domingo, 25 de novembro de 2018

A realeza de Jesus


        Se considerarmos os gestos e palavras de Jesus, não nos parece que ele tenha desejado ser visto como rei. Sobre si mesmo, Jesus fala que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, e todo aquele que é a verdade escuta a sua voz (cf. Jo 18, 37). Fica, então, muito claro, pelas suas palavras, que Deus Pai não o enviou para reinar neste mundo. O Evangelho, em suas quatro versões – Mateus, Marcos, Lucas e João – mostram que Jesus era destituído de poder humano. Era tão pobre que não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20).

        Por isso, é um equívoco grave dizer que Jesus é rei segundo o modelo dos reis deste mundo: detentor de poder, riqueza, prestígio e força. A imagem de Jesus rei poderoso é falsa, pois não a encontramos no Evangelho. Consequentemente, também é falsa a pregação de muitos líderes religiosos que cultivam esta imagem triunfalista de Jesus para se apresentarem como figuras sobrenaturais, detentoras de um poder sobrenatural, que os coloca acima dos outros. Estes mesmos líderes costumam se utilizar desta imagem falsa de Jesus para arrecadar dinheiro para suas contas, enriquecendo-se.

        O neopentecostalismo protestante e católico tem caído facilmente nesta tentação. Com muita facilidade pregam um Cristo glorioso, sem caminho e sem cruz. O Ressuscitado é o Crucificado. A cruz é consequência lógica e natural da missão. Não podemos acreditar em um Cristo que surge do nada, que tudo promete, que visa oferecer segurança material. Não é este Cristo que está no Evangelho. O verdadeiro Cristo presente no Evangelho diz: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e me siga” (Lc 9, 18 – 24).

        Para o espanto e a frustração de muitos, precisamos proclamar, em alto e bom som: Jesus nos pede que nos coloquemos em seu caminho e nele perseveremos. Para isto, junto do Pai, nos enviou o Espírito Santo. A graça santificante operando em cada um de nós, é a nossa alegria e segurança, é a força que nos liberta para a vida sem fim. Desse modo, o que Jesus quer é que sejamos como ele: testemunhas da verdade. Não de uma verdade subjetiva e, portanto, particular, mas da Verdade que é o próprio Cristo Jesus.

        Dar testemunho da verdade é sermos como Ele: mansos e humildes de coração, discípulos missionários do amor que a todos acolhe e regenera. Um amor infinito que se revela na amizade, na proximidade, na atenção e no perdão, no respeito e na reciprocidade, na compreensão e na acolhida dos que sofrem, na compaixão e na alegria. Quando damos testemunho do Cristo ressuscitado, então participamos da sua realeza, da sua divindade. Por meio do testemunho, somos luz do mundo e sal da terra.

        Sem o testemunho da verdade e da liberdade criamos uma religião de muito louvor e muita prece, de muito brilho, de belíssimas cerimônias, de muitas cores e vestes litúrgicas, mas vazia do amor de Deus. Para que serve esta religião? Neste sentido, precisamos aprender com o apóstolo Tiago, que diz: “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1, 27). É o amor-doação que torna a religião útil aos olhos de Deus.

        Em comunhão com este Cristo Jesus, testemunha fiel do Pai, cada batizado precisa se colocar no mesmo itinerário de testemunho profético. Nossos dias, em todo o mundo, carecem de testemunhas fieis do Cristo ressuscitado. Entregando-nos ao amor-doação, seremos capazes de iluminar o mundo, porque onde reina o amor, as trevas já não mais tem força.

Nossas Igrejas precisam dar testemunho da verdade e da liberdade, pois é disso que o mundo precisa. Os empobrecidos e explorados deste mundo já não suportam mais tanta violência. A religião não pode ser mais um fardo nas costas deles, mas um instrumento de libertação, porque este é o desejo de Deus: a vida do seu povo. Nossas Igrejas precisam aprender que a realeza de Jesus se manifesta no grito e nas lutas dos pobres.

        Olhando nos olhos de cada um de nós, Jesus faz um apelo ao amor. Não tenhamos medo. Este não nos ajuda em nada. Por mais densa que seja a escuridão da noite, temos a certeza de que um novo dia virá. Esta é a nossa esperança: A Trindade é fiel e permanece conosco. A sua presença em nós nos liberta do medo e do desespero.

O nosso Deus é o Libertador, que caminha conosco, e nos ajuda, diuturnamente, a vencermos os demônios encarnados deste mundo. Estes são pessoas que exploram outras, desumanizando-as. Estes demônios só tem aparência de fortaleza, mas são fracos e não duram por muito tempo. Deus é sempre maior, nos ama e nos faz vencedores do mal. Esta é a nossa fé. Ninguém pode nos tirá-la. É a nossa segurança e paz. Sigamos firmes no amor, na fé e na esperança.

Tiago de França

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Os negros e a cultura da resistência

         
         Não é fácil ser negro no Brasil. Este dia 20 de novembro é marcado pela hipocrisia: a hipocrisia daqueles racistas que prestam homenagens aos negros. Nas redes sociais, as homenagens são muitas. Algumas, lindas de ver. Mas, na verdade, a realidade fala da situação vergonhosa do racismo e da exclusão dos negros.

        O passado do País revela que o negro sempre foi tratado como um ser inferior. Quando trazido da África para trabalhar como escravo, pouca gente contestou a situação. Foram séculos de silêncio e conivência. Até cristãos católicos, e depois os protestantes, consideravam a escravidão um fenômeno normal e necessário. Este passado sombrio não passou. Ainda temos muitos resquícios dele.

        O olhar desconfiado, que condena e julga, que despreza e transmite a sensação do nojo. Muitos negros enfrentam este olhar, diuturnamente. Ainda há quem pense que o lugar do negro é nos serviços pesados, nas profissões que envolvem sujeira e que são desprezadas pelos brancos. Durante séculos, o negro serviu para ser motorista, jardineiro, porteiro, engraxate etc. Estas e outras profissões eram consideradas inferiores e não serviam para os brancos. O negro era visto sempre como o empregado. O patrão sempre foi branco.

        A cultura racista foi ganhando espaço na sociedade, e algumas expressões se naturalizaram. Palavras e gestos de desprezo aos negros se naturalizaram. E o que se naturaliza também se torna normal, aceito por todos. Direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, mesmo sem perceber, o brasileiro se vê discriminando os negros. O que se torna enraizado é mais difícil de ser corrigido. A cultura racista foi implantada com tanta força, que alguns negros passaram a discriminar outras pessoas negras.

        O sistema carcerário brasileiro existe praticamente para encarcerar os negros: mais da metade dos que estão nas prisões são negros. As prisões estão lotadas de negros, pobres e analfabetos funcionais. São os desvalidos da sociedade. A polícia tem verdadeira tara por espancar e prender jovens negros. Esta abordagem racista das forças policiais passa para a sociedade a falsa impressão de que os negros são mais propensos ao crime. É um absurdo que o próprio Estado não procura corrigir.

        Recentemente, os brasileiros assistiram, durante a campanha eleitoral, a forma como o candidato da extrema-direita, o militar Jair Bolsonaro, tratou os negros, durante uma palestra para judeus, em São Paulo. O então deputado teve que enfrentar uma denúncia no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo crime de racismo.

Referindo-se a uma comunidade quilombola que tinha visitado, o militar disse que os negros não faziam nada da vida, que não serviam sequer para procriar, e que o mais leve pesava “sete arrobas”. Arroba é medida utilizada para pesar gado. Mas os ministros de uma das turmas do STF não entenderam que se tratou de racismo, mas de mera expressão contemplada pelo direito à liberdade de expressão!

        Esta foi uma das ocasiões em que o então deputado deu declarações visivelmente racistas. Apesar disso, milhões de brasileiros, que certamente são, em grande parte, racistas, o elegeram Presidente da República. Nunca na história do Brasil tivemos um presidente eleito com um histórico de declarações racistas tão deplorável.

Como a justiça brasileira é muito falha para punir gente “importante”, então o deputado escapou impune. Certamente, seu governo será marcado pela total ausência de políticas públicas que contribuiriam para a construção da verdadeira democracia racial no Brasil.

        Dada esta situação, apesar da ameaça que o presidente eleito representa para a promoção da igualdade racial no Brasil, há inúmeros grupos e instituições que lutam por esta igualdade. Há uma cultura da resistência em curso. Nem tudo está perdido. O presidente eleito certamente ouvirá o grito dos negros que resistem. Este grito jamais será abafado.

O eleito não é superior à Constituição, que fala em seu artigo 5º, inciso XLII: “A prática do racismo constitui crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” Cabe à população negra e a todos os cidadãos esclarecidos, a denúncia firme daqueles que cometem tal prática, por se julgarem no direito de tratar os outros com indiferença e discriminação. Independente se o presidente eleito goste ou não, a igualdade racial é um direito que precisa ser promovido e respeitado. A lei tem que ser cumprida, e os negros devem ser respeitados.

Marielle Franco vive! Viva Zumbi dos Palmares!


Tiago de França

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O chamado à santidade


     
      A santidade não é um privilégio reservado a poucas pessoas, mas um chamado universal. Não é um convite para vivermos ocupados com coisas de outro mundo. Também não é oportunidade para vivermos fugindo e negando este mundo. Quem tem aversão ao mundo não pode dizer que trilha o caminho da santidade. O mundo não é obra de Satanás, mas obra divina. Foi para sermos sal da terra e luz do mundo que fomos chamados.

        Para ser santo, não é preciso ser papa, bispo ou padre. Estes também são chamados à santidade, mas a condição de ministro não é necessária para atender ao chamamento divino. Em muitos casos, a condição de ministro mais atrapalha que ajuda no caminho que conduz a Deus. Mas seria muito bom que todos os ministros da Casa do Senhor pudessem ser santos. A Igreja, Casa do Senhor, precisa de mulheres e homens santos.

        Ser santo não é ser perfeito. A perfeição é um atributo divino, homem nenhum a alcança. Todos já nascemos pecadores, e somos socorridos pela graça de Deus, que jamais nos abandona. É esta graça que nos purifica e nos ilumina. Todo aquele que escuta o chamado e se abre à graça santificante, encontra-se definitivamente com Deus e com Ele permanece para sempre. Quem encontra Deus jamais o perde, porque Ele não permite que nos percamos e nos separemos dele. É um caso de amor eterno.

        Santa é a pessoa que ama, e no amor se entrega. Não há santo fora do amor. É o amor que transforma a pessoa. A graça divina é o amor derramado nos corações das pessoas. Este amor é a única força capaz de dar segurança, tranquilidade e paz. É a rocha sobre a qual podemos construir, sem medo, a nossa vida. Quem ama conhece a Deus, e isto é maravilhoso. Não há palavras que possam descrever o sentimento profundo daquele que é amado por Deus. Não há como descrever.

        A graça de Deus vai conformando a nossa vida na direção de Deus. Iluminados e orientados por sua graça, caminhamos com e para Ele. Enamorar-se de Deus, eis o que isto significa. Quando envolvidos por esta graça que santifica, já não precisamos nos preocupar com absolutamente nada. Deus cuida de todas as coisas. É Ele que tudo direciona para o nosso bem. Ele também nos liberta do medo paralisante. Em Deus não há medo, e quem a Ele se entrega, também perde o medo.

        Os santos vivem a aventura do amor. Nesta aventura são santificados. Este amor não é abstração, mas comunhão com os outros. O encontro com os outros revela o amor de Deus por cada pessoa, por cada santo. Não há santidade fora da comunhão com os outros. Esta comunhão se revela na simples presença, no estar junto com os outros, no permanecer. 

Deus permanece conosco nos outros. Esta é a opção de Deus. Desse modo, não é santo aquele que se isola, para ficar orando o dia todo, contemplando no conforto das capelas e salas de oração. Orar é preciso, pois não há santo que não seja uma pessoa de oração. Mas não se santifica aquele que se utiliza da oração para fugir dos outros.

        O santo descobre que estar com os outros é uma forma de oração. Orar significa encontrar-se com Deus, e este encontro acontece de várias formas. A oração pessoal e comunitária são apenas duas formas de encontro com Deus. A solene liturgia faz bem aos sentidos e ao coração, mas não é a única forma de encontro com Deus. Muitas vezes, somente ao contemplar o sofrimento das pessoas, já estamos orando. Acompanhar o sofrimento das pessoas é uma sublime forma de oração, de encontro com Jesus crucificado.

        Poderíamos falar muitas outras coisas sobre a santidade, mas basta-nos concluir com a chave de leitura fundamental para a compreensão correta do chamado à vida santa: viver segundo o Espírito que sonda todas as coisas e nos faz santos no amor. Este é o segredo da santidade. Este Espírito infunde-nos a graça, é Ele mesmo a graça agindo em nós.

Ele tudo nos revela e nos faz verdadeiramente humanos e filhos de Deus. Quanto mais humanos, mais santos somos. A santidade é discreta e o santo vive em comunhão com Deus a partir das coisas simples da vida. Não se identifica o santo pela sua aparência. Jesus, o Santo de Deus, foi considerado um comilão e beberrão, amigo dos pecadores públicos. Os santos de Deus se parecem com Jesus, humanamente desfigurados e pouco atraentes. Assim são as coisas de Deus.

Tiago de França