sexta-feira, 27 de setembro de 2019

São Vicente de Paulo e a caridade


“Todos os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros. Nunca se ouviu que um membro, nem mesmo nos animais, tenha sido insensível à dor do outro membro; que uma parte do homem seja esmagada, ferida ou vítima de violência, e que as outras não se ressintam. Isto é impossível. Todos os nossos membros tem tanta simpatia e ligação uns com os outros que o mal de um é o mal do outro. Com mais razão, os cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e membros uns dos outros, são obrigados a compadecer-se. O quê! Ser cristão e ver seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É ser sem caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior que os animais” (São Vicente de Paulo, presbítero, em 30 de maio de 1659).

            Neste dia 27 de setembro, data da memória litúrgica de São Vicente de Paulo (1581 – 1660), nos parece oportuno fazermos uma reflexão sobre estas palavras deste santo homem de Deus. Na Igreja, muitas vezes, as pessoas tendem a ter devoção aos santos sem conhecer o conteúdo daquilo que eles ensinaram e viveram. Este tipo de devoção não tem sentido. A devoção aos santos somente é legítima quando nos conduz ao seguimento de Jesus Cristo, pois os santos são modelos de seguimento de Jesus Cristo. O devoto precisa conhecer a vida e os ensinamentos dos santos para, à luz do testemunho deles, colocar-se no caminho de Jesus e nele perseverar.

            As palavras de São Vicente, que introduzem esta breve reflexão, foram ditas quase no fim da sua vida. Portanto, trata-se de um forte ensinamento, dado com autoridade, que saiu da boca de um homem experiente, de um discípulo missionário de Jesus, servidor dos pobres. Quem conhece a biografia de São Vicente percebe a verdade deste ensinamento. E quem conhece a história da Igreja, desde a época deste grande santo até hoje, percebe também a importância e a atualidade de suas palavras. Tudo o que São Vicente falava estava em plena sintonia com a missão que exercia. A sua espiritualidade é essencialmente cristológica, ou seja, considerava Jesus Cristo o modelo por excelência de missionário e de missão. Cristo Jesus está no centro da espiritualidade de São Vicente de Paulo.

            Mas o Cristo Jesus contemplado e conhecido por São Vicente era intimamente ligado aos pobres. Para ele, não existe o Cristo Jesus sem os pobres. Jesus Cristo é aquele que foi enviado para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,18). Trata-se de uma destinação exclusiva. Por isso, São Vicente dizia aos Padres e Irmãos da Missão (Lazaristas), congregação fundada por ele, que estavam destinados, exclusivamente, à evangelização dos pobres, assim como Jesus, pois este mesmo Cristo Jesus “é a regra da missão”. O carisma vicentino é profundamente cristológico e missionário. Jesus Cristo e os pobres ocupam a centralidade do carisma e da missão vicentina.

            A leitura e a interpretação que São Vicente fez do Evangelho de Jesus é teologicamente ortodoxa, pois ele vai no coração da mensagem de Jesus: o anúncio do Reino de Deus, em primeiro lugar, aos pobres. Na história da Igreja não existia, antes dele, uma Congregação de Padres e Irmãos com dedicação exclusiva à evangelização dos pobres. São Vicente escutou os apelos do Espírito Santo nos pobres. Na sua época, estes estavam abandonados: não eram assistidos, nem materialmente nem espiritualmente. O povo passava fome, porque faltavam o pão material e o espiritual. São Vicente ensinava que é necessário matar a fome de alimento e a fome da Palavra de Deus e da Eucaristia. Também a Companhia das Filhas da Caridade foi criada com a mesma finalidade: evangelizar os pobres.

            A fundação da Congregação da Missão e da Companhia das Filhas da Caridade são expressões de um Deus que está presente, operando suas maravilhas no mundo. São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac estavam convictos de que Deus estava presente e pedia este serviço humano e espiritual aos pobres. Com o crescimento do número daqueles e daquelas que ingressavam nas fileiras do serviço missionário, esta convicção da vontade de Deus para aquele momento histórico crescia cada vez. Esta presença amorosa e confirmadora de Deus fazia com que São Vicente e Santa Luísa fossem aprofundando o carisma e, assim, no amor afetivo e efetivo para com os pobres, imprimiram na Igreja a centralidade de Jesus Cristo na Igreja a partir dos pobres.

            Meditemos agora as palavras de São Vicente, transcritas no início desta reflexão. São palavras ricas de conteúdo teológico e espiritual, que merecem ser lidas, meditadas e trazidas para o hoje do nosso agir eclesial e social.

“Todos os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros...”

            A imagem do corpo místico nos fala da unidade. Em tempos pós-modernos, esta imagem não parece ter muito sentido. A partir da modernidade, o individualismo que decorre da centralização no próprio eu, tornou-se a regra da relação entre as pessoas. O ditado popular “cada um por si, e Deus por todos!” passou a ser muito difundido. Para Jesus e São Vicente, não existe esse “cada um por si”. Deus nada faz na vida de quem pratica esta regra. “Cada um por si” é sinônimo de egoísmo, e este é anticristão. Teologicamente, afirma-se que a Igreja é corpo místico de Cristo, e que na comunidade cristã somos membros uns dos outros, pautando-se na eclesiologia do apóstolo Paulo, genuinamente cristã.

            Esta unidade do corpo místico de Cristo não corresponde à uniformidade. São Vicente sabia muito bem disso. O homem moderno e, posteriormente, o pós-moderno descobriu o sentido e o valor da promoção da diversidade. As pessoas, as culturas e os modos de ser e de viver são plurais. Também são plurais as crenças e as religiões, as subjetividades, e a vida no seu conjunto. Somos chamados à unidade na diversidade dos dons, carismas, culturas, religiosidade e vivências. A diversidade é natural e necessária, sem a qual a vida seria tediosa e insuportável. As realidades humanas e o próprio ser humano não são passíveis de repetição. O novo sempre gera o plural, e quem não se reconcilia com esta realidade fundamental não consegue se situar no mundo.

            Em São Vicente, a imagem do corpo místico nos revela o rosto dos outros. Estes existem. Como viver neste mundo se comportando como se os outros não existissem? Não há vida autêntica sem os outros. Nenhum ser humano se descobre e cresce sem a relação com os outros. A humanidade somente evolui na saudável relação com os outros. Caímos numa profunda crise identitária e civilizatória quando os outros são esquecidos e excluídos. Parece ser a realidade deste início de século. Em São Vicente, os outros são os pobres, os explorados e esquecidos, os que padecem toda sorte de sofrimento. Os pobres são membros do corpo místico de Cristo; desprezá-los corresponde a desprezar o próprio Cristo Jesus.

            Qual tem sido o lugar dos pobres na vida de nossas Igrejas cristãs? Hoje, a pergunta mais apropriada parece ser: Para que serve os pobres em nossas Igrejas cristãs? Esta pergunta explicita uma visão utilitarista dos pobres. Serve somente para devolver o dízimo, para assumir funções nas comunidades, para servir aos sacerdotes, para ouvir sermões moralistas, para serem domesticados em função do bem-estar dos mais ricos? Como as Igrejas tem evangelizado os pobres? Eles são, de fato, tratados como membros corpo místico de Cristo? São Vicente dizia que os pobres “são os nossos mestres e senhores”. Isto é profundamente místico e teológico.

“...os cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e membros uns dos outros, são obrigados a compadecer-se”.

            A compaixão é uma virtude cristã. Quem segue a Jesus se torna membro do seu corpo, e com os demais irmãos e irmãs que professam a mesma fé e se encontram no mesmo caminho, torna-se membro destes outros. Quem vive em plena comunhão com Jesus, vive em comunhão plena com os outros. Não há exceção. Fora da comunhão não existe salvação. Nenhum cristão pode viver isolado, cultivando uma comunhão somente com Deus. Isto não é ser cristão. Ter os olhos fixos em Jesus significa ter os olhos filhos nos outros, porque Jesus está nos outros: Ele está no meio de nós. Ele está em nós. Fora da comunhão não há compaixão. Como vou me compadecer dos outros se não me relaciono, se fujo das pessoas, se as enxergo com espírito de superioridade, se as julgo indignas da minha presença e da minha amizade?

            Padecer com os outros é participar de seus sofrimentos. Isto é profundamente evangélico e, consequentemente, cristão. Não há cristianismo de guetos, de grupos que se isolam para adorar o Senhor e se recusam a padecer com os outros. Isto é falso cristianismo. Também não há autêntico cristianismo em grupos que se dedicam a causar divisão e confusão, instigando o ódio entre as pessoas, recusando-se a aceitar a diversidade dos dons, carismas e modos de ser e de viver.  

Na verdade, quem assim procede se torna inimigo da cruz de Cristo e do corpo místico de Cristo. Estes pecados integram o hoje de nossas Igrejas cristãs. O cristianismo se encontra cada vez mais dividido e marcado pela cultura do ódio e da eliminação dos outros. Estas coisas não derivam da comunhão com Deus, mas da ação de pessoas mal-intencionadas, que agem como se fossem demônios, agentes causadores da discórdia.

            Compaixão não é sentir pena dos outros, mas sentir com as entranhas a realidade dos outros. Jesus viveu esta experiência. A compaixão é um movimento na direção dos que sofrem. É um movimento, portanto, indica emoção e ação. Um cristianismo excessivamente emotivo é prejudicial, porque se torna facilmente alienante. O excesso das emoções sufoca a liberdade da pessoa. É uma espécie perigosa de escravidão. Em nossos dias, graças ao excesso de apreço à subjetividade, as pessoas estão muito emotivas.  

Facilmente, o cristianismo se transforma numa ferramenta a serviço de uma espécie de overdose emocional. Daí decorre a valorização somente do estilo de vivência cultual que toca as emoções, provocando o choro, os arrepios, os desmaios, as supostas visões e êxtases, gritarias, confusão mental etc. Jesus não pediu isso. A compaixão é simples, é do cotidiano da vida, é amor-doação.

“Ser cristão e ver seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É ser sem caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior que os animais”.

            Duas das características da espiritualidade de São Vicente é a objetividade e a clareza. Ele era muito simples no que dizia, porque a sua ação missionária era vivida entre os simples. São Vicente não se perdia em grandes discursos teológicos, de conteúdo abstrato e de difícil entendimento. Era um místico da missão, simples e acessível a todos. Não vivia encerrado em mosteiros e conventos, mas estava presente, junto ao pobre sofredor. Era um profundo entendedor da aflição dos pobres. Conhecia de perto a vida deles; comungava de suas dores e aflições.

            Suas palavras nos questionam: Até que ponto estamos dispostos a viver em comunhão com o sofrimento dos outros? Precisamos rezar esta indagação. Para entrarmos no movimento da misericórdia e da compaixão, precisamos nos posicionar. Orar, meditar, refletir e sentir são realidades importantes. Mas em nosso cotidiano, como nos comportamos diante da aflição dos outros? O que, de fato, fazemos? Ou somos indiferentes? Ser santo depende disso: ser caridoso, ter humanidade. O “cristão em pintura” é aquele cristão bonito, bem aparentado, bem decorado, com verniz sempre novo... Mas não passa disso. É o cristão de aparência, que pode ser até muito piedoso, mas que trata o irmão aflito com total indiferença.

            “Ser pior que os animais”. Esta expressão é impactante. A pessoa humana possui uma dignidade maior que a dos animais e, portanto, deve ser tratada com todo respeito e amor. Até os animais tratamos com o devido cuidado. As pessoas merecem a nossa atenção, cuidado, proximidade, acolhida, compreensão e amor. É isto que Jesus pede; é isto que nos ensina São Vicente. Este amor às pessoas é incondicional, ou seja, amamo-las porque são nossas irmãs em Cristo Jesus, porque conosco formam o corpo místico de Cristo. Nós as amamos porque esta é a nossa vocação: amamos a cada uma delas do jeito que são, sem impor a obrigação de que mudem para satisfazer os nossos caprichos.

            A tendência do cristianismo atual é trilhar outro caminho, diametralmente oposto: existe uma espécie de egocentrismo espiritual, ou seja, um eu que deseja sempre se sobrepor, “justificado” por práticas religiosas e excessos de piedade. O Papa Francisco, profeta de nossos dias, faz menção a um mal congênere, presente no cristianismo atual: o mundanismo espiritual.

Nesta realidade, as pessoas aparentam ser religiosas, mas são, na verdade, mundanas, entregues a toda espécie de apegos e males: são maliciosas, covardes, oportunistas, competitivas, materialistas, vaidosas, hedonistas etc., mas que alimentam certa piedade cujo objetivo é o de camuflar todas estas coisas.

            São Vicente nos ensina a termos humanidade. Isto significa que precisamos crescer em humanidade, que não está desvinculada da dimensão espiritual da vida. Pessoas verdadeiramente espirituais são verdadeiramente humanas. Ser humano significa sentir a vida, sentir os outros, sentir-se pessoa, gente. A espiritualidade cristã não nos eleva para outro mundo. A missão do cristão acontece neste mundo, pois Deus criou este mundo para o ser humano e nele está presente.

São Vicente era um homem de Deus, espiritualizado, mas, simultaneamente, humano e enraizado na realidade. Era um místico prático, do cotidiano, em plena comunhão com o Deus que se fez carne e habita entre nós e em nós. Hoje, São Vicente nos diz: Lembrai-vos, irmãos, da carne de Cristo nos corpos sofridos e mutilados dos mais pobres! Em sintonia com a mensagem profética do Papa Francisco, nos diz São Vicente: Saiam, irmãos, pelo mundo afora! Ide ao encontro dos pobres, nossos mestres e senhores! Assim, nossa Igreja encontrará o verdadeiro caminho da conversão pastoral, tão urgentemente necessária.
Tiago de França

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Algumas considerações sobre o discurso de Bolsonaro na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU

        Desde 1949, o Presidente da República Federativa do Brasil faz o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. Neste ano, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro. O discurso do presidente merece uma análise breve. É o que pretendo fazer nestas linhas.

            Ele inicia falando de um novo Brasil, “que ressurge após estar à beira do socialismo”. Durante a sua campanha eleitoral, esta expressão foi repetida muitas vezes, e a repetição fez com que muita gente, dominada pela ignorância, acreditasse nesta falácia. Não se comprova, historicamente, que algum governo ou presidente tenha tentado implantar o socialismo no Brasil. Na ditadura militar também se repetia isso. Os militares diziam que era preciso livrar o Brasil do comunismo. Em nome do “combate ao comunismo”, a democracia brasileira sofreu um terrível golpe, que perdurou de 1964 a 1985.

            Outra informação falsa que aparece logo no início do discurso, é a afirmação de que o Brasil está “sendo reconstruído a partir dos anseios e dos ideais do seu povo”. A maioria dos brasileiros não elegeu Jair Bolsonaro. Quem acompanhou a apuração da eleição sabe que, no segundo turno, grande parcela da população não compareceu. Talvez, se tivesse aparecido, ele não teria sido eleito. Além disso, os ideais do povo brasileiro são totalmente contrários ao que estamos assistindo hoje. Na verdade, o Brasil está sendo “reconstruído” a partir dos ideais da elite econômica que está controlando o governo. Este não governa em função dos pobres, mas em função dos mais ricos. O povo anseia por melhores condições de vida, e o que temos é desemprego, cortes de verbas e corrupção não investigada.

            Neste sentido, mente o presidente quando diz que o seu governo está trabalhando para diminuir o desemprego. Outra falácia é a de que o governo está trabalhando para “reconquistar a confiança do mundo”. Pelo contrário, desde que tomou posse, o presidente se alinhou aos EUA e esqueceu o resto do mundo. O governo brasileiro está jogando o país no isolamento, e as consequências serão trágicas para os mais pobres. O próprio discurso que estamos analisando reforçará este isolamento.

            O presidente também fala de desregulamentação e desburocratização. A quem beneficiam estas medidas? Aos ricos. A ideia central é afrouxar a fiscalização estatal sobre as grandes empresas, para que estas lucrem cada vez mais. E o que os pobres ganham com isso? Nada! Estas medidas incrementam a lógica neoliberal da exploração dos mais fracos. O Estado passa a ser um facilitador da exploração, ausentando-se na regulamentação, e deixando a iniciativa privada controlar a economia.

            O presidente afirma que a proximidade do socialismo, prestes a ser implantado no Brasil, provocou a corrupção generalizada, recessão econômica, altas taxas de criminalidade e ataques aos valores familiares e religiosos. O que o socialismo que nunca existiu no Brasil tem a ver com estes problemas? Falaciosamente, o presidente desvia o foco e induz o ouvinte ao engano. Corrupção, recessão e criminalidade tem a ver com má gestão da coisa pública e ausência do Estado no combate ao crime organizado. O “discurso anticorrupção” foi muito utilizado durante a sua campanha eleitoral, para enganar as pessoas. Pelo visto, continua apostando nele.

Muitos de seus eleitores até hoje acreditam que o atual governo constitui a salvação da pátria brasileira. Mas a falta de investigação envolvendo os próprios filhos do presidente mostra a falácia do discurso. A morte da vereadora Marielle Franco, o sumiço do Queiroz, os depósitos nas contas do filho do presidente e a pretensão de nomear um de seus filhos como embaixador dos EUA mostram, claramente, que o combate à corrupção está longe de ser a realidade do atual governo.

Outra mentira contada pelo presidente em seu discurso foi a seguinte: “Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional”. A informação é falsa porque a vinda dos médicos cubanos para o Brasil, através do programa Mais Médicos, foi regulamentada pela Lei 12.871/2013, com exigência explícita da comprovação profissional. Afirmou também o presidente que os médicos cubanos não podiam trazer cônjuges e filhos. Esta informação também é falsa porque a lei supracitada concedia este benefício. Também não parece verossímil o envio anual de 300 milhões de dólares para Cuba. Não se sabe de onde o presidente tirou esta informação.

Contraditoriamente, o presidente se refere à ditadura militar como se esta tivesse sido uma guerra contra o comunismo. Ironicamente, ele diz que a guerra foi vencida e a liberdade venceu. Na verdade, foram mais de vinte anos de um regime que ceifou a liberdade do povo brasileiro, que mal podia se manifestar publicamente. Inúmeros foram os perseguidos, presos, torturados e assassinados na clandestinidade.

O presidente continua o seu discurso, tecendo críticas à Venezuela. É verdade que o governo de Maduro merece ser criticado. Mas é verdade também que o governo brasileiro não tem autoridade moral nenhuma para criticar a Venezuela. Há sinais evidentes de que o Brasil caminha para a mesma situação. A forma de governar de Bolsonaro também é autoritária, e suas medidas governamentais estão gerando exclusão e pobreza. Os indicadores são claros ao mostrar esta realidade. A economia está praticamente estagnada.

Outra fake news dita pelo presidente: “O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido”. Na verdade, o Foro de São Paulo congrega 120 partidos políticos e movimentos sociais de esquerda, de 26 países da América Latina. Esta informação falsa também foi utilizada na campanha eleitoral, e enganou muita gente. Na concepção do presidente, praticamente tudo o que é de esquerda cheira a terrorismo e socialismo bárbaro. Isso mostra que é desinformado e politicamente analfabeto.

Prosseguindo com seu discurso, faz a defesa daquilo que consideramos forças e medidas do atraso, que uma vez implementadas não geram desenvolvimento integral nem preservação do meio ambiente, a saber: livre mercado, concessões e privatizações. Estas medidas do modelo econômico neoliberal geram riqueza somente para as grandes corporações econômicas. O Estado subserviente é incapaz de atender às necessidades dos pobres.

Como a lógica governamental do atual governo é de cunho neoliberal, então a preocupação com os pobres não é contemplada. Os pobres não fazem parte do orçamento público. Na lógica do livre mercado, os pobres somente servem para trabalhar como mão de obra barata e consumir mercadorias descartáveis. A dita reforma trabalhista realizada pelo governo Temer e aperfeiçoada por Bolsonaro serviu para implementar com mais força e eficácia esta mentalidade capitalista.

O presidente critica o aparelhamento do Estado como se ele tivesse rompido com este mal. Nós sabemos que ele reforça este mal com a famosa cultura do “toma lá dá cá” que sempre reinou em Brasília. Durante a sua campanha eleitoral esta crítica apareceu. Hoje, a prática está mais violenta, pois se acrescentou mais um ingrediente: quem criticar o governo é sumariamente demitido. Em governos autoritários não se admitem investigações de membros de governo nem críticas oriundas dos mesmos à pessoa do presidente.

Uma das grandes falácias ditas pelo presidente foi a seguinte: “Em primeiro lugar, meu governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo”. Todo mundo sabe que isso é mentira! Quem acompanhou a forma como o governo reagiu, inicialmente, às queimadas na Amazônia sabe muito bem que o governo não tem compromisso nenhum com a preservação do meio ambiente. Aliás, meio ambiente nunca foi a bandeira do presidente. Se não existisse a Constituição e as leis de proteção ambiental, certamente a Amazônia já teria sido devastada. Outro absurdo foi ter dito que a Amazônia “permanece praticamente intocada”!

Referindo-se aos países que manifestaram a sua indignação com o descaso por parte do governo brasileiro em relação aos incêndios na Amazônia, o presidente acusou os líderes destes países de possuírem “espírito colonialista”. Como é que um presidente que possui atitudes subservientes em relação aos EUA tem a ousadia de acusar líderes preocupados com a preservação da Amazônia de serem de espírito colonialista? A incoerência é gritantemente vergonhosa! O presidente considera que os EUA são exemplos de respeito à liberdade e à soberania dos países. Qualquer pessoa bem informada sabe que os EUA não procedem dessa forma. Basta estudar o que eles fazem ao redor do mundo.

Referindo-se aos povos indígenas, eis o que disse o presidente: “...mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós”. Ele fala como se os povos indígenas quisessem renunciar às suas tradições culturais e seu estilo de vida para aderir ao nosso estilo desumano de viver, que se encontra em estado agonizante. Para sensibilizar os presentes, o presidente leu uma breve manifestação de um grupo de agriculturas indígenas que não possuem legitimidade para falar em nome de todos os povos indígenas presentes no Brasil.

Outra afirmação um tanto curiosa, considerando que, durante toda a sua campanha eleitoral, o presidente utilizou inúmeras vezes a expressão tão repetida pelos ignorantes: “Direitos humanos é coisa de bandido”! Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, disse: “O Brasil reafirma seu compromisso intransigente com os mais altos padrões de direitos humanos...” Quem acredita nisso? Um governo que esvazia praticamente todos os conselhos que implementavam políticas públicas respeitadas de promoção dos direitos e garantias fundamentais, não pode falar em compromisso com os mais altos padrões de direitos humanos. Trata-se de uma fala hipócrita!

Outra afirmação que não confere é a seguinte: “Há pouco, presidentes socialistas que me antecederam desviaram centenas de bilhões de dólares comprando parte da mídia e do parlamento, tudo por um projeto de poder absoluto”. Não se tem notícia no Brasil sobre quem sejam esses presidentes socialistas. Nunca houve socialismo no Brasil! Também não se tem notícia dessas “centenas de bilhões de dólares” para comprar o parlamento e a mídia. O presidente faz uso de dados falsos e exagerados a todo momento, durante o seu discurso. Mas esta é uma prática comum em seus discursos. Basta verificá-los com a devida atenção.

O presidente cai em outra contradição ao afirmar: “O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem”. Quem o conhece sabe muito bem que é o maior representante desta ausência de racionalidade, pois o que mais faz quando se pronuncia nas redes sociais é a repetição de clichês e palavras de ordem.

Ao final, para fechar com chave de ouro a enxurrada de pétalas de ignorância, na velha tentativa de causar boa impressão, o presidente apela para a Bíblia, citando o versículo 32 do capítulo 8 do evangelho segundo João, que também muito repetiu durante a campanha eleitoral e no dia da posse: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Deus e nós, brasileiros, sabemos que, de fato, a verdade liberta da mentira. E sabemos, também, que a mentira constituiu o alicerce da campanha eleitoral do presidente Bolsonaro. Até hoje se utiliza do mesmo expediente. Mas, como diz o ditado popular: “mentira tem pernas curtas”, e, assim, a verdade aparece e o mentiroso é desmascarado.

Infelizmente, o presidente perdeu uma excelente oportunidade para tentar corrigir seus excessos e, quem sabe, causar outra impressão na comunidade internacional. O Brasil continuará com a sua imagem comprometida, até que possamos criar consciência política suficiente para elegermos um presidente que esteja à altura da dignidade do cargo e da grandeza do nosso País. Tomara que os brasileiros estejam acompanhando esta vergonha nacional e internacional a que estamos submetidos desde a posse desse governo.

Tiago de França

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Dietrich Bonhoeffer e as sutilezas de Deus


“O transcendente não é o infinitamente distante, mas o que está mais próximo” (D. Bonhoeffer, pastor e mártir).

            Nestes dias, estou lendo o livro Dietrich Bonhoeffer: mártir do nazismo, de Giorgio Cavalleri (Paulinas, 2019). Conheci a história de D. Bonhoeffer quando era aluno do curso propedêutico no Seminário da Prainha, em Fortaleza – CE, no ano de 2007. Estava olhando os livros que estavam à venda, e logo adquiri a obra Resistência e Submissão: Cartas e anotações escritas na prisão (Sinodal, 2003). Trata-se de uma obra teológica muito bela e provocante, que retrata o pensamento de D. Bonhoeffer: pastor e teólogo luterano, mártir de Cristo Jesus.

            Não quero falar da biografia deste grande mártir alemão. Quero apenas falar do significado do título deste breve artigo: As sutilezas de Deus. Cada vez que leio releio a biografia profética deste grande teólogo luterano, convenço-me de que Deus, de fato, age sutilmente. Esta sutileza me faz recordar da vocação profética de Samuel, narrada nas Escrituras (cf. 1Samuel 3, 1-14). Deus chamou Samuel no silêncio, sutilmente, enquanto dormia no santuário do Senhor.

            Bonhoeffer também nos faz recordar da passagem do Senhor, quando se manifestou a Elias (cf. 1 Reis 19, 9-14): manifestou-se na brisa suave. Deus é sinônimo de suavidade. A história de Bonhoeffer não contém fatos extraordinários nem espetaculares. Na sua vida, Deus é discreto e sutil; parece até ausente. O que chama a atenção em Bonhoeffer é a grandeza da sua fé. Ele tinha fé Naquele que o podia salvar da morte, mas que na sua morte manifestou a verdadeira vida. Bonhoeffer morreu enforcado, como réu de alta traição, pelo regime nazista de Hitler.

            A densidade teológica e espiritual de seus escritos é admirável. Um dos aspectos, dentre os muitos que podem ser ressaltados, chamou-me a atenção a forma como Deus se relaciona com ele, e ele com Deus. Por meio da oração e do anúncio incansável da Palavra de Deus, Bonhoeffer testemunhou o Cristo ressuscitado e participou da sua glória, abraçando livremente o martírio. Tendo descoberto o segredo da pedagogia do Deus infinitamente amoroso, que se manifesta sutilmente no silêncio do coração, Bonhoeffer descobriu, na carne, o sentido da sentença paulina que diz: “Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro” (Filipenses 1, 21).

            Somente quem vive uma profunda experiência de Deus é capaz de fazer tal afirmação. Esta afirmação retrata a vida de um homem entregue sem reservas, totalmente livre, disponível para experimentar a páscoa no Senhor. Não é mero discurso jogado ao vento; não constitui mera teoria que visa o convencimento; é experiência de Cristo na fragilidade da carne humana; é pura transcendência no amor, mergulho definitivo no seio do Deus Uno e Trino. Bonhoeffer fez a mesma experiência do apóstolo Paulo. Por isso, a teologia de Bonhoeffer é profundamente profética e mística.

            O que a sutileza divina nos diz hoje, neste século profundamente marcado pela cultura do estrelismo e do espetáculo? Bonhoeffer nos concede a feliz oportunidade de repensarmos as nossas práticas religiosas, nossas expressões religiosas de fé. Há algo fora do lugar, que se distancia cada vez mais da mensagem de Jesus. Considerando a sutileza divina, por que nossas Igrejas estão cada vez mais barulhentas e mais parecidas com mercados religiosos? O que o testemunho de Jesus e de Bonhoeffer tem a nos ensinar? Arrisquemos algumas provocações, visando a necessária conversão de nossas práticas religiosas.

            No Evangelho, Jesus condenou o excesso de palavras na oração: “Quando orardes, não useis de muitas palavras como fazem os gentios, pois eles pensam que à força de muitas palavras serão atendidos” (Mt 6, 7). Assistimos a uma verdadeira verborragia em nossos templos e eventos religiosos. O que está por trás dessa necessidade de excesso de palavras? Investe-se em muitas palavras para dizer pouca coisa, ou praticamente nada. Para entrarmos em comunhão com o Deus sutilmente amoroso, também precisamos ser sutilmente amorosos. Na sutileza encontramos a suavidade e o silêncio. O excesso de palavras constitui verdadeira violência, que impede o encontro com o Deus da brisa suave. No muito falar, corre-se o risco de não escutá-lo.

            Outro mal que nos afeta e que integra as manias da nossa época é o estrelismo: o hábito de viver chamando a atenção para si mesmo, de forma espetacular, no culto e fora dele. Há um cultivo excessivo da aparência, com o objetivo de demonstrar piedade e santidade, como se estas fossem íntima e necessariamente ligadas à aparência.

Estamos assistindo ao retorno dos símbolos religiosos de toda ordem, que são usados e abusados por muitos. O mercado religioso produz apetrechos religiosos para todos os tipos de crenças. Muitos investem neles e se esquecem do essencial, que é o amor a Deus e ao próximo. Confundem o amor a Deus com o uso de apetrechos religiosos e devoções de toda ordem. Penduram no pescoço a cruz de Cristo, mas o coração está cheio de ódio e toda sorte de maldade. Afirmam amar a Deus que não veem, sem amar o próximo que veem. Este é o amor falso que o apóstolo denunciou em uma de suas Cartas (1João 4, 20).

            Bonhoeffer falou do seguimento radical de Cristo, no amor e na fidelidade até a morte. Este seguimento é prático, cotidiano, despojado, simples, humilde, corajoso e discreto. O seguimento é anúncio de Cristo por meio do exemplo humilde de amor-doação. O caminho do estrelismo, explicitado pela cultura da aparência, é desvio, é sintomático e, portanto, doentio. O cristianismo de nossos dias precisa passar por uma purificação. As bancas e os cambistas de nossos templos precisam ser expulsos, porque a Casa do Senhor é casa de oração (cf. João 2, 13-22). Está faltando o chicote de cordas de Jesus, para separar as coisas dos homens das coisas de Deus, no que se refere à profanação dos templos religiosos.

            Quando chamou seus discípulos, Jesus não os convidou para o estrelismo, mas os chamou para tomarem a cruz e o seguirem (cf. Mateus 16, 24-25). Um Deus que ama sutilmente não aprova esta nossa cultura de dispersão e de afobamento. Precisamos recuperar a serenidade do olhar, do falar, do pensar e do agir.

Se dizemos que somos de Cristo, mas nos apresentamos como se fôssemos uma raça de gente perturbada, o amor de Deus não está em nós. Como vamos consolar os aflitos se estamos dominados pela perturbação da mente e do corpo? Como anunciaremos o Reino de Deus se nossa presença é causa de escândalo e confusão? Paulo nos exorta que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Cf. Romanos 14, 17).

            No meio da confusão e das diversas formas de violência presentes no mundo, Deus está agindo, sutil e amorosamente. Não cremos em um Deus estático, satisfeito com as desgraças que assolam a humanidade. Cremos em um Deus presente na vida daqueles que são chamados a semear a paz e a justiça; daqueles que descobriram a grande alegria do amor de Jesus em suas vidas.

Quem se descobre amado por Deus se transforma no sal da terra e luz do mundo; transforma-se em sinal de cura e libertação da humanidade, encarnando a presença de Deus no mundo. Esta é a vocação cristã, vocação vivida por Bonhoeffer, no amor e na fidelidade até a entrega total da sua vida.

            Estamos dispostos a abraçar, com amor e fidelidade, este Deus amorosamente sutil, que vem ao nosso encontro para nos preencher com seu amor, e, assim, transformando-nos em verdadeiros seres humanos para a alegria e a vida do mundo? A proposta está lançada. Ele permanece acessível e não cessa de nos esperar. Bonhoeffer ousou e encontrou a verdadeira vida. A iniciativa é sempre de Deus, mas a decisão é nossa. Sejamos, pois, ousados!

Tiago de França