisamos ser para os outros força, luz e consolação. Com certa urgência, precisamos também renunciar a tudo aquilo que nos prende e aliena, a tudo o que nos impede de sermos verdadeiramente humanos.

Ser missionário de Jesus na Igreja não é tarefa para pessoas dotadas de espírito angelical. É o Espírito de Jesus que nos ilumina, guia e orienta na missão. Sem medo e com alegria, despojemo-nos de nossas falsas pretensões e nos coloquemos no caminho de Jesus. É Jesus a regra da missão, dizia São Vicente de Paulo. É o Mestre que ocupa a centralidade da caminhada. Com os olhos fixos nele podemos andar sobre as águas agitadas do mar da vida.

Entregues sem reservas, nada nos falta. Na missão encontramos a verdadeira alegria, aquela que dura para a vida eterna. Sem esta disposição e entrega total de si mesmo, não há conversão possível. A Igreja será outra, totalmente diferente, mais livre e fiel a Jesus, quando nós, seus membros, nos deixarmos guiar pelo Espírito que sonda todas as coisas e nos faz missionários do Reino de Deus, na Igreja e no mundo.

Tiago de França

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