segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

RETROSPECTIVA 2019


           Algumas decisões políticas chamaram a atenção no decorrer deste ano. Vale a penar mencioná-las para que não caiam no esquecimento. Elas revelam um projeto político que, indiscutivelmente, está provocando sofrimento na vida dos brasileiros. Não surpreendem porque o presidente eleito já falava de cada uma delas durante a campanha eleitoral. Mesmo assim, parcela do povo brasileiro o elegeu, pensando que um ex-capitão do exército, com quase trinta anos de vida pública, sem fazer praticamente nada a favor do seu próprio estado, o Rio de Janeiro, pudesse trabalhar para resolver os reais problemas de um país continental como o Brasil.
           Não é novidade para ninguém que o atual presidente é, intelectualmente, muito fraco e desprovido de um projeto político claro e capaz de melhorar a vida dos brasileiros. Isto era visível na campanha eleitoral. O então candidato Bolsonaro sequer tinha plano de governo. Tudo foi criado às vésperas do dia das eleições. Marcada por uma onda de notícias falsas, veiculadas pelo Facebook e WhatsApp, a campanha do ex-capitão conseguiu enganar uma parcela da população, que conseguiu elegê-lo presidente. Esta parcela não constituiu a maioria dos eleitores brasileiros. A maioria dos votantes não compareceu ao segundo torno das eleições, permitindo a vitória de um político totalmente descomprometido com o bem comum.
            Dadas estas considerações, assistimos ao primeiro ano do governo Bolsonaro. Trata-se de um ano que aponta para o como serão os próximos três anos de mandato. Das várias medidas e acontecimentos que vieram a público durante este ano, selecionamos aqueles que mais chamaram a atenção dos brasileiros que gozam do bom senso. Apesar de tudo, ainda há inúmeras pessoas, que votaram no ex-capitão, que ainda acreditam ser ele o Messias, o salvador da pátria. Quais seriam os motivos que levam estas pessoas a continuarem acreditando nesse messianismo político, misturado com um estranho cristianismo oportunista, que tanto mal tem ocasionado à vida dos mais pobres do povo brasileiro?
            Seguem as medidas e acontecimentos que marcaram o ano político, que impactaram gravemente a vida do povo brasileiro e que envergonharam o Brasil no cenário internacional:
ü  O governo enviou ao Congresso um projeto de lei complementar que visa usar dinheiro público para socorrer os bancos. Não há dinheiro para maiores investimentos em educação e outros setores, mas há para socorrer os bancos?;
ü  Com o objetivo de reduzir e, progressivamente, acabar com a autonomia das universidades públicas, Bolsonaro impôs, por meio de uma Medida Provisória, novas regras para a escolha dos reitores das universidades federais. Tal medida caracteriza os governos autoritários;
ü  Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foi demitido do cargo por mostrar ao mundo a real situação do desmatamento da Amazônia. O presidente da República queria que o INPE escondesse a realidade, para não manchar mais ainda a imagem do Brasil no exterior. Posteriormente, o físico Ricardo Galvão foi incluído, pela famosa revista científica “Nature”, na lista dos dez cientistas que mais se destacaram na área da ciência em 2019;
ü  Neste ano, não se ouviu mais, da boca do presidente, um de seus bordões de campanha: “Bandido bom é bandido morto!” Analistas perceberam o sumiço deste bordão desde que veio a público o escândalo de corrupção envolvendo o filho do presidente e o amigo da família Bolsonaro, o Queiroz, que continua sumido;
ü  Pela primeira vez nos últimos anos, um presidente da República se volta contra Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, um dos educadores mais influentes do mundo. Bolsonaro o chamou de “energúmeno”. Tal fato contribuiu mais ainda para queimar a imagem do Brasil no exterior;
ü  Como se tivesse gastando do próprio bolso, Bolsonaro impôs sigilo nos gastos do cartão corporativo da presidência da República. Considerando que se trata de dinheiro pública, o STF derrubou o sigilo. Mesmo assim, o presidente insistiu no sigilo dos gastos, numa clara demonstração de falta de transparência no uso do dinheiro público;
ü  Pela primeira vez na história do Palácio do Planalto, a bancada “evangélica” conseguiu fazer um culto religioso na residência presidencial, contando com a presença do representante da Igreja Universal do Reino de Deus; prova evidente da preferência do presidente da República pelo protestantismo em detrimento das demais denominações religiosas. O Estado somente é laico na letra da Constituição;
ü  Bolsonaro foi denunciado no Tribunal Penal Internacional (TPI) por incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos aos povos indígenas do Brasil. Mesmo não seja condenado, a imagem do presidente já está gravemente comprometida no cenário internacional. Isto também afeta a imagem do Brasil na comunidade internacional;
ü  Neste ano, o Superior Tribunal Militar (STM) julgou 1.036 processos envolvendo a posse e o uso de drogas nos quartéis. A tese bolsonarista de que não existe corrupção entre os militares é mentirosa. Estamos falando de um tipo de crime, apenas. Há muitos outros;
ü  Misteriosamente, apareceu óleo poluindo as praias do nordeste. Como a maioria dos nordestinos não votou no presidente, este não se mexeu para resolver o problema. Depois de muitas críticas, mandou a Marinha do Brasil ajudar na limpeza;
ü  O presidente tentou colocar o próprio filho, Eduardo Bolsonaro, que não domina sequer a língua inglesa, como embaixador do Brasil nos EUA. De tanto tentar, desistiu, dada a resistência no Congresso Nacional e no meio diplomático;
ü  Neste mês de dezembro, a carne teve um aumento de 17,7%. A ministra da Agricultura sinalizou que o preço não vai cair. O aumento atinge os mais pobres do povo;
ü  Foram liberados, para registro e venda, 474 novos agrotóxicos. A medida beneficia os fabricantes e prejudica a saúde dos brasileiros;
ü  Para piorar a Reforma Trabalhista, que já beneficiava os patrões, o governo editou a “MP da Liberdade Econômica”, aumentando os benefícios aos empresários em detrimento dos trabalhadores;
ü  O site The Intercept Brasil publicou inúmeras conversas do então juiz Sérgio Moro, atual ministro da Justiça, com procuradores da Lava Jato, que levaram a entender a escandalosa parcialidade do juiz na condução dos processos da Operação, principalmente nos processos envolvendo o ex-presidente Lula. As conversas não foram investigadas, pois Sérgio Moro é chefe da Polícia Federal;
ü  O ministro do Turismo do governo Bolsonaro está sendo investigado pela Polícia Federal, indiciado por envolvimento no escândalo de candidaturas laranjas do PSL (partido do Bolsonaro nas eleições 2018);
ü  O presidente tentou acabar com os radares móveis nas rodovias federais, impedindo a instalação de 8 mil radares. Mas a Justiça Federal impediu a tragédia;
ü  Visando beneficiar o próprio filho, acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro de ser o chefe de uma organização criminosa no RJ, o presidente usou o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro para aprovar a figura do “juiz de garantias”, que impede o atual juiz do caso que envolve o filho do presidente de sentenciá-lo ao final do processo;
ü  A Reforma da Previdência, que mais beneficia os ricos que os pobres, foi aprovada neste ano. O brasileiro terá que trabalhar por mais tempo para receber o salário integral;
ü  O governo facilitou o acesso às armas de fogo no Brasil. A medida ajudou a indústria de armas, mas não resultou no aumento da segurança. A maioria do povo, sem dinheiro para comprar o necessário para viver, continua desarmada e exposta à violência;
ü  Para beneficiar os empresários, o governo acabou com a multa de 10% paga pelas empresas ao governo nas demissões sem justa causa de empregado;
ü  O governo tentou acabar com o seguro DPVAT, mas o STF não permitiu;
ü  O salário mínimo aprovado para 2020 é de R$ 1.031. Para assegurar novas vantagens para a carreira militar, o governo reservou 4,7 bilhões de reais no orçamento de 2020. Este valor é destinado somente às vantagens que serão criadas;
ü  O desmatamento na Amazônia cresceu assustadoramente. A grilagem de terra é o principal causador do problema. O governo demonstra pouco interesse em resolver o problema. A situação virou motivo de chacota no seio do governo federal;
ü  O setor que mais sofreu cortes e perseguições do governo federal foi o da educação. Acredita-se que com menos recursos a educação melhora! É a lógica do atual governo;
ü  O número dos que estão na extrema pobreza no Brasil é de 13,5 milhões de pessoas. Estas sobrevivem com 145 reais mensais. O governo não está preocupado com o problema;
ü  O número de desempregados no Brasil é de 11,9 milhões de pessoas. Até o presente momento o governo federal não apresentou nenhuma solução para este grave problema, e o assunto sequer é mencionado nas falas do presidente;
ü  Neste ano, o preço do gás de cozinha acumulou alta de cerca de 10%.
Finalizamos estes breves apontamentos, com estas tristes medidas adotadas pelo governo, com algumas questões que podem nos ajudar a pensar a situação: Por que a grande maioria do povo brasileiro está assistindo calada à implementação destas medidas prejudiciais? Por que a classe média, que foi às ruas na época do governo da presidenta Dilma, está calada, sem reação? E os eleitores do presidente Bolsonaro, não reagem por vergonha, ou por cegueira? Esta passividade está alicerçada no medo, na vergonha, na alienação, na indiferença, ou na falta de perspectiva política? Vamos pensar um pouco.

Tiago de França

sábado, 28 de dezembro de 2019

A família, como vai?


“Amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3, 14).
            Neste domingo após a solene celebração do Natal do Senhor, a Igreja católica celebra a festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José. Muito pode ser dito sobre a instituição familiar, célula fundamental da sociedade; mas, à luz dos textos bíblicos da festa (cf. Eclo 3,3-7.14-17a; Sl 127; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23) e da realidade brasileira, queremos oferecer algumas provocações que podem nos ajudar a pensar a situação da família hoje.
            A família pode ser real e ideal. A família real é a que temos, que se apresenta hoje em nossa sociedade, marcada pelas crises que assolam a humanidade. Não existe família fora da realidade. Portanto, tudo o que afeta a realidade social, afeta também a família. Não nos parece correto pensar a família, partindo de um modelo ideal. As vicissitudes humanas não nos permitem alcançar o ideal de família; o ser humano não consegue chegar à perfeição. Assim, família perfeita somente a de Jesus, Maria e José. Caminha-se para o ideal, inspirando-se neste, mas com a humildade de reconhecer as limitações inerentes às pessoas e suas respectivas famílias.
            Se nenhuma família é perfeita, exceto a de Jesus de Nazaré, então é incorreta e inadequada toda pregação que julga e condena as famílias. Ninguém recebeu de Deus a missão de agir dessa forma. Cabe à Igreja refletir e promover o bem da família, pois este bem é “decisivo para o futuro do mundo e da Igreja” (Amoris Laetitia, n. 31). Nesta mesma exortação apostólica, no n. 36, o Papa Francisco, com a humildade que lhe é peculiar, diz: “Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica”.
            Em muitas comunidades cristãs encontramos pessoas que se recusaram a celebrar o matrimônio na Igreja após terem escutado os líderes cristãos falar sobre as convicções cristãs a respeito do sacramento do matrimônio. Apresenta-se, muitas vezes, um ideal inalcançável de família, um modelo excessivamente rígido e distante da realidade, bem como desprovido de fundamentação bíblica. Facilmente, aqueles que lidam com as pastorais e movimentos, com a reflexão e acompanhamento de casais e famílias podem cair num subjetivismo doentio, que tende a induzir casais e famílias a trilharem caminhos que não condizem com práticas e vivências saudáveis e fundamentadas na experiência familiar de Jesus de Nazaré.
            Para ilustrar, citemos um exemplo de enrijecimento bastante nocivo que aparece no trabalho pastoral com casais e famílias, que afasta as pessoas, convencendo-as de não querer participar do respectivo trabalho pastoral e a não abraçar o matrimônio na Igreja: a preocupação excessiva com o pecado. É verdade que o pecado existe e integra a condição humana. Todos são pecadores. Mas para ser um casal e uma família de Deus não há necessidade de centralizar o pecado na reflexão da fé no seio familiar. A ênfase excessiva no pecado traz consigo a figura do diabo, de modo que este é mais citado que o próprio Cristo no seio de muitas famílias fervorosamente católicas.
A graça que purifica e santifica deve ocupar o centro da reflexão da fé na família. A Trindade Santa é o centro. Se a família se entrega a Deus, não é necessário preocupar-se com o pecado, pois não é o diabo e o pecado a centralidade da vida familiar. Todo excesso é sintomático, e a ênfase na atividade diabólica pode ser sinal indicador de falta de fé no Cristo que venceu o pecado e a morte.
            No que se refere ao bem da família, não restam dúvidas de que a família não vai bem, e os motivos são inúmeros. Um dos motivos, talvez o principal, é a crise de valores que assola a humanidade. Hoje, mais que em outras épocas, alguns valores fundamentais que promovem o bem da família estão sendo relativizados. Amor, perdão, solidariedade, compreensão, fidelidade, confiança, justiça, humildade, mansidão, respeito, e outros valores inerentes às relações interpessoais e familiares estão sendo relativizados e, consequentemente, considerados ultrapassados e dispensáveis. Sem a vivência desses valores não é possível construir família.
            As novas configurações familiares que vão surgindo na sociedade constituem outro desafio para o trabalho de evangelização das famílias. Há uma configuração tradicional, que integra a doutrina tradicional da Igreja católica: a família é a relação amorosa que se dá entre pai, mãe e filhos. Com o surgimento dos inúmeros problemas que afetam o gênero humano, foram surgindo famílias com outras configurações: pai criando os filhos; mãe criando os filhos; avós criando os netos; tios criando os sobrinhos; adotantes criando adotados; vizinhos criando filhos dos outros. Ultimamente, devido à possibilidade de adoção no âmbito civil, surgiram as “famílias homoafetivas”: casais homoafetivos que adotam crianças. A Igreja católica ensina que as uniões homoafetivas não podem ser equiparadas ao matrimônio (cf. o n. 52 da Amoris Laetitia).
            Não queremos discorrer, nesta breve reflexão, a respeito desta vedação. Quem sabe noutra oportunidade poderemos refletir sobre o tema. É possível que esta questão conheça futuros desdobramentos na reflexão teológica da Igreja católica. Independentemente disso, é necessário que se considere que as uniões homoafetivas não constituem uniões doentias, nem uma ameaça à ordem social. Também não ameaçam a instituição familiar defendida e promovida pela Igreja católica. Não gera comunhão nem acolhida a declaração de juízo e condenação de situações familiares que não se encaixam no modelo tradicional de família. A missão da Igreja é acolher, compreender e promover o bem das pessoas e da sociedade, jamais se colocando como instituição que julga e condena pessoas e situações familiares. O amor, valor fundamental da família, também está presente na variedade das situações familiares que surgem no mundo atual. Isto é inegável. Acima das discordâncias e da falta de conformidade com a doutrina da Igreja católica está o amor, que santifica e salva a todos.
            Quando escreve aos colossenses, Paulo diz que o amor é o vínculo da perfeição. No Natal celebramos a encarnação do amor no mundo. É este amor que sustenta a família. Sem o amor não existe nem matrimônio nem família. O vínculo que une o casal, que legitima o consentimento manifestado no enlace matrimonial, é o amor. Este é a base sobre a qual a família é construída e mantida. No amor, a família participa da vida divina. O amor é a solução para todos os problemas enfrentados pela família: desunião, infidelidade, descrença, apatia, intrigas, esfriamento das relações, revoltas etc. No amor, a família permanece em Deus, e nele encontram a felicidade e a paz.
            No amor, os filhos respeitam e amam seus pais. Honrar pai e mãe é ensinamento divino que se vive no amor. A ingratidão dos filhos para com seus pais é sinal evidente da falta de amor. Não é mera desconsideração. Se um/a filho/a não ama seus pais, deve analisar o próprio conceito de amor. Trata-se de um pecado gravíssimo a ausência de amor para com os pais. Deus abençoa abundantemente os filhos que honram seus pais. Filhos que desonram seus pais são pessoas infelizes, maus exemplos para aqueles que serão seus filhos e para toda a comunidade. Mesmo quando os pais são infiéis e ingratos, os filhos são chamados a dar testemunho de gratidão e fidelidade, pois não se deve pagar o mal com o mal.
            Também os pais são abençoados, quando amam seus filhos. O amor se manifesta no cuidado para com eles. Pais irresponsáveis, que não cuidam, desprezam, maltratam e abandonam os filhos cometem grave pecado diante de Deus. Amar os filhos é sinônimo de cuidado responsável, de afeto e atenção, de proteção e respeito. Assim como Maria e José, os pais são chamados ao cuidado amoroso, manifestando, assim, o amor infinito de Deus. A maternidade e a paternidade são dons de Deus, que frutificam no amor, na fé e na esperança.
            A sociedade brasileira continuará gravemente enferma se não valorizar, respeitar e promover a família e seus respectivos valores. Estamos falando de famílias abertas, acolhedoras, dispostas a contribuir com o progresso integral dos brasileiros. Neste sentido, a família não pode ser usada pelos moralistas de plantão, que destituídos de autoridade moral, apresentam-se como defensores de um modelo de família que julga e condena pessoas e grupos sociais.
Este modo de proceder é violento e, consequentemente, antievangélico. Em nome da família não podemos julgar e condenar as pessoas. Deus não instituiu a família com esta finalidade. A família nasceu para acolher, educar, promover a dignidade da pessoa humana. Família é lugar de humanização, berço do amor, casa do Evangelho, Igreja doméstica, morada de Deus, lugar da fraternidade. Fora disso, não passa de mentira e confusão, aparência de amor e lugar propício para toda espécie de abuso. Que nossas famílias se transformem em casas do amor, escolas de aprendizagem da fé, da esperança e do amor.
Tiago de França

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Quem vai celebrar o Natal de Jesus?

“E a Palavra se faz carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).
            Meditando sobre o significado do Natal do Senhor, eis que surge uma pergunta: Quem vai celebrar o Natal de Jesus? E na oração foram aparecendo algumas categorias de pessoas que, à luz do verdadeiro significado do Natal de Jesus, certamente não se recordarão desta importante festa cristã. E mesmo que se recordem, não poderão celebrá-la. Algumas destas pessoas, se católicas, até comparecerão às missas celebradas no dia 25 de dezembro. Mesmo assim, não estarão em sintonia com o mistério do Natal de Jesus. Que categorias de pessoas não estarão em sintonia com este sublime mistério? Ousamos mencionar algumas delas.
            Na classe política, encontramos os ladrões do dinheiro público. Estes não poderão celebrar o Natal de Jesus. O motivo é óbvio: Passam o ano se dedicando ao desvio, ao saque criminoso do dinheiro público. Tiram o pão da boca dos pobres. O desvio de dinheiro público não afeta, em primeiro lugar, os ricos, mas fere de morte a dignidade dos pobres. O dinheiro desviado deveria servir para o custeio da educação, saúde, infraestrutura, saneamento básico etc. Quem rouba o que é do povo, no exercício da função pública, não pode celebrar o Natal de Jesus, pois o mandamento de Deus proíbe roubar. O político ladrão não pode elevar a Deus um canto de ação de Deus por nos ter enviado Jesus.
            Também na classe política encontramos outro tipo de político nocivo à democracia e, consequentemente, ao povo: O político que não rouba diretamente o dinheiro público, mas colabora para que isso ocorra, aprovando projetos contrários ao bem comum, legislando e executando leis injustas, que provocam o sofrimento dos pobres, jogando o País no atraso escandaloso e danoso. São políticos que debocham das pessoas que os elegeram e que transformaram a política em um meio desonesto de vida, ganhando altos salários e gozando de privilégios geradores de conforto e vida tranquila. São imorais, sanguessugas, filhos e promotores do atraso, desrespeitadores e ocupados em nada fazer de bom.
            Na economia, também há pessoas que não celebrarão o Natal: Os gananciosos e avarentos, escravos do dinheiro e das riquezas. São pessoas que dedicam suas vidas à multiplicação do dinheiro. São capazes de praticar toda espécie de mal para ganhar mais dinheiro; acordam e vão dormir pensando em dinheiro. Inúmeros empresários e profissionais liberais sofrem deste mal, e sempre apresentam justificativas para convencer os outros e apaziguar as próprias consciências. Alguns tentam enganar a Deus, doando cestas básicas aos pobres nas campanhas natalinas. Pensam que Deus se deixa enganar com a falsa caridade.
            Jesus nasceu na manjedoura: As Escrituras falam que nasceu, viveu e morreu pobre. A pobreza material de Jesus é uma denúncia contra a ganância e a avareza; é a revelação da opção divina pelos pobres. Quem vive a vida somente preocupado em manter e aumentar riqueza não está em comunhão com Jesus. De modo geral, o avarento é alguém egoísta, que não está preocupado com o sofrimento do próximo. Por isso, é incapaz de compreender e celebrar o mistério do Natal de Jesus. Esta festa é, para o avarento e ganancioso, oportunidade para fazer negócios. Os avarentos celebram o Natal do mercado financeiro, jamais o Natal de Jesus.
            Nos demais espaços que compõem a sociedade, encontramos outras categorias de pessoas que não aceitam Jesus nem, por isso mesmo, poderão celebrar o seu Natal: Preconceituosos, racistas, misóginos, homofóbicos, difamadores e caluniadores, e todos aqueles que se ocupam em violentar os outros, contribuindo para a cultura da eliminação do outro. São pessoas que não estão em sintonia com a mensagem de Jesus cujo centro é o amor a Deus e ao próximo. Quem adere à cultura do ódio e da indiferença não poderá celebrar o Natal de Jesus, pois no centro do mistério do Natal está o amor ao próximo.
            Entre os violentos também encontramos um tipo de gente que tem assustado a sociedade brasileira nos últimos anos: Os feminicidas, ou seja, os homens que sentem ódio das mulheres pelo simples fato de serem mulheres e as matam, impiedosamente. Esses assassinos não poderão celebrar o Natal de Jesus. O sangue das vítimas clama a justiça divina. O Brasil está entre os países que mais matam mulheres no mundo, e esta vergonhosa situação atenta contra o mistério da encarnação de Deus no mundo. Deus se encarnou para que todos tenham vida plena; por isso, ninguém recebeu de Deus o poder de matar. Homens covardes que matam, principalmente os que matam as crianças e as mulheres, jamais poderão celebrar o Natal de Jesus.
            No seio de nossas Igrejas cristãs também encontramos pessoas que não poderão celebrar o Natal de Jesus: Todos aqueles que se dizem cristãos, mas que se dedicam à divisão; ao ódio; à indiferença; à perseguição; às intrigas; aos falsos testemunhos; à exploração da ingenuidade e inocência das pessoas; ao uso da religião para extorquir dinheiro, enriquecendo-se; a usar a religião para estuprar, assediar, ameaçar, enganar e cometer toda espécie de mal. São pessoas que afetam gravemente a imagem do cristianismo, utilizando-se dele para praticar o mal. Jesus as chama de “sepulcros caiados” e “hipócritas”, entre outras expressões duras, que indicam reprovação e convite à conversão.
            Certamente, por motivos tão graves quanto os que aqui enumeramos, há outras tantas pessoas que não poderão celebrar o Natal. Todas estas categorias de pessoas não são chamadas a celebrar o Natal de Jesus? Sim, todas são chamadas. O que devem fazer? São chamadas a acolher Jesus, para que possam receber dele “a capacidade de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12). São os filhos de Deus que celebram o Natal, pois acreditaram no nome de Jesus, recebendo-o no coração e na vida. Os filhos de Deus são seguidores de Jesus, que é a vida e a luz dos homens, e, por isso, dão testemunho desta luz. Agem como filhos da luz, não como filhos das trevas.
            Quem acolhe Jesus recebe o convite à conversão. Quando acolhido, Jesus muda radicalmente a vida de quem o acolhe. Isto é Natal. Com a vida sendo transformada, a pessoa sente Jesus nascer, crescer e tomar conta do seu ser. Este é o desejo de Deus: Fazer morada em nós. Todos aqueles que se transformam na morada de Deus são interiormente iluminados pela luz divina, tornando-se filhos de Deus e capazes de amar. Aí já não existe mais a capacidade para as obras das trevas. É verdade que o pecado faz parte da vida daqueles que seguem Jesus. Mas é verdade também que a força de Jesus já não permite que seus seguidores se entreguem ao pecado. Em Cristo Jesus, Palavra do Pai encarnada, somos pecadores livres da escravidão do pecado e do poder da morte! Isto é Natal.
             Portanto, todas aquelas categorias de pessoas que se dedicam ao mal são chamadas a acolher Jesus para, assim, celebrar o Natal. A celebração do Natal é um convite à conversão, à mudança de vida. O convertido não deixa de ser pecador, mas é alguém que se coloca no caminho de Jesus, e neste caminho é chamado a perseverar até o fim de sua vida. Para que o Natal não se transforme em uma mera data comemorativa na qual há muita comida, bebida e troca de presentes, precisamos acolher o Cristo Jesus. Festejar faz bem e causa alegria, mas a alegria sem fim está no acolhimento de Jesus, que implica acolher o próximo, amando-o, gratuita e generosamente.
Que o Cristo Jesus seja tudo em todos!
Feliz Natal!
Tiago de França

sábado, 21 de dezembro de 2019

Jesus: Palavra de Deus encarnada


“Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. (Mt 1,23)

            Para estar no mundo, Deus também se fez homem. Antes disso, já estava no mundo. Ele nunca se ausentou. Este mundo também é a casa de Deus. Por isso, eis uma lição primeira: não há nenhuma razão plausível, à luz da fé cristã, para o cristão fugir do mundo. Parece óbvia esta afirmação, mas é o que assistimos ao longo da história do cristianismo: inúmeras pessoas entenderam o caminho de Jesus como caminho de fuga. Quando envia Jesus a este mundo, Deus ensina o movimento contrário. Jesus não foge de nada. Ele vem ao encontro, mergulha de cabeça no mundo, revela que Deus se encarnou para a salvação da humanidade.
            Neste sentido, o Natal do Senhor Jesus é a solene festa do mistério da encarnação de Deus no mundo. Jesus, Palavra de Deus, fez-se carne (pessoa) e habitou entre nós. Fazer-se carne é fazer-se frágil, impotente, sujeito às intempéries da vida humana. Os cristãos acreditam em um Deus que se tornou gente, carne frágil no meio do mundo, mas sem perder a sua divindade. Jesus é Deus e homem verdadeiro. A humanidade de Jesus não anula a sua divindade; pelo contrário, a sua divindade o faz plenamente humano. Crer em Jesus é divinizar-se, ou seja, em Cristo Jesus o cristão participa da plenitude da sua humanidade, e nesta, da sua divindade.
            Concebido pelo Espírito Santo, com a cooperação de Maria e José, Jesus foi enviado, segundo as Escrituras, para salvar a humanidade dos seus pecados (cf. Mt 1,21). O pecado existe e causa estragos, afastando as pessoas do seu Criador e Pai. Inúmeros são os pecados que tem afetado hoje a humanidade: indiferença globalizada, apego ao dinheiro e ao poder, intolerância e preconceito, autossuficiência e arrogância, ódio, rancor, fechamento e falta de solidariedade, mesquinhez, roubos e assassinatos, desrespeito, devassidão de toda espécie etc. São realidades que desfiguram as pessoas, escravizando-as. Jesus foi enviado por Deus Pai para ensinar o caminho da libertação do pecado e da morte.
            A libertação do pecado e da morte se inicia quando a pessoa aceita Jesus, mas este Jesus não é somente uma pessoa, mas um projeto de vida plena para todos. Aceitar Jesus é se comprometer com o que Ele anunciou: amor, justiça e paz. Quem ama não odeia o próximo, mas se torna próximo, torna-se samaritano. Eis o compromisso fundamental de quem aceita Jesus: amar o próximo, na gratuidade e sem fazer distinção. O amor está no centro do projeto de Jesus. Isto significa que aceitar Jesus não é mera profissão pública da fé. Certamente é importante professar a fé em Jesus no culto, na liturgia. Mas aceitar Jesus é, sobretudo, uma atitude, uma decisão que muda radicalmente a vida.
            Portanto, celebrar o Natal do Senhor Jesus é assumir o compromisso de ser amoroso para, assim, revelar Deus ao mundo. Sem este compromisso, o Natal é uma festa mentirosa e hipócrita. O brilho da noite de Natal está na adesão ao amor de atos, concreto, afetivo e efetivo. Um amor capaz de fazer com que a pessoa se transforme em outro Cristo, para a salvação do mundo. Natal é amor aderido na liberdade e para a liberdade. Quem verdadeiramente celebra o Natal de Jesus se torna uma pessoa livre, leve e feliz, comprometida com o Reino de Deus, que é o amor que tudo transforma.
            Jesus é o Emanuel, que significa: Deus está conosco. Deus é amor, portanto, que acolhe Jesus, acolhe o amor. Quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele. É o que nos ensina o apóstolo João em seus escritos. Permanecer no amor é assumir o compromisso de se tornar uma pessoa amorosa. O mundo está cheio de gente rancorosa, marcada pelo ódio e pela indiferença. Essa gente é violenta, não tem a paz que somente o amor de Deus concede. Quem quiser se livrar desta violência que corrói o coração e dilacera a alma, aceite o amor, torne-se amor. Quem ama revela ao mundo o Emanuel, pois Deus se faz presente onde o amor é a regra da vida.
            Esta é, portanto, a mensagem central do Natal do Senhor: em Cristo Jesus, pela força do Espírito Santo, Deus se revelou. Deus se tornou pessoa e, assim, ensinou a amar de verdade. O puro amor, desprovido de interesses e outras manias humanas que matam o amor. O amor ensinado por Jesus, Deus e homem verdadeiro, é amor-doação, que liberta do egoísmo e de todas as demais forças de morte que operam neste mundo. Fora deste amor, as pessoas e toda a humanidade perecem. Não há futuro fora do amor-doação. Quem quiser experimentar a vida e fazer a vida valer a pena, entregue-se ao amor. E não se demore, pois nas trevas do pecado e da ignorância não existe felicidade, não existe vida plena.
            A celebração do Natal do Senhor é uma feliz oportunidade para acolher este amor perfeito e capaz de transmitir vida plena para todos. Resistir a este amor não parece atitude inteligente nem benfazeja. A situação atual exige postura clara e consciente, exige pessoas amorosas, abertas e disponíveis. Esta realidade se transformará a partir do momento em que nos dermos conta, de forma definitiva, de que o caminho trilhado até o momento – caminho de mentira, apego ao dinheiro, prestígio, poder e intrigas – está conduzindo a humanidade à destruição total. O Natal de Jesus ensina que o amor-doação é a saída, e Jesus, Palavra de Deus encarnada, é o modelo por excelência que ensina a amar. Abramo-nos a Ele e o acolhamos.  

Tiago de França

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A instrumentalização do Direito e as injustiças sociais


       Geralmente, as pessoas confundem Direito com Justiça, bem como Justiça com Judiciário. Em breves linhas, queremos oferecer algumas provocações que podem ajudar a clarear um pouco as diferenças não somente conceituais, mas, sobretudo, práticas destas realidades.

            O Direito é uma ciência. No curso de Direto fala-se da possibilidade de uma ciência jurídica. Assim como as demais ciências, a ciência jurídica é criação humana, sujeita a manipulações. O homem criou o Direito e o aperfeiçoa a partir das evoluções que vão se dando nas diversas sociedades ao longo da história.

            Como ciência, há teorias e técnicas. De forma sucinta, podemos dizer que no Direito, temos as leis, que podem ser materiais e processuais. Lei material trata dos direitos em geral como, por exemplo, o direito à educação. Há uma hierarquia entre as leis, estando a Constituição no topo da pirâmide legal. A Constituição é a Lei Maior, a Lei Fundamental, a Carta Magna. Abaixo dela, podemos encontrar as demais leis: complementares e ordinárias, entre outros regulamentos.

            A lei processual é a que rege os processos. Temos a lei processual civil (código de processo civil), a lei processual penal (código de processo penal) e outras. Isso significa que o processo não pode ser realizado de qualquer forma, pois há leis que regem os processos. Há ritos processuais a serem observados, para que se possa ter a legalidade na aplicação da lei. Processos que fogem da lei processuais são nulos, ou viciados, impondo-se a nulidade, ou a revisão processual.

            Portanto, a ciência jurídica é técnica e exige habilidade. O operador do Direito (juiz, advogado, ministério público) são pessoas que estudam a ciência jurídica e são capacitados para lidar com ela. São técnicos, manipuladores (no bom sentido do termo) da ciência e da técnica processuais. Sem o estudo sistemático da ciência jurídica, toda e qualquer opinião não passa de achismo. Em matéria científica, o achismo não tem valor, pois, em ciência, “quem acha” não conhece.

            Isso significa, ainda, que todos os institutos materiais e processuais do Direito possuem fundamentação, que implica conhecimento da matéria (daquilo que cada instituto significa) e da técnica processual (do como se aplica). Em outras palavras, é necessário saber o que é e como se aplica. Durante todo o curso de Direito, em um percurso formativo de cinco anos, aprende-se, sistematicamente, estas duas coisas: o que é e como se aplica cada instituto do Direito. A sistemática jurídica é complexa, densa e sujeita a constantes atualizações.

            Nos Tribunais temos a jurisprudência, que consiste no entendimento firmado acerca de determinada questão, que passa a ser seguido de forma vinculante (obrigatória). A jurisprudência, na prática jurídica, funciona como que uma lei processual que deve ser observada. Não é lei, mas é como se fosse. Exemplo: a partir da última decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão após condenação em segunda instância, a jurisprudência deste Tribunal firmou o entendimento vinculante de que não se pode mandar prender após a condenação em segunda instância, exceto nos casos em que caiba prisão, nos termos do artigo 282 do Código de Processo Penal (medidas cautelares).

            No curso de Direito se aprende que aos operadores do Direito, enquanto seres humanos dotados de subjetividade, é possível a manipulação (no mau sentido da palavra) do Direito para fins contrários à justiça; considerando que esta é o resultado daquele. Facilmente, o Direito pode se transformar em instrumento de opressão e, portanto, de injustiças. A manipulação da ciência jurídica, praticada nos Tribunais, mostra que é possível desrespeitar os direitos e garantias fundamentais se utilizando da própria lei. Trata-se do que se passou a chamar de injustiça institucionalmente legalizada.

            O legislador, aquele que cria as leis (Poder Legislativo: vereadores, deputados e senadores), é capaz de criar leis injustas, e nos Tribunais estas leis podem ser aplicadas, sem dar ao cidadão a possibilidade de recorrer a quem quer que seja. Se a lei injusta foi criada respeitando-se o processo legislativo previsto, e se os Tribunais aplicam tal lei respeitando o devido processo legal, o cidadão vai recorrer a quem? Parece ser isto que está acontecendo no Brasil. Dois exemplos claros disso são as reformas trabalhista e previdenciária, que foram pensadas não para beneficiar os que mais precisam, mas para manter as vantagens e privilégios dos mais ricos dos brasileiros.

            Além da aplicação de leis injustas, os juízes, únicos que podem julgar, segundo a Constituição, podem também cometer injustiças contra as pessoas, principalmente as pessoas pobres. Estas pessoas costumam repetir nas rodas de conversas: “O pobre não tem vez quando procura a Justiça”. Corrigindo a expressão, o correto seria dizer: “O pobre não tem vez quando procura o Judiciário”. Muitas vezes, este não pratica a Justiça. De modo geral, os pobres não encontram saída, sendo, portanto, obrigados a sofrer sem ter para onde correr: “Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come!”, diz o ditado popular.

            É verdade que existem bons juízes, preocupados com esta situação. Juízes que aplicam a lei, de forma justa, e até questionam as leis injustas, esforçando-se para torná-las menos nocivas aos mais pobres. Estes juízes existem, mas não constituem a maioria da magistratura. Os mais ricos sabem disso, e encontram na maioria do Judiciário, do Executivo e do Legislativo o apoio necessário para manter suas vantagens e privilégios injustos. A maioria dos que compõem estes três poderes da República veio das famílias ricas. Por isso, a tendência é defender os interesses dos ricos. Esta é uma realidade histórica.

            As notícias revelam uma realidade vergonhosa de manipulação judicial. Muitas decisões judiciais são visivelmente injustas, pois não correspondem ao que se considera Justiça. Basta ter bom senso para perceber que tais decisões são viciadas, pautadas na subjetividade de quem trabalha para beneficiar pessoas e grupos, em detrimento do bem comum. São decisões que ferem os direitos e garantias, violando, assim, a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da ordem constitucional vigente.

            Um caso, entre outros, que revela esta vergonhosa situação é o da investigação da Polícia Federal na Bahia. A operação Faroeste, cuja 4ª fase foi deflagrada nesta quinta-feira, 19 de dezembro, investiga um suposto esquema criminoso de venda de decisões judiciais por juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia. É apenas uma demonstração, pois não se trata de caso isolado. O mais vergonhoso é saber que, muitas vezes, estas investigações não resultam em condenação e cumprimento de sentença. Quando o réu é juiz, o processo se desenrola por anos, e quando não resulta em condenação, ocorre a prescrição do crime, livrando o réu da necessária punição.

            Por incrível que pareça, a saída para este problema está no exercício livre e consciente do voto nas eleições. As pessoas precisam ter consciência da importância do Poder Legislativo para o progresso do País. Vereadores, deputados e senadores criam as leis. No Estado Democrático de Direito, a economia, a cultura e todas as demais dimensões da vida social dependem da política.

O Brasil precisa de políticos competentes e honestos. E não adianta dizer que não existe político honesto. Isso é mentira. Temos boas pessoas na política, e outras desejosas de atuar na política partidária. O problema está na falta de educação política, que provoca o que estamos assistindo hoje: políticos incompetentes e desonestos, eleitos por uma nação formada por gente ignorante (a maioria do povo brasileiro não sabe sequer o significado da palavra política!).

Bons políticos acreditam na educação como caminho capaz de assegurar o verdadeiro progresso. Uma educação de qualidade, acessível a todos. Uma educação que não priorize a criação de mão de obra para o mercado financeiro, mas capacite as pessoas não somente para atuar no mercado de trabalho, mas, sobretudo, atuar na sociedade como cidadãos livres e conscientes. A maioria de nossos políticos revela o tamanho da ignorância da grande maioria do povo brasileiro.

Se tivéssemos uma educação de qualidade, acessível a todos e que promovesse a conscientização dos brasileiros, o País certamente seria diferente, mais justo e menos desigual. Teríamos cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres; políticos atuantes, que agiriam em prol do bem comum; juízes competentes e promotores da justiça social; enfim, um povo verdadeiramente brasileiro, livre e igualitário, modelo para o resto do mundo.

Tiago de França

sábado, 14 de dezembro de 2019

Para conhecer Jesus


“Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (Mt 11, 6)

            Na liturgia da Igreja católica, estamos no Tempo do Advento: tempo de esperança e de alegria. No primeiro momento, celebra-se a esperança pela vinda do Senhor (parusia); no segundo momento, os católicos são chamados a se prepararem para a celebração do Natal do Senhor, a festa solene da encarnação do Verbo de Deus, Jesus, o Messias enviado.

            Nestas breves linhas, queremos meditar o texto de Mt 11, 2-11, que será proclamado na liturgia do III Domingo do Advento. O texto começa falando que o profeta João Batista estava preso e recebia notícias sobre Jesus. Parece que o profeta não estava acreditando no que ouvia, e resolveu enviar alguns dos seus discípulos para saber se Jesus era o Messias, ou se seria um outro.

            Desconcertante é a resposta de Jesus: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo” (v.4). Jesus não fala das Escrituras que discorriam a seu respeito, nem apresenta uma reflexão teológica sobre o Messias. Também não apresenta uma doutrina nova. Ele convida a ouvir e ver, fazendo referência às suas obras: “os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (v.5).

            Para conhecer Jesus é necessário ouvir e ver as suas obras. Pelas obras se conhece quem é o Messias prometido. As obras revelam a predileção divina pelos esquecidos: cegos, paralíticos, leprosos, surdos e pobres. Quem se interessa por essa gente? Em todas as épocas da história, essa gente sempre foi esquecida e posta à margem da sociedade. Jesus revela que Deus se interessa por estas pessoas. Elas são a “menina dos olhos” de Deus. As categorias mencionadas por Jesus representam todos os desvalidos de todos os tempos e lugares.

            No Brasil atual, estes desvalidos são os desempregados, os indígenas, os negros, os homossexuais, as crianças, a mulher marginalizada, e todos aqueles que sofrem as consequências das opções opressoras do atual governo. Deus olha para todas estas pessoas e exige dos seguidores de Jesus que escutem e vejam o seu clamor. Jesus revela que Deus não está presente nas Igrejas que tapam os ouvidos e fecham os olhos para a triste realidade destes sofredores.

            Todos aqueles que exploram os pobres não podem abrir a boca para dizer que amam a Deus. Trata-se de uma terrível mentira. Para amar a Deus é preciso amar o próximo. No Brasil, boa parcela dos governantes se autodeclara “crente”, e verbaliza a defesa da moral e dos bons costumes. Mas suas ações são más, porque contrárias ao bem-estar dos desvalidos da sociedade. Jesus nos fala que estes “crentes” são sepulcros caiados, filhos de Satanás, porque devoram a carne dos pobres, tirando o pão da boca dos famintos, maltratando aqueles que são os prediletos de Deus.

            Às nossas Igrejas, Jesus ensina que o mais importante não é a lei, a doutrina, o templo, as rubricas litúrgicas, nem a conservação das estruturas que não mais correspondem às demandas dos nossos dias. O mais importante é a pessoa. Como estão as pessoas? Quais os seus sofrimentos? Como se relacionam com Deus? Como enxergam a Deus? O que fazer para que o mundo se torne menos injusto e mais fraterno? Estas são as perguntas que Jesus nos faz hoje, quando nos pede para ouvir e ver.

            Para conhecer Jesus é necessário abrir os olhos e os ouvidos. Escutar as pessoas, seus lamentos, sua situação. Ver a realidade do mundo, para enxergar a Presença divina que tudo abraça e transforma. O olhar contemplativo é o diferencial do cristão. Ver para enxergar e discernir. Aguçar o ouvido para escutar a voz de Deus que fala pela boca das pessoas. O grito dos injustiçados é o clamor do Cristo crucificado. Este clamor não pode ser ignorado por quem segue a Jesus. Como seguir a Jesus, ignorando o seu clamor na vida das vítimas deste mundo? Como prestar culto a Deus, sem ouvir o clamor das vítimas?...

            Diuturnamente, somos tentados a não ouvir nem ver. É verdade que a todo momento somos bombardeados por imagens e ruídos de todo tipo. Tudo conduz à dispersão. Praticamente, ninguém silencia para ouvir. A sociedade barulhenta provoca agitação. Vivemos em meio à gritaria. Há gritos que tendem a abafar o clamor dos sofredores. Há imagens que são criadas para cegar as pessoas, iludindo-as, porque escondem a realidade. A quantidade de pessoas cegas e surdas é assustadora: possuem ouvidos, mas não escutam; possuem olhos, mas não enxergam. Por isso, não conseguem escapar do precipício para onde são levadas. Tiraram-lhes a capacidade de ver e de ouvir.

            O cristão é alguém que viver acordado, pois enxerga e escuta. Quem permanece neste estado jamais se escandaliza por causa de Jesus; e não se escandaliza porque consegue ver as obras de Jesus e escutar a sua voz. Eis, portanto, a missão das Igrejas e, consequentemente, de cada cristão: conduzir as pessoas a Cristo Jesus, para que elas, encontrando-se com Ele, possam abrir os olhos e os ouvidos para ver e ouvir. E Jesus está na vida cotidiana do povo sofrido. Quem quiser se encontrar com Ele, não há outro lugar.

O católico pode até querer permanecer com Ele no conforto da adoração eucarística, numa bela e confortável capela do Santíssimo. Mas nesta capela, no silêncio da adoração, ele diz: Vai, eu te envio! Vai para o meio dos que sofrem! Toca as minhas chagas nos corpos dos irmãos e irmãs que encontrares pelo caminho! Meu caminho é movimento, ação e presença amorosa juntos aos outros. Levanta-te e anda!

Tiago de França