sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Sede perfeitos


“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
            Por acaso, podemos alcançar a perfeição? Certamente, não. Quem pode ser perfeito como Deus? Então, por que será que Jesus pede isso a seus seguidores? Os versículos anteriores, que formam o capítulo 5 de Mateus, respondem perfeitamente a esta indagação. Meditemos sobre Mateus 5,38-48.
            O texto começa fazendo referência à lei de talião: “Olho por olho e dente por dente!” Os seguidores de Jesus não podem praticar esta lei. Jesus recomenda que não se deve enfrentar quem é malvado. Geralmente, o que as pessoas fazem com o malvado? Desejam a sua morte, ou resolvem matá-lo, imediatamente. Jesus afirma que tais pessoas estão contrariando o mandamento de Deus.
            Facilmente, as pessoas aderem à cultura da vingança, pagando o mal com o mal. O ódio toma conta, e o desejo de morte controla as relações humanas. Há uma recusa à pacificação. Muitos semeiam o ódio, porque desejam uma sociedade banhada de sangue.
Para ilustrar, eis um exemplo: O atual presidente da República do Brasil, com seu projeto de facilitar o acesso às armas, prega a lei de talião. Publicamente, induz as pessoas à violência: Se uma pessoa te ameaça, mate-a, pois “bandido bom é bandido morto!” O mesmo presidente afirma ter fé em Jesus. Na verdade, desconhece o Evangelho de Jesus, porque pratica o oposto.
Ensinando seus discípulos a serem pacíficos, Jesus continua: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!” Geralmente, as pessoas querem matar seus inimigos, desejando-lhes toda espécie de mal. Esta não deve ser a postura de um seguidor de Jesus.
Jesus não está inocentando a quem faz o mal, nem insinuando a criação de uma sociedade pautada na anarquia. Não se trata disso. O que está ensinando é a via do amor como caminho eficaz de conversão. Todas as pessoas precisam ser amadas, pois é o amor que as transforma. O amor cessa a inimizade entre as pessoas, e acaba com a cultura da eliminação do outro; cultura de morte, portanto, antievangélica.
O ódio e as demais formas de violência não resolvem o problema do conflito entre os seres humanos. Não é matando as pessoas que diminuiremos nem acabaremos com a violência. Matar é, por si, um ato violento. Eliminar o outro é violência, crime e pecado grave. Aquele que é considerado inimigo e perseguidor merece o nosso amor, pois esta é a reposta indicada por Jesus.
O próprio Jesus nos ensinou o caminho: Não era um homem violento, mas pacífico. Até no momento da morte, perdoou aqueles que o mataram. A violência cresce por causa do ódio, da indiferença e das desigualdades de toda ordem. As pessoas pensam que a destruição do outro resolve o problema da violência. Muita gente lucra muito dinheiro com esta cultura de morte. O ser humano é capaz de lucrar com a desgraça de seu semelhante!
A indiferença também provoca a morte do outro. A pessoa indiferente trata o outro como se este não existisse. Toda pessoa precisa ser percebida, encontrada, tocada, cuidada, enfim, amada. A pessoa indiferente não pratica nada disso, mas dominada pelo egoísmo, está centrada em seus próprios interesses. No seio da religião cristã também encontramos muitas expressões do ódio e da indiferença: discursos, olhares e práticas que julgam, condenam, excluem e matam.
Jesus afirma que para nos tornarmos filhos do Pai que está nos céus precisamos ser pacíficos, amando os nossos inimigos e rezando por aqueles que nos perseguem. Precisamos amar não somente aqueles que nos amam, porque se assim procedermos, não estamos fazendo nada de extraordinário. É necessário amar a todos, sem distinção, pois é assim que o Pai celeste ama seus filhos e filhas.
 Numa sociedade marcada pela violência, estas palavras de Jesus aparentam ser utópicas demais. Talvez seja pelo fato de sermos acostumados ao clima de violência. Quando esta se torna normal e até necessária, ser pacífico parece coisa de gente ingênua. Mas Jesus não está ensinando ingenuidade, mas comunhão fraterna. Como defender a comunhão se enxergo o outro como inimigo a ser eliminado? Como participar da comunhão eucarística, enxergando o outro como inimigo?... Em Cristo Jesus, o outro é irmão e amigo, companheiro de caminhada rumo à plenitude do Reino.
Em sintonia com o texto evangélico, não tenhamos medo de anunciar esta verdade: Quem enxerga o outro como inimigo a ser combatido e eliminado, não está em comunhão com Jesus e seu Evangelho. A fé cristã é incompatível com a hostilidade e a exclusão das pessoas.
Onde há exclusão não há fé. Portanto, ser perfeito como o Pai celeste é perfeito significa ser amoroso e pacífico, pois fora do amor não há perfeição. Ser perfeito não é ser sem defeitos, mas ser misericordioso e manso, aberto ao outro para amar servindo. Por fim, vale lembrar o que nos ensina o apóstolo João ao nos dizer que “aquele que não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). Para viver é preciso amar. No amor somos perfeitos. Este é o caminho que conduz à salvação.

Tiago de França

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A religião do espetáculo (Meditação breve, baseada em Mc 8,11-13).

O texto fala que os fariseus pediram a Jesus um sinal do céu. Eles assim procederam para pô-lo à prova. Portanto, não é uma motivação boa nem edificante. Jesus percebe a malícia deles e se recusa a atender ao pedido.
É verdade que Deus Pai não o enviou para fazer espetáculo no mundo. Jesus não tinha como missão a realização de mágica para atrair as pessoas. Sempre que o provocavam, ele fugia.
Para a religião de nossos dias, fica esta lição: Precisamos evitar e até combater a religião do espetáculo. Há líderes religiosos que transformam o culto em um espetáculo, numa espécie de teatro que provoca emoção das pessoas. O cristianismo não nasceu com esta finalidade.
Em muitas situações, assistimos a estes desvios: ao invés de cultuarem a Deus, muitos líderes religiosos convocam as pessoas para que cultuem seus líderes. A religião se transforma em meio eficiente para fazer discípulos, mas não discípulos de Jesus, mas fãs de determinados líderes religiosos.
Jesus e sua mensagem ficam marginalizados. A religião do espetáculo tem outras finalidades: arrecadação de dinheiro; culto a determinados líderes religiosos; difundir ideologias de dominação; promover a cultura do milagre a qualquer custo; criar uma falsa imagem de Deus etc. Trata-se numa experiência religiosa pautada na idolatria, em detrimento do seguimento de Jesus Cristo.
Os políticos descomprometidos com o bem comum tendem a alimentar este tipo de religião, pois sabem que o processo de alienação é certo e eficiente. A religião do espetáculo cega a consciência das pessoas, aprisionando-as.
Assim, para este modelo de religião cabe a afirmação marxista de que a religião é "ópio do povo". O cristianismo nasceu com a intenção de proclamar o Evangelho de Jesus, que tem como centro o Reino de Deus. Fora disso, torna-se uma religião prejudicial à humanidade, verdadeiro desserviço ao progresso integral dos povos.

Tiago de França

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

O encontro do ex-presidente Lula com o Papa Francisco e o ódio da extrema direita

Após a publicação das fotos do Papa Francisco com o ex-presidente Lula, uma onda raivosa de críticas ao Papa tomou conta das redes sociais. No perfil do ex-presidente Lula nas redes sociais aparecem vergonhosas expressões de preconceito e ódio ao Papa e ao ex-presidente. Esta situação precisa ser denunciada.
Aqui refiro-me, principalmente, aos católicos ultraconservadores que, sem vergonha nenhuma, utilizam-se das redes sociais para expressar o contrário daquilo que ensina a fé cristã: o amor a Deus e ao próximo.
Para quem diz ter fé em Deus, a mensagem de Jesus pode ser traduzida da seguinte forma: Não gostar de uma pessoa, grupo ou instituição, não confere o direito de agredir, partindo para ofensas. Quem agride aos outros comete pecado e está em contradição com a fé que diz professar.
O cristianismo deve ser a religião da tolerância, do diálogo, do entendimento, do respeito, da reciprocidade, da solidariedade, da justiça e da paz. Não se identificar com alguém não justifica nenhuma espécie de agressão. Dentro e fora das religiões, somos chamados ao respeito. O respeito é uma das regras da civilidade humana.
Para um católico, a falta de respeito em relação ao Papa é mais grave ainda, pois o Papa é o Bispo de Roma, responsável por promover a unidade cristã. Segundo o direito canônico, o Papa possui a autoridade suprema da Igreja católica. Portanto, cabe a todo católico o respeito, a reverência, a obediência e a oração pelo Papa.
Para além do ofício que exerce, o Papa Francisco é uma das autoridades mais respeitadas do mundo atual, tornando-se referência para milhões de pessoas, dentro e fora da Igreja católica. Seu testemunho pessoal de integridade e compromisso com a justiça do Reino de Deus é sinal de alegria e estímulo para a construção de um mundo mais justo e fraterno.
O ex-presidente Lula é católico e tem todo direito de se encontrar com o Papa. Este o cumprimentou, quando da ocasião de sua prisão em Curitiba. Todo religioso deve acolher, escutar e dar uma palavra de ânimo a todos aqueles que possuem sede de justiça e paz.
O ex-presidente Lula não é um santo, pois somente Deus é Santo. Mas, aceitando ou não, concordando ou não, no mundo da política, tão necessário ao progresso dos povos, o ex-presidente figura entre os presidentes mais influentes da história política do Brasil. Quem discorda, compare a nossa situação atual, sob o presidente Bolsonaro, com a era Lula, e verá que estamos caminhando para trás. Hoje, os pobres não participam do progresso do País. O projeto político que está no poder está sustentado e voltado para a promoção dos ricos em detrimento dos pobres. Esta é a realidade.
Somente os ricos, os que se beneficiam deles e os que não tem consciência do que está acontecendo hoje no Brasil são os que discordam deste ponto de vista. Cresce a pobreza, filha do desemprego e da concentração de renda nas mãos da elite do poder econômico, da ausência de políticas públicas inclusivas, e da corrupção abafada pelo jogo de poder que aparenta justiça, mas, na verdade, esconde a corrupção. O ex-presidente Lula foi se encontrar com o Papa para falar sobre estas coisas e, certamente, foi escutado com respeito, atenção e afeto paternal.
Aos católicos e demais cristãos não católicos que reagiram violentamente à notícia da visita do ex-presidente Lula ao Papa Francisco, recomendo que releiam o Evangelho de Jesus, especialmente a passagem da regra de ouro, que diz: "Não julgueis, e não sereis julgados, pois com o julgamento com que julgardes, sereis julgados, e com a medida com que medirdes se medirá para vós" (Mateus 7,1-2). Estas palavras de Jesus são um convite à conversão.

Tiago de França

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O Evangelho de Jesus e o legalismo


“Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7,8).
        No campo religioso, muito facilmente se coloca o cumprimento dos preceitos religiosos no centro da vida de fé. As regras dão certa segurança e previsibilidade à vida. Portanto, o apego a elas não é algo difícil de acontecer, pois criam hábitos fixos, quase que intocáveis, fazendo surgir costumes que se perpetuam no tempo, formando as tradições.
          O legalismo consiste na prática da lei pela lei, desconsiderando a pluralidade das culturas e das circunstâncias, bem como negligenciando a dignidade da pessoa humana. Cria-se a lei com pretensão de universalidade, válida para todos, para ser aplicada de maneira uniformizada. Ignora-se a evolução oriunda das transformações que acontecem na vida cotidiana das inúmeras sociedades. Surge até uma tradição de prezar, em primeiro lugar, pela aplicação da lei, gerando pessoas e realidades engessadas.
            Em nome de certas tradições, muitos males já foram cometidos contra inúmeras categorias de pessoas. A “tradição dos homens”, expressão utilizada por Jesus, não pode ser invocada como ferramenta obrigatória para o acesso a Deus. Jesus denuncia os fariseus e mestres da lei, que se utilizavam da tradição humana para abandonar o mandamento de Deus.
            Não há nenhum mal em fazer memória do passado, com o objetivo de aprender com este. É verdade que os antepassados nos legaram tradições importantes, que tem muito a ensinar. São riquezas valiosas que precisam ser guardadas na memória do coração. É justo e salutar respeitar estas riquezas e mantê-las conservadas para as gerações futuras.
          Também no hoje da história, as mulheres e homens criam e recriam comportamentos e práticas que tornam viável a vida. Por isso, não se pode repetir o passado a qualquer custo. A inteligência humana é capaz de ler o passado para criar condições de possibilidade para o presente, facilitando a realização de todas as coisas para o bem de todos. O bem comum não pode ser marginalizado por causa da mera repetição de tradições antigas.
         Quando engessadas, tratadas como se fossem intocáveis, as tradições funcionam como se fossem leis que não admitem exceções, nem aperfeiçoamentos. Dessa forma, não há evolução possível, impedindo o progresso integral da humanidade. Cada época é composta por pessoas que ousaram criar, repensar, reinventar e, assim, provocar mudanças. A mudança provoca a evolução, enquanto que a tradição tende à conservação.
      O Evangelho mostra que Jesus não foi totalmente contrário a todas as tradições judaicas. Mas conhecemos a sua oposição a toda espécie de tradição que ocasionava a anulação do mandamento de Deus. Para Jesus, nada é mais importante que o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Diante do amor, o cumprimento da lei é relativo. Toda lei que contraria este mandamento divino não pode ser observada.
        O mandamento de Deus promove o bem de todos. O mal se apresenta como oposição a este mandamento. Colocar a lei acima do mandamento de Deus é um mal, um pecado gravíssimo. Portanto, cada circunstância exige discernimento, para se saber a vontade de Deus manifestada. O que Deus está querendo dizer? O que Ele está pedindo? Discernir para que se cumpra o mandamento de Deus, e não a lei pela lei.
        Uma lei religiosa somente possui legitimidade se a sua aplicação conduzir à proximidade com Deus. Ninguém pode, em nome de Deus, legislar em prejuízo desta proximidade. Trata-se de uma visível contradição. Os desafios pastorais das múltiplas realidades eclesiais exigem discernimento, para se evitar a falta do remédio da misericórdia divina devido à aplicação da lei. Se é possível oferecer ao povo de Deus a Palavra e o Pão que salvam, nenhuma lei humana pode impedir tal intento, porque a missão da Igreja no mundo é anunciar a Palavra e partilhar o Pão da Vida com os que tem sede e fome de justiça e paz.
          Na Igreja católica, temos a legislação canônica. No último cânon do Código de Direito Canônico está escrito que a salvação das almas “deve ser sempre a lei suprema da Igreja”. Assim, a lei canônica não pode ser usada para impedir as pessoas de terem acesso a Deus. A lei canônica não deve ser pedra de tropeço na caminhada cristã, mas instrumento que ajude as pessoas a observar o mandamento de Deus. Hoje, na vida da Igreja católica, muitos dos que exercem ofícios eclesiásticos estão deixando de lado esta “lei suprema da Igreja”.
        O excesso de proibições fere de morte a vitalidade da Igreja e o anúncio do Evangelho de Jesus. É preciso reafirmar que a lei canônica não está acima do Evangelho, mas decorre dele. Se Jesus diz sim, a lei canônica não pode dizer não. Jesus é o Mestre e o Legislador por excelência. É ele o caminho que conduz ao Pai. Ele é a porta das ovelhas. Não é a lei que salva, mas é Jesus que tem palavras de vida eterna. É Jesus o centro da vida cristã, não a normativa canônica.
Os nossos dias estão exigindo essa afirmação categórica da centralidade de Cristo Jesus na vida e missão da Igreja. A norma canônica não pode ser utilizada para impor tradições que travam o processo de evangelização da Igreja. Não podemos esquecer que a Igreja é de Jesus Cristo, e seu Evangelho deve ser a regra da vida cristã e eclesial. Este Evangelho é incompatível com toda forma de legalismo.
            Por fim, é preciso considerar que no juízo final todos seremos julgamos segundo a lei do amor (cf. Mt 25,31-46). Deus não nos perguntará se fomos fieis às leis, mas se o amamos em nossos irmãos e irmãs. Uma pessoa pode até ser fiel às prescrições de sua religião, mas se não tiver amor, de nada servirá a fidelidade a tais prescrições. O mundo e as Igrejas cristãs de nossos dias precisam de mulheres e homens livres e fieis no amor, pessoas que transcendem o cumprimento da lei e, assim, tornam-se sal da terra e luz do mundo, testemunhas de Jesus Cristo.

Tiago de França

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Ser sal da terra e luz do mundo

“Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus”. (Mt 5,16).
            Disse Jesus: “Vós sois o sal da terra” (Mt 5,13). Há uma diferença entre o ser e o fazer. No mundo pragmático, a vida vale mais pelo que se faz do que pelo que se é. Segundo a lógica capitalista, as pessoas precisam fazer. O fazer é atividade, produtividade, rendimento, eficiência, lucratividade. Facilmente, o ativismo domina. É preciso fazer bem e com agilidade. A pressa se torna parceira da perfeição. Neste sentido, quem nada faz é considerado imprestável e inútil, porque nada produz. Existe uma parcela imensa de pessoas que é descartada pelo sistema econômico mundial, porque considerada imprestável.
            Certamente, não se deve viver a vida sem nada fazer, pois no fazer também encontramos a razão de ser. O ser humano produz a sua existência por meio das inúmeras formas de atividade: professor, padeiro, porteiro, motorista, agricultor, piloto, gari, copeiro, escritor, médico, advogado, cientista etc. A inteligência humana cria e recria as coisas. O problema está na instrumentalização das atividades, quando realizadas em função do enriquecimento de alguns em detrimento da maioria, e a consequente coisificação do ser humano.
            No seio do cristianismo isto também ocorre. Muita gente sofre com o mal do ativismo religioso: o bom líder religioso é aquele que muito faz, tornando-se mero funcionário do sagrado. Este funcionário se entrega a uma agenda puxada, marcada por muitas reuniões e eventos. Isso gera falta de tempo para leitura, oração, meditação, contemplação e encontro afetivo e efetivo com as pessoas, especialmente com as que mais sofrem. Quase que não existe uma íntima comunhão com Deus. Não há tempo para estar com Deus na oração: o dia começa cedo, e à noite já não resta disposição para nada. Com o passar do tempo, aparece o cansaço existencial.
            Ser sal da terra vai muito além do mero fazer. Ser sal é tornar-se discípulo missionário de Jesus Cristo. O discípulo é alguém que faz a experiência do encontro pessoal com Jesus. Não se trata de um encontro mágico, nem marcado por meros sentimentos de uma suposta presença espiritual. Mas de um encontro que acontece no cotidiano da vida prática. No encontro com as pessoas, afetadas por alegrias e tristezas, encontramos Jesus. Os lugares de encontro com Jesus exigem saída, deslocamento, desinstalação, mudança de mentalidade e coragem.
            Converter-se em sal da terra e luz do mundo é aderir a Jesus Cristo para tornar-se outro Cristo. É um processo belo e gratificante, desafiador e possível; é caminho de configuração.
Na experiência de encontro com Jesus, aprende-se a ser como ele: cheio de compaixão. É preciso ser cristão, e isto implica ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo, para fazer o que disse o profeta Isaías: repartir o pão, acolher os pobres e peregrinos, vestir os nus, destruir os instrumentos de opressão, deixar os hábitos autoritários e a linguagem maldosa, e prestar socorro ao necessitado (cf. Is 58,7-10).
            O discípulo missionário irradia a luz de Cristo, porque traz em si esta luz. Portanto, é alguém dotado de humildade e mansidão, alegria e paz. Como o apóstolo Paulo, é portador de uma palavra ungida com o poder do Espírito, para ajudar aos outros na caminhada de fé (cf. 1Cor 2,4-5).
Quem, de fato, tornou-se cristão é identificado pela alegria do Evangelho, e por uma disponibilidade permanente para amar e ser amado. A arrogância, o espírito de superioridade, o trato indiferente para com os outros, a inveja, o rancor, a malícia e tantos outros sentimentos e posturas incoerentes não encontram lugar na vida do discípulo missionário de Jesus Cristo. A boa obra por excelência que se faz presente na vida do cristão é a íntima comunhão com a Trindade. Daí decorre todas as outras boas obras, que vistas pelas demais pessoas, provocam o louvor a Deus Pai, autor de todo bem e toda graça.
O cristianismo e o mundo atuais precisam do testemunho de pessoas unidas à Trindade, pois a fé não cresce por causa da fidelidade aos preceitos religiosos, nem porque aderimos a um conjunto de doutrinas religiosas. A fé cresce quando permitimos que a Trindade faça morada em nós, conferindo sabor e luz à vida. Aqui está o sentido da existência humana: viver em comunhão com Deus e com o próximo. Esta comunhão é constantemente ameaçada, mas pelo poder do Espírito, o Paráclito, é possível mantê-la, porque aí residem a possibilidade de outro mundo possível e a salvação da humanidade.

Tiago de França

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Dom Helder Câmara: profeta do Reino de Deus


         Há testemunhos que não podem ser esquecidos, porque marcaram a história da Igreja católica e da humanidade. Dom Helder não marcou apenas a história da Igreja católica, mas também a caminhada da humanidade. O seu testemunho é conhecido por muitos, dentro e fora do meio eclesial.
Nasceu em Fortaleza – CE, no dia 7 de fevereiro de 1909. Hoje é dia de memória obrigatória para todos aqueles que se identificam com a justiça do Reino de Deus. Em linhas breves, irei discorrer a respeito do caráter profético deste grande bispo católico.
            O profeta é pessoa de palavras e gestos, é o mensageiro de Deus numa época e lugar determinados; é portador da palavra de Deus, viva e eficaz. Palavra que tem força por si mesma, capaz de transformar, iluminar e libertar das trevas do erro e de toda espécie de opressão. O profeta sabe que é portador desta palavra transformadora de Deus.
         Quando fala, o profeta incomoda. Este incômodo decorre da proclamação da verdade da palavra que carrega e pronuncia. A verdade desmascara a mentira e o mentiroso. A proclamação da verdade é sempre atividade arriscada e, portanto, perigosa. Não resta outra alternativa ao profeta senão a proclamação da verdade contida na palavra de Deus.
Daí decorre a incompreensão e a perseguição. Dom Helder era um profeta desta palavra verdadeira de Deus. Ele a pronunciava com eloquência, sabedoria, clareza, ousadia e coragem. Dava gosto escutá-lo.
Em tempos ditatoriais, Dom Helder denunciou os horrores da ditadura. A sua voz ultrapassou as fronteiras do Brasil. Os militares e seus admiradores o odiavam, mas nada puderam fazer. Ninguém segurava o profeta de estatura baixa, cearense destemido, discípulo missionário do Senhor.
Dom Helder não se limitava a sua Igreja particular de Olinda e Recife. Até o Papa, desde Roma, dizia que ele deveria cuidar em permanecer nos limites de sua Igreja particular, porque era missão do Papa viajar o mundo para anunciar o Evangelho. Mas Dom Helder era bispo, sucessor dos apóstolos, e conhecia bem a sua missão. Ele sabia que a Igreja particular é uma expressão da Igreja católica (universal). Ele conhecia a eclesiologia do concílio Vaticano II, e se sentia chamado a anunciar o Evangelho também fora dos limites de sua Igreja particular.
Mas Dom Helder não era somente um homem da palavra, do discurso eloquente. Ele sabia que a Palavra se fez carne e habitou entre nós. Assim, conhecia bem a manifestação de Jesus na carne dos pobres e sofredores. Ficou conhecido como “bispo vermelho”, acusado de comunismo, porque ingressou na fileira dos servidores de Jesus nos pobres e sofredores. Mergulhou com gosto nas lutas dos pobres, promovendo e defendendo os direitos humanos. Foi um conhecedor e praticante da Doutrina Social da Igreja. Soube encarnar com maestria, leveza, humildade e simplicidade, a mensagem evangélica de Jesus, vivida na opção pelos pobres.
      Seus gestos eram simples e eloquentes, pois questionavam os acomodados e os incomodados. Sua expressão era apaixonante, porque encantava a quem dele se aproximava. Suas palavras e gestos eram fruto de uma vocação vivida intensamente, sem divisão. Dom Helder era um homem integrado. Seu sorriso e presença de espírito revelavam um homem leve, livre e feliz. Era convicto de sua missão, pois tinha clareza do chamado de Deus à profecia.
            Gostava de ler, escrever, rezar e falar às multidões. Dormia pouco, para se dedicar à leitura, oração, meditação e contemplação. Viveu incansavelmente. Os que tiveram a graça de conviver com ele ficavam admirados com a sua disposição.
Não era de se entregar às murmurações. Homem da esperança, sabia consolar os aflitos. Consolado e conduzido pelo Espírito, era como o poço de Jacó, porque unido à Trindade, foi transformado em fonte, sal da terra e luz do mundo, conforme a palavra de Jesus nos evangelhos.
            Recordar o nascimento de Dom Helder é bendizer a Deus por tão belo testemunho; é recordar o mandato missionário de Jesus: Ide e evangelizai! Dom Helder nos ensina que não podemos esquecer que o anúncio do Evangelho de Jesus é palavra e gesto que transformam e salvam.  
No centro desse Evangelho está o Reino de Deus. Em outras palavras, é este Reino o núcleo fundamental da mensagem de Jesus. A Igreja católica não pode priorizar outras coisas senão o anúncio e edificação deste Reino: realidade simultaneamente presente e escatológica.
            Aos pastores de nossas Igrejas, Dom Helder é um convite à reflexão. Como estão anunciando Jesus? Quais as palavras e os gestos utilizados? Como anda o testemunho pessoal? Anunciam o Evangelho, ou se utilizam do Evangelho para outras finalidades diferentes e até opostas ao anúncio do Reino? O processo de evangelização tem contribuído para um maior conhecimento e adesão a Jesus Cristo, ou tem provocado o afastamento e repulsa das pessoas? O profeta Dom Helder, com suas palavras e gestos, desperta-nos para a reflexão destas e outras questões.
            Em nossos dias, o Papa Francisco tem apontado para a mesma direção que Dom Helder apontou: uma “Igreja em saída” na direção dos pobres e sofredores. Quem se opõe a este projeto, que possui a sua razão de ser no Evangelho de Jesus, não pode dizer que está unido à Igreja e ao projeto de Jesus. A missão da Igreja é a missão de cada cristão batizado.
Sobre esta missão, nos ensina Dom Helder: “Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso Eu. É parar de dar volta ao redor de nós mesmos como se fôssemos o centro do mundo e da vida.   É não se deixar bloquear nos problemas do pequeno mundo a que pertencemos: a humanidade é maior. Missão é sempre partir, mas não devorar quilômetros. É sobretudo abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los. E, se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então missão é partir até os confins do mundo”.
Quem não tiver a coragem de partir, de sair de si e quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha aos outros, passará pela vida sem viver a missão confiada por Deus. Sejamos profetas! Não deixemos a profecia cair: este foi o último pedido do profeta Dom Helder, antes de mergulhar, definitivamente, no seio da Trindade.

Tiago de França

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Jesus Cristo: Luz das nações


“Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel” (Lc 2, 29-32).
            Neste domingo, a Igreja católica celebra a Festa da Apresentação do Senhor, inicialmente celebrada no oriente, e a partir do séc. VI também no ocidente. Até o Vaticano II, era uma festa mariana, que falava da purificação de Maria. Após o concílio, retomou seu caráter cristológico. O que esta festa quer nos dizer? O texto evangélico proposto (cf. Lucas 2, 22-40) possui vários elementos que merecem a nossa atenção, e que traduzem o sentido desta festa. Vamos meditar três deles.
            O primeiro se refere ao cumprimento da lei, que dizia que todo primogênito deveria ser apresentado ao Senhor, para ser consagrado. Jesus foi apresentado ao seu Pai. Eis, portanto, o encontro do Pai e do Filho no templo de Jerusalém. Jesus menino já se encontra no Templo, lugar onde se dizia que habitava Deus. No templo estava um homem justo e piedoso, que esperava a consolação do povo de Israel: Simeão. Este ancião recebeu do Espírito a revelação de que não morreria sem conhecer o Consolador do povo de Deus, o Messias prometido.
            Interessante como o texto faz questão de dizer que “o Espírito Santo estava com ele”. Simeão era um homem de Deus, habitado pelo Espírito. Este Espírito é o revelador dos planos divinos. Desde a criação acompanha a realização do plano de Deus neste mundo. Maria concebeu pela força deste Espírito, e Jesus foi guiado pelo mesmo Espírito. Também hoje, o Espírito continua trabalhando, dia e noite, falando ao coração daqueles que se abrem à sua ação amorosa. É o Espírito que nos faz justos e piedosos; que deu a Simeão a graça de ter o Messias em seus braços. Que bela promessa! Que bela realização! Que momento sublime!
            O segundo elemento que aparece no texto, discreto, mas não menos importante, é a presença silenciosa de Ana, a profetisa oriunda da tribo de Aser, filha de Fanuel. Era idosa, e vivia servindo a Deus no Templo, com jejuns e orações. As qualidades destes dois idosos servidores do Senhor, Simeão e Ana, são edificantes e nos servem de exemplo: justiça, piedade, jejum e oração. São práticas comuns a todos os que se colocam no caminho do Senhor. O texto diz que ela louvava a Deus e falava de Jesus “a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém”. Ana dá testemunho de Jesus, anunciando-o com alegria. Esta é a sua profecia.
            E o texto termina com um terceiro elemento que merece ser considerado: “Jesus crescia e tornava-se forte, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele”. Ele é o retrato da grandeza de Deus, que se manifesta na pequenez e na fragilidade de uma criança. É a encarnação da força divina, que salva a todos, e está acima de todas as forças do mal que operam neste mundo. Ele é “o sumo-sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus” (Hebreus 2, 17). Jesus é a realização da promessa divina, revelada pelos profetas antigos; é aquele que liberta do medo e do poder da morte, e de toda espécie de escravidão.
            A celebração da festa da Apresentação do Senhor nos ensina a sermos como Simeão e Ana, que esperavam a realização da promessa de Deus. O mesmo Espírito que estava com Simeão também habita o nosso ser: Espírito de fortaleza e sabedoria. Desde o mais profundo do nosso ser, este Espírito nos revela o Senhor, que com o Pai habita em nós, transformando-nos em moradas da Trindade. Somos parte do povo de Deus, que deseja ser consolado por Aquele que jamais abandona seus filhos e filhas, que ama infinitamente e permanece fiel.
            Não podemos nos deixar dominar pelo desespero. Deus já habita a nossa casa e nossa cidade. Ele já armou a sua tenda entre nós. De uma vez por todas, entrou em nossa vida. Basta abrirmos os olhos e os ouvidos para enxergá-lo em nós. Ele fala ao coração, silenciosa e perseverantemente. Seu amor é o nosso consolo, alegria e força. O barulho do mundo e as ameaças dos fortes não possuem nenhum poder sobre aqueles que descobriram a presença amorosa de Deus.
O amor de Deus afasta o medo, confere força, alento e sentido à vida. Pertencemos a Deus, porque somos seus filhos; a sua Luz nos foi revelada. Com alegria e esperança podemos acolher esta Luz, para que no tempo oportuno possamos dizer como Simeão: “Agora, Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar teu servo partir em paz; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: luz para iluminar as nações e glória do teu povo Israel”. Estamos em segurança, em Cristo Deus nos salvou.

Tiago de França