quarta-feira, 25 de março de 2020

A vida e a economia

Os presidentes dos EUA e do Brasil estão causando perplexidade no mundo inteiro. A forma como lidam com a pandemia do coronavírus transparece uma preocupação unilateral com a economia. É verdade que a economia é importante. Mas que tipo de economia estes dois presidentes defendem e promovem?
A economia capitalista é exclusivista, e não inclusiva. Em primeiro lugar, busca-se o lucro. Este é o fator mais importante. Para lucrar, o empresário faz o possível e até o impossível. Produzir, vender, consumir, multiplicar, explorar, mercantilizar, coisificar são, entre outros, os verbos que indicam ações e métodos capitalistas.
Preservar o meio ambiente, cuidar das pessoas, promover a dignidade humana, incluir os excluídos, priorizar a solidariedade entre pessoas e povos, reduzir as desigualdades sociais etc., são ações que não encontram lugar na economia capitalista. O capitalismo selvagem não prioriza a vida humana, mas a coisifica, tendo em vista o lucro.
Quem está por trás dos discursos abomináveis de Trump e Bolsonaro? A resposta é simples e objetiva: A elite econômica. Esta é formada pelos grandes empresários, pessoas que financiam as campanhas eleitorais, que buscam controlar a política e as instituições do Estado.
No Brasil, a elite e grande parte da classe média (esta pensa que é elite, mas não é) trabalharam, incansavelmente, para que Bolsonaro fosse eleito. Este cenário desastroso que assistimos causa perplexidade nos pobres e em parte da classe média. Os grandes empresários não estão vendo problema algum.
Em tempos de pandemia, o que faz a elite econômica? Pressionam os governantes para que mantenham seus privilégios. Por isso que todas as medidas tomadas nos EUA e no Brasil, bem como em outras partes do mundo, mas principalmente nestes dois países, visam preservar a economia dos ricos: uma economia excludente.
Os EUA vão injetar bilhões e bilhões de dólares na economia, favorecendo as grandes empresas, que já são riquíssimas. O dinheiro público será utilizado para beneficiar os mais ricos. No Brasil, não há tanto dinheiro como nos EUA, para se injetar na economia. Mas mesmo assim, além do pouco que se tem, e que se colocará à disposição dos mais ricos, inúmeras medidas estão sendo tomadas, incluindo mudanças legislativas, para beneficiar os empresários. Aos pobres, foi anunciada uma esmola de R$ 200,00 (duzentos reais).
Não interessa aos capitalistas selvagens uma economia de bem-estar social, mas defendem o Estado mínimo. Este só interfere na economia para evitar que as grandes empresas quebrem. Um Estado mínimo não interfere, mas permite o abuso, a exploração, a selvageria, o constante desrespeito à dignidade da pessoa humana. O Estado mínimo não responde por nada nem por ninguém, mas abandona os mais pobres à própria sorte. Cada um salve-se como puder. Esta é a regra.
A esperança é a de que os brasileiros estejam prestando atenção a tudo isso. Do contrário, neste ano e em 2022, por ocasião das eleições municipais e gerais, vai se repetir a triste escolha majoritária feita nas duas últimas eleições: uma maioria de políticos muito ricos, gente da elite econômica, que está dominando o Estado para seu próprio benefício. Que os brasileiros acordem para a realidade, antes que seja tarde demais.


Tiago de França

Um pronunciamento irresponsável


Acompanhei, atentamente, o pronunciamento do presidente da República, veiculado pelo rádio e TV, às 20h30, desta terça-feira, 24 de março.
O presidente continua subestimando os riscos de contágio do coronavírus. Trata-se de uma fala que precisa ser repudiada, pois retrata um alto grau de irresponsabilidade.
Em seu pronunciamento, falou que o coronavírus só representa perigo aos idosos, pessoas com mais de 60 anos de idade. Isso não é verdade. Inúmeras pessoas estão morrendo com até menos de quarenta anos.
Outro absurdo falado pelo presidente: Não é necessário o isolamento social, pois a vida deve transcorrer normalmente. Isso não é verdade. O isolamento social é uma das medidas mais eficientes para evitar a proliferação do vírus.
Outra mentira contada pelo presidente: o coronavírus causa, no máximo, uma "gripezinha" nas pessoas com menos de 60 anos. Isso não é verdade. O vírus não provoca gripe comum, mas é capaz de provocar a morte das pessoas, como estamos assistindo no Brasil e no mundo.
No início de sua fala, o presidente também mentiu ao dizer que desde o início o governo se preparou para enfrentar o problema. Quem assiste aos jornais sabe que o presidente não acredita na necessidade de precaução. Inclusive, em sua fala afirmou ser contrário ao fechamento de escolas, criticando as medidas dos governadores.
A posição do presidente é irresponsável porque induz as pessoas a não encarar o problema com seriedade e responsabilidade. O presidente não está preocupado com a vida das pessoas, mas está pensando somente na economia. Está ignorando as orientações do ministério da saúde do seu próprio governo, bem como os alertas da Organização Mundial da Saúde.
Não estamos diante de uma histeria nem de alarmes falsos, mas estamos lidando com uma das pandemias mais violentas da história mundial. Cada pessoa é chamada a se prevenir contra o coronavírus. A fala do presidente não contribuiu em nada, e merece o repúdio de toda pessoa que goza do mínino do bom senso.

Tiago de França

domingo, 22 de março de 2020

A fé cristã em tempos de coronavírus


       O coronavírus surgiu na China e se espalhou por praticamente todo o mundo, causando medo, desolação e mortes. As autoridades sanitárias anunciam medidas preventivas, e os profissionais da saúde tratam os enfermos. O isolamento social virou regra, cujo objetivo é conter a transmissão do vírus. Muitas pessoas continuam brincando com a situação, comportando-se como se o vírus fosse inofensivo. O presidente da República do Brasil é uma destas pessoas, que mais se preocupa com o resultado anual do produto interno bruto (PIB), do que com a saúde das pessoas.
            Mas neste breve artigo queremos discorrer a respeito da fé cristã em tempos de coronavírus. O que a fé em Jesus tem a dizer nestes tempos tão desoladores? Como deve o cristão proceder diante do avanço avassalador de um vírus que mata milhares de pessoas? A Igreja católica tem levado em consideração as recomendações das autoridades sanitárias sobre a pandemia do coronavírus: todas as atividades religiosas estão suspensas. Mas não queremos falar sobre as restrições religiosas, mas tratar de algumas afirmações que se espalham, principalmente nas redes sociais, e que revelam uma imagem deturpada do Deus e Pai de Jesus de Nazaré.
            Muitos propagam a ideia de um deus castigador, afirmando que o vírus seria um castigo de Deus. Categoricamente, temos que afirmar que tal ideia não encontra legitimidade nas Sagradas Escrituras. O Deus revelado em Jesus de Nazaré é Pai misericordioso, cheio de bondade e ternura. Jesus revelou que Deus é Amor. Um Deus que é Amor não castiga nem se vinga de seus filhos e filhas. Deus é o sumo Bem, e nele não existe o mal. Castigo e vingança são coisas más. Deus não se utiliza dessas coisas para chamar a atenção da humanidade.
            A ciência está aí para nos falar sobre a origem do coronavírus. Não se pode atribuir o mal a Deus. Portanto, desconsideremos essas mensagens deturpadoras da natureza divina. É no amor e para o amor que Deus se manifesta. Ele liberta o homem do mal através do amor, jamais utilizando o castigo e a vingança. Castigo e vingança são coisas do ser humano, que se desviando do caminho de Deus, pratica o mal. Esta é a mensagem cristã. O Deus e Pai de Jesus é o Deus da compaixão, que escuta o clamor dos injustiçados e sofredores e vem socorrê-los. Ele vê e conhece o sofrimento da humanidade (cf. Êxodo 3,7).
            Outra ideia recorrente nestes dias é a de que estamos na iminência do fim do mundo. Quem lê as Sagradas Escrituras sabe que Deus não revelou a ninguém o dia do juízo final. As Escrituras falam deste juízo final (cf. Mateus 25,31-46), mas Jesus de Nazaré não mencionou data. O que fez foi apontar para o amor, como condição para a salvação oferecida por Deus. Os que serão salvos experimentam desde já o amor de Deus na relação amorosa com Deus, o próximo e toda a criação.
Jesus de Nazaré não pregou nem incentivou apocaliptismos, ou seja, não vivia amedrontando as pessoas, exortando-as sobre o fim do mundo. Este tema não ocupava a centralidade de sua mensagem. Para ele, o mais importante é amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Quem muito se ocupa com o fim do mundo, termina se esquecendo de viver o amor.
            O evangelho diz que é necessário rezar e vigiar (cf. Marcos 13,33). Quem assim procede, não vive preocupado com o fim do mundo. A oração, a vigilância e o amor são práticas que pertencem ao cotidiano da vida cristã, que revelam a necessária intimidade que se deve ter com Deus. Quem vive em sintonia com Deus não precisa se preocupar com o juízo final. A intimidade com Deus gera força, segurança, serenidade, firmeza e perseverança.
            Uma postura questionável de muitas pessoas diante da pandemia é a de quem tenta a Deus. Há pessoas que não seguem as orientações das autoridades sanitárias e pensam que poderão escapar do vírus porque acreditam em Deus. A fé em Deus não dispensa a prevenção. Uma pessoa de fé quando acometida por uma doença, deve procurar o médico, para diagnóstico e medicação; uma pessoa de fé faz os exames de prevenção das doenças; uma pessoa de fé evita a rua deserta após às 22h para não ser assaltada ou sofrer outro tipo de violência; enfim, uma pessoa de fé não tenta o Senhor seu Deus (cf. Mateus 4,7). É preciso confiar em Deus sem deixar de se precaver (cf. Mateus 10,16).
            A fé cristã ensina que o seguidor de Jesus é alguém que se alegra na perseverança, é paciente na tribulação e perseverante na oração (cf. Romanos 12,12). Vivemos tempos sombrios, de intensa tribulação. Esta exige alegria, perseverança, paciência e oração. Para evitar o desespero, este é o caminho. A esperança cristã não é ingênua nem alienada, mas ativa.
O cristão espera em Deus sem jamais se conformar com este mundo. Esperançoso, o seguidor de Jesus é alguém que confia na oportuna intervenção de Deus, que age na história humana. O Deus e Pai de Jesus é próximo, atento, compassivo e bom. Deus age na hora certa e a partir dos meios certos. Não é dado a espetáculo, mas age discretamente, e, assim, vai conduzindo a humanidade com seu amor generoso. É neste Deus que cada seguidor de Jesus é chamado a confiar; um Deus que permanece fiel, apesar da infidelidade das mulheres e homens que tornam este mundo cada vez mais difícil e desumano.
Em tempos de coronavírus a postura do cristão, seguidor de Jesus, é a de quem espera em Deus, precavendo-se de todo mal e sendo solidário com o próximo. Escutar os “profetas da desgraça” não é um bom caminho. Escutemos os profetas da esperança, que estão agindo, diuturnamente, para erradicar o mal do mundo, com palavras e gestos de cuidado.
Cada cristão é chamado a ser um profeta da esperança, recusando-se a reforçar ideias deturpadoras da realidade e de Deus. O profeta da esperança vive a experiência do encontro com Deus, e conduz os outros a esta mesma experiência (cf. João 4, 28-29). Quem se encontra com Deus e nele permanece não se deixa dominar pelo medo e pelas falsas ideologias, pois se encontra envolvido pelo amor que salva e dura para sempre.

Tiago de França

sexta-feira, 13 de março de 2020

Algumas considerações sobre os sete anos de pontificado do Papa Francisco


“A Igreja não está no mundo para condenar, mas para promover o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, é necessário sair. Sair das igrejas e das paróquias, sair e ir à procura das pessoas onde elas se encontram, onde sofrem, onde esperam” (Papa Francisco).
            Na noite do dia 13 de março de 2013, Francisco iniciava o seu pontificado. Apresentou-se com muita humildade, dizendo que foram buscá-lo no “fim do mundo”. Para a Diocese de Roma, o colégio de cardeais elegeu um Papa latinoamericano, algo inédito na história da Igreja. Sucessor de um alemão erudito, versado na Teologia, Francisco tem a marca do pastor com cheiro de ovelhas. Não é um teólogo, no sentido profissional do termo, mas um pastor marcado pela misericórdia de Deus.
            Apesar de não ser teólogo, o magistério pontifício de Francisco é extraordinário. Não é um Papa desprovido de conhecimento sobre as coisas de Deus; pelo contrário, como um bom jesuíta, é experimentado no discernimento e um buscador de Deus em todas as coisas. A teologia de Francisco é prática, profundamente pastoral. Esta é a teologia necessária, pois de nada serve o conhecimento que não possui uma finalidade prática; no caso da teologia, uma finalidade pastoral.
            Francisco sabe ser simples e profundo, sabe inquietar as consciências adormecidas, e sabe também provocar inquietação nos acomodados e nos covardes. É um Papa que mexe com aqueles que o conhecem, que entram em contato com seus gestos e pensamentos. Não fala nem age para agradar, mas para provocar a mudança de vida e de mentalidade. Neste sentido, aprendeu bem a lição ensinada por Jesus a seus discípulos. Jesus ensinava a anunciar com destemor e ternura, com mansidão e alegria.
            Com poucos meses de pontificado, em 2013, o Papa publicou a sua primeira exortação apostólica, intitulada “A alegria do evangelho”, sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. Após a renúncia do Papa Bento XVI, a Igreja estava precisando conhecer melhor a alegria do evangelho, pois sempre reinou em seu seio uma certa tristeza, um certo modelo de Igreja marcado pelo medo (penitências, condenações, sofrimentos etc.). O acento excessivo da morte fez muita gente não celebrar a Páscoa do Senhor, em todos os âmbitos da vida da Igreja.
            De fato, a alegria faz parte da vida do Papa Francisco. Ele vive a experiência da alegria do evangelho. Por onde anda, irradia alegria. O cristão é uma pessoa alegre, porque se encontrou com Jesus. É com a alegria de viver unido a Jesus que Francisco enfrenta as dificuldades de sua missão pontifícia. Seus opositores, que foram surgindo ao longo destes sete anos, são pessoas tristes e raivosas, invejosas e apegadas a tudo aquilo que ele denuncia: o apego ao poder, dinheiro e prestígio; o clericalismo, que sempre fez mal à Igreja; o capitalismo selvagem, que escraviza e mata; a globalização da indiferença, que ceifa a vida de milhões de pessoas; a cultura do acobertamento dos abusos sexuais de menores, cometidos por clérigos, verdadeira ferida aberta no corpo eclesial; e tantos outros males que ferem a dignidade da pessoa humana.
            Francisco é um Papa do Vaticano II, marcado por uma eclesiologia de comunhão e participação, promotor do caráter sinodal da Igreja. Seu proceder não promove nem reforça atitudes proselitistas e de fechamento ao mundo; seu linguajar é simples e provoca proximidade. Seu estilo de ser Papa nos recorda que o Papa não é um ser supremo, angelical, supranatural, dotado de poderes sobrenaturais e conhecedor de mistérios que vão além do mistério de Cristo e da Igreja. Nada disso. Francisco, com seu testemunho, ensina que o Papa é o Bispo da Diocese de Roma, o Irmão entre os irmãos, chamado a confirmar na fé os que seguem Jesus em comunhão com a Igreja.
            No seio da Igreja, clérigos e leigos, que apreciam e fazem uso da pomposidade na liturgia e nas vestes, que gostam do brilhantismo, que possuem mania de grandeza e espírito de superioridade, e que promovem a centralização de poder, geralmente não gostam de Francisco, pois nele não há nada disso. E não há porque em Jesus também não encontramos tais coisas. Na Igreja temos essas coisas, mas são contrárias ao evangelho de Jesus Cristo. Ainda não temos uma Igreja pobre para os pobres. Este é um sonho que ganhou espaço na concepção de Igreja de Francisco, em suas palavras e gestos.
            A oposição ao Papa Francisco é a oposição a um modelo de Igreja. Geralmente, os opositores de Francisco defendem o modelo eclesial de cristandade, marcado pela centralização de poder, pelo espírito de hegemonia, pela ênfase na disciplina e características exteriores em detrimento do despojamento e do espírito evangélico de serviço aos pobres e oprimidos. Este modelo de cristandade foi suplantado pela pós-modernidade. Francisco sabe e ensina que não estamos mais na época em que a Igreja era escutada pelas pessoas, governos e instituições. Vivemos na época do desprezo ao sentimento e aos símbolos religiosos. Quando estes são considerados, na verdade, são manipulados para servir a interesses opostos aos de sua finalidade religiosa.
            O modelo de Igreja do Vaticano II, que Francisco tem insistido em promover, é o de uma Igreja acolhedora, chamada a promover o encontro com a misericórdia de Deus; uma Igreja que conduz as pessoas ao encontro com Jesus, encontro capaz de conferir um novo sentido à vida. Uma Igreja aberta ao diálogo, que não se coloca acima das demais instituições; uma Igreja advogada dos pobres e servidora do evangelho de Cristo Jesus. O Papa tem trabalhado incansavelmente para que este modelo cresça e prevaleça.
            Por fim, para não cairmos no pecado da papolatria, temos que admitir que o Papa tem seus limites. Ele mesmo se declara um pecador necessitado da misericórdia de Deus, como os demais membros da Igreja. É verdade que Francisco poderia ter feito mais mudanças, mas para os sete anos de caminhada, o saldo é positivo. A reforma de uma instituição bimilenar não se faz de forma repentina. Há muitos entraves e resistências. A Igreja não está habituada a reformas. Há uma forte tendência ao espírito da mera continuidade e repetição de velhas práticas que não mais funcionam. Aos poucos, o Espírito do Senhor, que conduz a Igreja vai mostrando e promovendo a escolha e eleição de pessoas capazes de promover as mudanças necessárias.
            Francisco está sendo um dom do Espírito à Igreja. É um semeador de sonhos e esperanças, um homem de Deus que foi enviado para apontar para o evangelho de Jesus. Muito do que Francisco está semeando na Igreja, somente no futuro colheremos os frutos. No coração de muita gente está sendo semeada a semente do evangelho. Dentro e fora da Igreja, muitas pessoas estão conhecendo a alegria do Evangelho. E esta alegria é contagiante; quem a experimenta é transformado em portador da esperança ativa. Francisco é uma das surpresas de Deus nestes tempos sombrios de muita violência, destruição e morte; é uma prova de que Deus não deixa faltar os profetas, enviados no tempo oportuno, segundo os desígnios de Deus.

Tiago de França

quinta-feira, 5 de março de 2020

O pecado e a graça


“A mensagem de Jesus é a misericórdia”. (Papa Francisco)
            O tempo da Quaresma é oportuno para falarmos do pecado e da graça. O que nos orienta nesta meditação é o trecho do evangelho de Jesus segundo Lucas 18, 9-14 e estas belíssimas palavras do Papa Francisco que introduzem estas breves reflexões.
            O texto de Lucas nos fala de duas pessoas que se colocaram diante de Deus em oração: um era fariseu, e o outro, publicano (cobrador de impostos). Em sua oração, o fariseu começa agradecendo a Deus por não ser “como os outros”. Estes “outros” eram os ladrões, os desonestos, os adúlteros e o publicano. O fariseu reza em tom de superioridade, ou seja, colocando-se acima dos outros, apresentando-se como alguém superior.
            Este tipo de atitude não agrada a Deus. Sentir-se superior aos outros já constitui um pecado. Trata-se de uma postura orgulhosa. Deus não escuta a prece do orgulhoso. Este tipo de comportamento não deveria existir, pois todos somos pecadores. A condição de pecador é única: todos dela participamos. Um pecador não deve apontar o pecado do outro. A ninguém Jesus deu este poder. Quem assim procede, comete pecado e se afasta de Deus.
            Em seguida, o fariseu acrescenta que jejuava duas vezes por semana e pagava o dízimo de toda a sua renda. Estas eram as suas obras. Ele parecia querer se justificar diante de Deus a partir destas suas obras. O fariseu era um fiel cumpridor dos preceitos religiosos. Mas isto não basta. A justificação não passa pelo fiel cumprimento dos preceitos. É verdade que estes possuem o seu lugar e a sua importância na vida cristã. Mas por si mesmos não salvam, nem justificam a pessoa diante de Deus.
            É necessário ir além. A mera observância das leis é muito pouco para Deus. Jesus nos revelou que o mais importante é o amor a Deus e ao próximo. Trata-se de um amor exigente, que requer renúncia, entrega, disponibilidade, encontro, abraço, gestos concretos. O amor é ação que nos faz transcender a nós mesmos. O amor nos arrebata para a mais alta e sublime comunhão com Deus na relação amorosa com o próximo. Este é o que está caído à beira dos caminhos da vida, carente de nossa atenção e cuidado.
            O fariseu jejuava e pagava o dízimo, mas não estava aberto ao próximo. Este não foi contemplado na lista de suas preocupações. O fariseu estava preocupado em ser fiel às prescrições de sua religião, pois o mais importante era o cumprimento da lei. O publicano não cumpria a lei, mas era um pecador público, pessoa rejeitada e odiada pelos outros, porque cobrava além do estabelecido.
            O texto fala de três gestos que integram a atitude do publicano em sua maneira de rezar: ficou à distância, não se atrevia a levantar os olhos e batia no peito. É a postura de quem se reconhece pecador, de quem tem consciência de seu pecado. A sua oração revela esta verdade: “Meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador”. O publicano se humilhou diante de Deus, enquanto que o fariseu se exaltou.
            Somente quem se reconhece pecador está em condições de implorar a misericórdia divina. Este reconhecimento é a porta de entrada para a mudança de vida. Como se converter sem se reconhecer pecador? A clareza e consciência dos próprios pecados, e o firme propósito de emendar-se são requisitos essenciais para a experiência da misericórdia de Deus. O texto fala que o publicano voltou para casa justificado, e o fariseu não. O publicano se mostrou necessitado da misericórdia de Deus. Não sofria do pecado da autossuficiência.
            Em nossas comunidades cristãs encontramos muitas pessoas que imitam a atitude do fariseu: pessoas que cumprem os preceitos religiosos e batem no peito, achando-se perfeitas e justas somente por causa disso. Não é possível conhecer a bondade do coração de Jesus comportando-se desse jeito. A falsa piedade esconde uma multidão de pecados. Não adianta cumprir os preceitos se não amamos o próximo. Este farisaísmo religioso está causando o descrédito da religião cristã.
            Há uma multidão de ovelhas e pastores que desconhecem a misericórdia divina, pois se colocam como juízes da conduta alheia; são arrogantes e impiedosos, orgulhos e prepotentes, amigos da aparência que ilude e engana. Jesus reprovou tais coisas, e as denunciou com veemência. Jesus nos revelou a face de um Deus todo-misericordioso, que não se cansa de perdoar, que sempre nos espera de braços abertos, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva.
            A graça nos liberta do pecado do fechamento em nós mesmos, em nossa própria justiça. Na verdade, é a justiça de Deus que prevalece. Certamente, não podemos defender nem promover a impunidade. Mas não podemos utilizar o discurso contra a impunidade para praticarmos injustiças contra o próximo. A justiça divina restaura a vida do pecador, levando-o a reconhecer o seu pecado, acolhendo-o.
Quando alcançados pela misericórdia divina somos tomados pela serenidade, alegria, mansidão, compreensão e paz. Quem experimenta a misericórdia divina, recebe o perdão de Deus e se torna misericordioso com o próximo. Quem não é misericordioso desconhece a misericórdia de Deus; desconhece a mensagem de Jesus.
            No seio do cristianismo está ressurgindo movimentos e grupos rigoristas, que exaltam uma falsa defesa da tradição. É falsa defesa porque se utilizam da tradição para julgar e condenar os outros. Isto é pecado. Não é graça, mas desgraça. Grande parcela destes rigoristas é formada por sepulcros caiados, que jogam pesados fardos nas costas dos outros. Não são pessoas íntegras e honestas, mas praticantes da falsa religiosidade, capazes de atos terríveis contra o próximo.
            O tempo quaresmal é uma feliz oportunidade para compreendermos e assimilarmos esta realidade belíssima que é a misericórdia divina. Esta é a pura manifestação da graça de Deus, que é infinita e disponível a todos. Não podemos deixar que esta graça passe despercebida, mas que nos preencha e nos liberte, para sermos divinamente humanos, reconciliados e felizes, livres e fieis.

Tiago de França