“Prefiro
uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma
Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa
em um emaranhado de obsessões e procedimentos” (Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium, n. 49).
Evangélico e belo é o ideal da Igreja em saída, reforçado
pelo Papa Francisco. Nestes dias, os católicos e muitos não católicos celebram
os seis anos de seu pontificado. Também queremos oferecer algumas provocações
sobre a contribuição do Papa Francisco à Igreja, com ênfase no tema da Igreja
em saída, que parece ser o centro de sua eclesiologia, ou seja, da sua maneira
de enxergar e conceber a Igreja e sua missão no mundo. Trata-se de um
comentário breve ao número 49 da Evangelium
Gaudium.
1.
Uma Igreja enferma
O Papa diz que enferma
é a Igreja que se fecha em si mesma e se entrega às comodidades, agarrando-se
às próprias seguranças. Quem conhece a história da Igreja, especialmente o
período que vai do momento em que o cristianismo se tornou a religião oficial
do império romano até o concílio Vaticano II, sabe que estas duas tentações
sempre a perseguiram. Infelizmente, a Igreja caiu nestas duas tentações, dentre
outras: fechamento e apego às próprias seguranças.
O fechamento levou a Igreja a isolar-se do mundo. Ela se
compreendia como uma sociedade perfeita. A hierarquia eclesiástica, separada
dos leigos, vivia isolada do mundo. O clérigo era um ser separado, um
privilegiado, alguém chamado à santidade. O ideal da santidade não contemplava
a vida no mundo, mas se encerrava numa vida ascética, entregue à oração, aos
estudos e à contemplação isolada nos claustros e residências religiosas. O sacerdote
não era visto como um homem, mas uma espécie de entidade pura, vestida de preto
(diocesanos) e outras cores (hábitos dos religiosos), únicos portadores do
mistério.
Muito facilmente, os clérigos se sentiam como pessoas que
estavam acima das demais. No seminário era ensinado que este estilo de vida correspondia
à vontade de Deus. Não era dito aos leigos que eles eram chamados à santidade,
pois viviam no mundo. Entendia-se que quem vivia no mundo era mundano. No espaço
público, a Igreja aparecia como manifestação pública da fé, que ocorria por
meio das quermesses, procissões, acordos políticos bilaterais etc. Antes da
Reforma Protestante do séc. XVI, entendia-se que o mundo deveria ser cristão católico.
Para ser salvo era necessário se converter à fé cristã católica.
Uma Igreja fechada em si mesma também é uma Igreja
voltada para si mesma, preocupada em ser o centro, presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos. A burocracia
religiosa é um fenômeno típico deste modelo ultrapassado de Igreja: regras para
tudo, e parte delas existia para dificultar o caminho de acesso à graça de
Deus. Até hoje algumas permanecem, apesar das exortações do Papa, que tem
insistido no desaparecimento delas.
Fechada em si mesma, a Igreja não tem interesse naquilo
que acontece no mundo e, consequentemente, também não se preocupa com a vida
das pessoas que habitam o mundo. Os próprios interesses passam a ocupar o
centro das atividades eclesiais, marginalizando-se, assim, o anúncio do
Evangelho de Jesus. Desse modo, a Igreja perde a sua razão de ser, pois nasceu
para evangelizar. Uma Igreja fechada em si mesma também não está aberta às
surpresas de Deus.
Outra pedra de tropeço na longa história da Igreja é o
apego às próprias seguranças. Certamente, toda instituição precisa de meios
para desenvolver a sua missão. Com a Igreja não é diferente. Mas quando falamos
de Igreja, não estamos nos referindo a uma instituição comum, mas de uma
comunidade de crentes, instituída sobre a pedra angular, que é Jesus, o
Messias. Jesus é o fundamento da Igreja e, portanto, a razão de ser e de
existir da Igreja no mundo.
Composta por mulheres e homens que vivem a experiência do
pecado, a Igreja muitas vezes se desvia do caminho, perde o rumo da navegação no
grandioso oceano da vida e da história. Pela fé, o Espírito a conduz,
trabalhando diuturnamente, para direcioná-la a Deus. Em meio às fraquezas e
quedas, ela muitas vezes se apega às próprias seguranças. A aquisição de um
imenso patrimônio material e cultural, bem como as alianças com os poderes
deste mundo, durante a sua longa história, fizeram com que a Igreja se
transformasse em uma instituição dotada de poder humano.
Quando se tem prestígio, poder e riqueza, corre-se o risco
de se entregar a estas coisas. A confiança nestas coisas é caminho certo rumo à
perdição. Desse modo, perde-se o horizonte da missão. Jesus deixa de ser a riqueza
fundamental, sendo substituído pelas seguranças que o prestígio, o poder e a riqueza
podem assegurar. A confiança em Deus fica gravemente comprometida, e começam a
aparecer os escândalos que tem provocado uma ferida grandiosa na Igreja,
ultimamente exposta aos olhares do mundo.
2.
Uma Igreja em saída
Na visão do Papa, a
Igreja em saída é uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas. Para se ferir,
acidentar-se e enlamear-se, a Igreja precisa sair de si mesma. Sair para onde? A
missão da Igreja acontece neste mundo; mundo criado por Deus e lugar da sua
manifestação. O povo de Deus vive no mundo, e os pobres do povo, que são os
mais vulneráveis, vivem nas periferias do mundo. Parece óbvia esta realidade,
mas não era a compreensão que se tinha antes do Vaticano II. A espiritualidade
cristã pré-conciliar era marcada por uma escandalosa fuga do mundo. Com o
concílio se descobriu que, fugindo do mundo, a Igreja não consegue cumprir o
mandato missionário que recebeu de Jesus.
Atualmente, há uma onda neopentecostal presente nas
Igrejas cristãs, que tem revisitado algumas experiências espiritualistas da
Igreja pré-conciliar. Esta onda também tem ressuscitado a espiritualidade
marcada pelo desprezo às realidades do mundo e por uma fuga que, em muitos
casos, chega a ser doentia. Há sinais evidentes daquilo que podemos chamar de
esquizofrenia espiritual, ou seja, do cultivo de uma espiritualidade marcada
pela mania de perseguição espiritual e outras perturbações congêneres. Não se
vislumbra a caridade fraterna, presente no compromisso efetivo e afetivo com os
injustiçados deste mundo. Fala-se em salvação das almas, como se estas
existissem neste mundo sem o corpo ferido das pessoas, dos crucificados da
história.
Somente uma Igreja em saída é capaz de correr riscos em
nome das grandes causas do Reino de Deus. As periferias existenciais são
muitas, e o povo continua sendo vítima dos poderosos deste mundo. A sede e a
procura por Deus continuam existindo, e a desorientação é generalizada. Assim como
no passado, também hoje a Igreja é desafiada a ir ao encontro dos que clamam
por justiça e paz. O mundo está cada vez mais efervescente: os conflitos estão
se acirrando, e o sangue dos inocentes é constantemente derramado.
Quem se unirá ao clamor das vítimas? Quem anunciará a Boa
Notícia do Reino de Deus aos pobres? Quem tomará o partido dos injustiçados? As
liturgias das Igrejas cristãs expressam o clamor das vítimas? A Igreja tem sino
um sinal de comunhão com os que sofrem? Tem ela realizado o papel do bom
samaritano, que cuidou das feridas do caído? Os líderes religiosos tem se
identificado com o Cristo, Bom Pastor, aquele que foi capaz de dar a vida pelas
pessoas? Constatam-se conflitos com os poderosos deste mundo por causa da opção
pelos pobres e pela defesa da terra e seus recursos? O que tem sido mais
importante: a vida das pessoas, ou as leis e/ou as prescrições legais? Estas e
outras são questões que nos levam a enxergar a necessidade da conversão das
estruturas institucionais e da mentalidade dos que professam a fé no seio das
Igrejas.
3.
Um Papa que convida à conversão
O colégio cardinalício
viu no cardeal Bergoglio a oportunidade providencial para chamar a Igreja à
conversão. Na data de sua eleição, a Igreja católica estava sofrendo com a
publicação de inúmeros escândalos sexuais, entre outros problemas. Isto comprometeu
seriamente a imagem e a missão da Igreja. Assim que assumiu o pontificado,
Francisco deu um novo tom na forma de o Papa falar, vestir, celebrar, pregar e
estar entre as pessoas. Antes dele, a figura do Papa era muito protocolar. O pontífice
aparecia de forma muito solene e pomposa, com linguagem, usos e paramentos
antigos. Francisco permaneceu como vivia na Argentina: despojado e simples,
próximo e profeticamente ousado. Utiliza uma linguagem acessível ao povo, e se
esforça para não ser visto como um homem distante. A sua piedade é humilde.
Porque não reforça a linguagem e a ideologia do poder
clerical, o Papa encontrou e continua encontrando resistências entre leigos, seminaristas,
padres, bispos e cardeais. Nos EUA, um arcebispo pediu, publicamente, a
renúncia do Papa. Estes conflitos no alto escalão da Igreja se tornaram
público, e ele tem sido sábio no enfrentamento de seus adversários. Aos opositores
tem respondido levando uma vida dedicada à oração, à acolhida das pessoas e ao
anúncio corajoso do Evangelho. Aos clérigos, seus discursos tem sido enfáticos,
combatendo o mal do clericalismo, tão antigo e enraizado na vida da Igreja, e
causador de inúmeros pecados e até crimes eclesiásticos.
Não é o Papa sozinho que mudará toda a Igreja. A conversão
desta não depende somente de uma pessoa. Nem que o Papa se utilizasse de todo o
seu poder de mando, exercendo-o de forma autoritária, de cima para baixo, mesmo
assim a Igreja não mudaria. O autoritarismo não provoca mudanças, mas causa
feridas. A conversão não passa pelo uso do poder. Pelo menos o poder não foi o
remédio dado por Jesus para a conversão das pessoas. Uma vez convertidas, estas
são capazes de transformar o mundo e a Igreja. Não adianta mudar as estruturas
se as pessoas estão viciadas. Também não adianta defender que as estruturas não
podem ser mudadas. A conversão das pessoas provoca a conversão das estruturas. Pessoas
renovadas em estruturas ultrapassadas é como o vinho novo em odres velhos.
É verdade que o Papa tem se esforçado para transformar a
Igreja numa verdadeira Igreja samaritana, disposta a servir os caídos nas
estradas do mundo. Ele tem apontado nesta direção. É verdade também que muitas
coisas permanecem do mesmo jeito, sem mudanças substanciais. Neste caso, não
basta ter boa vontade, mas é preciso também contar com a força das
circunstâncias. A Igreja não é uma instituição nova, portanto, assim como as suas
estruturas foram sendo formadas ao longo de séculos, a desconstrução,
reconfiguração e/ou atualização requerem tempo e enfrentamentos. O apego e as
disputas pelo poder tem atrapalhado muito o processo de conversão das
estruturas e das pessoas na Igreja.
Não condenar, mas
reabilitar teólogos; não julgar, mas acolher as pessoas cansadas e atribuladas;
não recuar, mas denunciar os crimes do sistema capitalista selvagem; não acobertar,
mas provocar a discussão sobre os abusos sexuais praticados por clérigos e
religiosos, buscando soluções possíveis; não somente ensinar e exortar, mas
abrir o ouvido para o exercício da escuta das pessoas e das vítimas; não compactuar,
mas chamar as lideranças eclesiásticas para a experiência da conversão do
coração e da mente; não se distanciar, mas falar e agir com simplicidade e
proximidade; não abusar do poder, mas confiar no auxílio do Espírito que sonda
todas as coisas... Estas atitudes de Francisco tem ajudado muita gente a entrar
no caminho de Jesus e nele perseverar.
Que este mesmo Espírito faça brotar e frutificar no seio
da Igreja e neste mundo dividido por discórdias, as sementes da justiça e da
paz semeadas por Francisco. E que seu pontificado perdure por mais alguns anos,
para que o ar da primavera continue circulando no seio da Igreja, esta
embarcação que tem sobrevivido às águas agitadas do mar da vida. Sejamos, pois,
esperançosos!
Tiago de França
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