“Todos
os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros. Nunca se
ouviu que um membro, nem mesmo nos animais, tenha sido insensível à dor do
outro membro; que uma parte do homem seja esmagada, ferida ou vítima de
violência, e que as outras não se ressintam. Isto é impossível. Todos os nossos
membros tem tanta simpatia e ligação uns com os outros que o mal de um é o mal
do outro. Com mais razão, os cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e
membros uns dos outros, são obrigados a compadecer-se. O quê! Ser cristão e ver
seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É ser sem
caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior que os
animais” (São Vicente de Paulo, presbítero, em 30 de maio de 1659).
Neste dia 27 de setembro, data da memória litúrgica de
São Vicente de Paulo (1581 – 1660), nos parece oportuno fazermos uma reflexão
sobre estas palavras deste santo homem de Deus. Na Igreja, muitas vezes, as
pessoas tendem a ter devoção aos santos sem conhecer o conteúdo daquilo que eles
ensinaram e viveram. Este tipo de devoção não tem sentido. A devoção aos santos
somente é legítima quando nos conduz ao seguimento de Jesus Cristo, pois os
santos são modelos de seguimento de Jesus Cristo. O devoto precisa conhecer a
vida e os ensinamentos dos santos para, à luz do testemunho deles, colocar-se
no caminho de Jesus e nele perseverar.
As palavras de São Vicente, que introduzem esta breve
reflexão, foram ditas quase no fim da sua vida. Portanto, trata-se de um forte
ensinamento, dado com autoridade, que saiu da boca de um homem experiente, de
um discípulo missionário de Jesus, servidor dos pobres. Quem conhece a
biografia de São Vicente percebe a verdade deste ensinamento. E quem conhece a
história da Igreja, desde a época deste grande santo até hoje, percebe também a
importância e a atualidade de suas palavras. Tudo o que São Vicente falava
estava em plena sintonia com a missão que exercia. A sua espiritualidade é
essencialmente cristológica, ou seja, considerava Jesus Cristo o modelo por excelência
de missionário e de missão. Cristo Jesus está no centro da espiritualidade de
São Vicente de Paulo.
Mas o Cristo Jesus contemplado e conhecido por São
Vicente era intimamente ligado aos pobres. Para ele, não existe o Cristo Jesus
sem os pobres. Jesus Cristo é aquele que foi enviado para evangelizar os pobres
(cf. Lc 4,18). Trata-se de uma destinação exclusiva. Por isso, São Vicente
dizia aos Padres e Irmãos da Missão (Lazaristas), congregação fundada por ele,
que estavam destinados, exclusivamente, à evangelização dos pobres, assim como
Jesus, pois este mesmo Cristo Jesus “é a regra da missão”. O carisma vicentino
é profundamente cristológico e missionário. Jesus Cristo e os pobres ocupam a
centralidade do carisma e da missão vicentina.
A leitura e a interpretação que São Vicente fez do
Evangelho de Jesus é teologicamente ortodoxa, pois ele vai no coração da
mensagem de Jesus: o anúncio do Reino de Deus, em primeiro lugar, aos pobres. Na
história da Igreja não existia, antes dele, uma Congregação de Padres e Irmãos
com dedicação exclusiva à evangelização dos pobres. São Vicente escutou os
apelos do Espírito Santo nos pobres. Na sua época, estes estavam abandonados: não
eram assistidos, nem materialmente nem espiritualmente. O povo passava fome,
porque faltavam o pão material e o espiritual. São Vicente ensinava que é
necessário matar a fome de alimento e a fome da Palavra de Deus e da
Eucaristia. Também a Companhia das Filhas da Caridade foi criada com a mesma
finalidade: evangelizar os pobres.
A fundação da Congregação da Missão e da Companhia das
Filhas da Caridade são expressões de um Deus que está presente, operando suas
maravilhas no mundo. São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac estavam
convictos de que Deus estava presente e pedia este serviço humano e espiritual
aos pobres. Com o crescimento do número daqueles e daquelas que ingressavam nas
fileiras do serviço missionário, esta convicção da vontade de Deus para aquele
momento histórico crescia cada vez. Esta presença amorosa e confirmadora de
Deus fazia com que São Vicente e Santa Luísa fossem aprofundando o carisma e,
assim, no amor afetivo e efetivo para com os pobres, imprimiram na Igreja a
centralidade de Jesus Cristo na Igreja a partir dos pobres.
Meditemos agora as palavras de São Vicente, transcritas
no início desta reflexão. São palavras ricas de conteúdo teológico e
espiritual, que merecem ser lidas, meditadas e trazidas para o hoje do nosso
agir eclesial e social.
“Todos
os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros...”
A imagem do corpo místico nos fala da unidade. Em tempos
pós-modernos, esta imagem não parece ter muito sentido. A partir da modernidade,
o individualismo que decorre da centralização no próprio eu, tornou-se a regra
da relação entre as pessoas. O ditado popular “cada um por si, e Deus por
todos!” passou a ser muito difundido. Para Jesus e São Vicente, não existe esse
“cada um por si”. Deus nada faz na vida de quem pratica esta regra. “Cada um
por si” é sinônimo de egoísmo, e este é anticristão. Teologicamente, afirma-se
que a Igreja é corpo místico de Cristo, e que na comunidade cristã somos
membros uns dos outros, pautando-se na eclesiologia do apóstolo Paulo, genuinamente
cristã.
Esta unidade do corpo místico de Cristo não corresponde à
uniformidade. São Vicente sabia muito bem disso. O homem moderno e,
posteriormente, o pós-moderno descobriu o sentido e o valor da promoção da
diversidade. As pessoas, as culturas e os modos de ser e de viver são plurais. Também
são plurais as crenças e as religiões, as subjetividades, e a vida no seu
conjunto. Somos chamados à unidade na diversidade dos dons, carismas, culturas,
religiosidade e vivências. A diversidade é natural e necessária, sem a qual a
vida seria tediosa e insuportável. As realidades humanas e o próprio ser humano
não são passíveis de repetição. O novo sempre gera o plural, e quem não se
reconcilia com esta realidade fundamental não consegue se situar no mundo.
Em São Vicente, a imagem do corpo místico nos revela o
rosto dos outros. Estes existem. Como viver neste mundo se comportando como se
os outros não existissem? Não há vida autêntica sem os outros. Nenhum ser
humano se descobre e cresce sem a relação com os outros. A humanidade somente
evolui na saudável relação com os outros. Caímos numa profunda crise
identitária e civilizatória quando os outros são esquecidos e excluídos. Parece
ser a realidade deste início de século. Em São Vicente, os outros são os
pobres, os explorados e esquecidos, os que padecem toda sorte de sofrimento. Os
pobres são membros do corpo místico de Cristo; desprezá-los corresponde a
desprezar o próprio Cristo Jesus.
Qual tem sido o lugar dos pobres na vida de nossas
Igrejas cristãs? Hoje, a pergunta mais apropriada parece ser: Para que serve os
pobres em nossas Igrejas cristãs? Esta pergunta explicita uma visão
utilitarista dos pobres. Serve somente para devolver o dízimo, para assumir
funções nas comunidades, para servir aos sacerdotes, para ouvir sermões
moralistas, para serem domesticados em função do bem-estar dos mais ricos? Como
as Igrejas tem evangelizado os pobres? Eles são, de fato, tratados como membros
corpo místico de Cristo? São Vicente dizia que os pobres “são os nossos mestres
e senhores”. Isto é profundamente místico e teológico.
“...os
cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e membros uns dos outros, são obrigados
a compadecer-se”.
A compaixão é uma virtude cristã. Quem segue a Jesus se
torna membro do seu corpo, e com os demais irmãos e irmãs que professam a mesma
fé e se encontram no mesmo caminho, torna-se membro destes outros. Quem vive em
plena comunhão com Jesus, vive em comunhão plena com os outros. Não há exceção.
Fora da comunhão não existe salvação. Nenhum cristão pode viver isolado,
cultivando uma comunhão somente com Deus. Isto não é ser cristão. Ter os olhos
fixos em Jesus significa ter os olhos filhos nos outros, porque Jesus está nos
outros: Ele está no meio de nós. Ele está em nós. Fora da comunhão não há
compaixão. Como vou me compadecer dos outros se não me relaciono, se fujo das
pessoas, se as enxergo com espírito de superioridade, se as julgo indignas da
minha presença e da minha amizade?
Padecer com os outros é participar de seus sofrimentos. Isto
é profundamente evangélico e, consequentemente, cristão. Não há cristianismo de
guetos, de grupos que se isolam para adorar o Senhor e se recusam a padecer com
os outros. Isto é falso cristianismo. Também não há autêntico cristianismo em
grupos que se dedicam a causar divisão e confusão, instigando o ódio entre as
pessoas, recusando-se a aceitar a diversidade dos dons, carismas e modos de ser
e de viver.
Na verdade,
quem assim procede se torna inimigo da cruz de Cristo e do corpo místico de
Cristo. Estes pecados integram o hoje de nossas Igrejas cristãs. O cristianismo
se encontra cada vez mais dividido e marcado pela cultura do ódio e da
eliminação dos outros. Estas coisas não derivam da comunhão com Deus, mas da
ação de pessoas mal-intencionadas, que agem como se fossem demônios, agentes
causadores da discórdia.
Compaixão não é sentir pena dos outros, mas sentir com as
entranhas a realidade dos outros. Jesus viveu esta experiência. A compaixão é
um movimento na direção dos que sofrem. É um movimento, portanto, indica emoção
e ação. Um cristianismo excessivamente emotivo é prejudicial, porque se torna
facilmente alienante. O excesso das emoções sufoca a liberdade da pessoa. É uma
espécie perigosa de escravidão. Em nossos dias, graças ao excesso de apreço à
subjetividade, as pessoas estão muito emotivas.
Facilmente,
o cristianismo se transforma numa ferramenta a serviço de uma espécie de
overdose emocional. Daí decorre a valorização somente do estilo de vivência
cultual que toca as emoções, provocando o choro, os arrepios, os desmaios, as
supostas visões e êxtases, gritarias, confusão mental etc. Jesus não pediu
isso. A compaixão é simples, é do cotidiano da vida, é amor-doação.
“Ser
cristão e ver seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É
ser sem caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior
que os animais”.
Duas das características da espiritualidade de São
Vicente é a objetividade e a clareza. Ele era muito simples no que dizia,
porque a sua ação missionária era vivida entre os simples. São Vicente não se
perdia em grandes discursos teológicos, de conteúdo abstrato e de difícil
entendimento. Era um místico da missão, simples e acessível a todos. Não vivia
encerrado em mosteiros e conventos, mas estava presente, junto ao pobre
sofredor. Era um profundo entendedor da aflição dos pobres. Conhecia de perto a
vida deles; comungava de suas dores e aflições.
Suas palavras nos questionam: Até que ponto estamos
dispostos a viver em comunhão com o sofrimento dos outros? Precisamos rezar
esta indagação. Para entrarmos no movimento da misericórdia e da compaixão,
precisamos nos posicionar. Orar, meditar, refletir e sentir são realidades
importantes. Mas em nosso cotidiano, como nos comportamos diante da aflição dos
outros? O que, de fato, fazemos? Ou somos indiferentes? Ser santo depende
disso: ser caridoso, ter humanidade. O “cristão em pintura” é aquele cristão
bonito, bem aparentado, bem decorado, com verniz sempre novo... Mas não passa
disso. É o cristão de aparência, que pode ser até muito piedoso, mas que trata
o irmão aflito com total indiferença.
“Ser pior que os
animais”. Esta expressão é impactante. A pessoa humana possui uma dignidade
maior que a dos animais e, portanto, deve ser tratada com todo respeito e amor.
Até os animais tratamos com o devido cuidado. As pessoas merecem a nossa
atenção, cuidado, proximidade, acolhida, compreensão e amor. É isto que Jesus
pede; é isto que nos ensina São Vicente. Este amor às pessoas é incondicional,
ou seja, amamo-las porque são nossas irmãs em Cristo Jesus, porque conosco
formam o corpo místico de Cristo. Nós as amamos porque esta é a nossa vocação:
amamos a cada uma delas do jeito que são, sem impor a obrigação de que mudem
para satisfazer os nossos caprichos.
A tendência do cristianismo atual é trilhar outro
caminho, diametralmente oposto: existe uma espécie de egocentrismo espiritual,
ou seja, um eu que deseja sempre se sobrepor, “justificado” por práticas
religiosas e excessos de piedade. O Papa Francisco, profeta de nossos dias, faz
menção a um mal congênere, presente no cristianismo atual: o mundanismo espiritual.
Nesta realidade,
as pessoas aparentam ser religiosas, mas são, na verdade, mundanas, entregues a
toda espécie de apegos e males: são maliciosas, covardes, oportunistas,
competitivas, materialistas, vaidosas, hedonistas etc., mas que alimentam certa
piedade cujo objetivo é o de camuflar todas estas coisas.
São Vicente nos ensina a termos humanidade. Isto significa
que precisamos crescer em humanidade, que não está desvinculada da dimensão
espiritual da vida. Pessoas verdadeiramente espirituais são verdadeiramente
humanas. Ser humano significa sentir a vida, sentir os outros, sentir-se
pessoa, gente. A espiritualidade cristã não nos eleva para outro mundo. A
missão do cristão acontece neste mundo, pois Deus criou este mundo para o ser
humano e nele está presente.
São Vicente
era um homem de Deus, espiritualizado, mas, simultaneamente, humano e enraizado
na realidade. Era um místico prático, do cotidiano, em plena comunhão com o
Deus que se fez carne e habita entre nós e em nós. Hoje, São Vicente nos diz:
Lembrai-vos, irmãos, da carne de Cristo nos corpos sofridos e mutilados dos
mais pobres! Em sintonia com a mensagem profética do Papa Francisco, nos diz
São Vicente: Saiam, irmãos, pelo mundo afora! Ide ao encontro dos pobres, nossos
mestres e senhores! Assim, nossa Igreja encontrará o verdadeiro caminho da
conversão pastoral, tão urgentemente necessária.
Tiago de França