domingo, 28 de junho de 2020

Pedro e Paulo: missionários de Jesus Cristo


“Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).
            Neste domingo, 28 de junho, a Igreja católica celebra a solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Os textos da liturgia são muito ricos e nos trazem algumas pistas para a nossa reflexão pessoal e comunitária (cf. At 12,1-11; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt 16,13-19), bem como características desses grandes missionários da Igreja primitiva, que merecem a nossa atenção.
            No evangelho encontramos a confissão de fé de Pedro. Primeiro, Jesus quer saber o que as pessoas estavam pensando sobre a sua identidade. A resposta mostra que pensavam que Jesus era um grande profeta, como Elias, Jeremias, João Batista, ou algum outro grande profeta do Antigo Testamento. De fato, não estavam erradas, pois Jesus também era profeta. Jesus quis saber a resposta de seus discípulos. Parecia interessado em conhecer o que se passava na cabeça deles. E Pedro, por revelação divina, respondeu pelo grupo: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”.
            A resposta possui duas partes, que se complementam: Jesus é o Messias. Mas não basta dizer apenas isso, porque naquela época apareceram outros messias. A segunda parte da resposta revela a messianidade de Jesus, ou seja, que ele é, de fato, o Messias prometido, o Filho do Deus vivo. Jesus diz que Simão, filho de Jonas, que passou a ser chamado de Pedro, é feliz, porque recebeu de Deus essa revelação. Eis, portanto, a verdadeira identidade de Jesus: É o Messias, ou seja, o Ungido do Pai, e Filho do Deus vivo. O verdadeiro Messias é o Filho de Deus.
            Nesses tempos difíceis que marcam as primeiras décadas deste século, Jesus continua perguntando aos seus seguidores: “E vós, quem dizeis que eu sou?” É preciso responder com os lábios e com a vida. A profissão de fé tem estas duas dimensões: Razão de ser e experiência. O cristão precisa ter convicção de que segue o Messias, o Filho do Deus vivo. Esta convicção vem de Deus, que revela a messianidade de Jesus no cotidiano da vida. É no seguimento a Jesus que o discípulo recebe essa revelação.
            Confessar que Jesus é o Messias, o Filho do Deus vivo implica adesão ao que ele viveu e ensinou. Não é somente expressão do pensamento nem do credo rezado na liturgia, mas do credo vivido a partir da fraqueza humana, contando com o auxílio da graça divina. Assim viveram Pedro e Paulo. Não eram perfeitos, mas convertidos. Pedro negou Jesus três vezes (cf. Lc 22,54-62); quase morreu afogado nas águas pela falta de fé (cf. Mt 14,22-33); repreendeu Jesus, querendo desviá-lo da cruz (cf. Mt 16,21-23); entre outras passagens que revelam a sua fragilidade e, portanto, a sua humanidade. Tinha consciência de que era apenas um homem (cf. At 10,26).
            Paulo, antes Saulo, consentia a morte dos cristãos e os perseguia (cf. At 8,1.3; 9,1). Era uma espécie de devastador da Igreja. Homem de muita cultura, discípulo de Gamaliel, “instruído em todo o rigor da Lei”, tornou-se um “zeloso da causa de Deus” após ter se encontrado com o Cristo Ressuscitado (At 22,3.6-10). Fiel à missão até o fim, combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé. Deixou de ser instrumento de perseguição a serviço do império romano para se tornar o homem que esperava com amor a manifestação gloriosa do Senhor (cf. 2Tm 4,7-8).
            Pedro, tendo recebido o Espírito do Senhor, abandonou o medo, foi preso e permaneceu fiel a Jesus. Na prisão, dormindo entre os soldados, foi libertado por Deus para dar continuidade à missão. Quebradas as correntes e devolvido à missão, percebeu que contava com o auxílio divino para realizar o mandato missionário de Jesus: “Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!” (At 12,11). O Senhor permanece ao lado daqueles que chama para a missão, concedendo-lhes forças e fazendo com que a mensagem seja “ouvida por todas as nações” (2Tm 4,17). Por disposição divina, os servos de Deus não morrem sem antes terem realizado a missão para a qual foram enviados.
            Pedro ensina a fidelidade à missão, que pode ser experimentada a partir da fraqueza humana. Na história do cristianismo há inúmeros testemunhos de mulheres e homens que foram fieis a Jesus. Mas seus testemunhos também são marcados por fraquezas, porque estas fazem parte da vida. Tais fraquezas são incapazes de desviar do caminho da missão; pelo contrário, servem para manter o missionário no caminho da humildade, lembrando-o de que não é Senhor, mas discípulo. Somente o Senhor é Santo e perfeito. Quando o Senhor chama, não tira a condição frágil de seus discípulos, mas os ajuda a trilhar o caminho da santidade neste mundo, a partir de suas fragilidades.
            Paulo ensina a ser missionário. Graças a ele o cristianismo ultrapassou as fronteiras da Palestina de Jesus. Vale a pena conhecer as viagens desse grande missionário de Jesus, bem como ler e meditar os seus escritos. Paulo usou de sua erudição e domínio das línguas hebraica, aramaica, grega e latina para traduzir a mensagem de Jesus. Teve a graça de ter recebido o evangelho diretamente de Jesus, e se considerava apóstolo “não por iniciativa humana nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos” (Gl 1,1).
            Chamados a responder à pergunta de Jesus sobre a sua identidade, os cristãos precisam ser, de fato, discípulos missionários. Trata-se de uma necessidade urgente no cristianismo atual, que é chamado a manifestar ao mundo o Messias, o Filho do Deus vivo. A mensagem desse Messias continua atual e capaz de salvar a humanidade do caos. As pessoas precisam enxergar em cada cristão a messianidade de Jesus. O cristianismo não pode ser transformado em pedra de tropeço nem de escândalo, mas em ferramenta de transformação do mundo. Jesus envia para ser sal da terra, luz do mundo e fermento na massa (cf. Mt 5,13-16; Lc 13,20). Não pode o cristianismo ser reduzido a um conjunto de doutrinas e rituais, que falam de Jesus como um personagem do passado.
            Neste sentido, o Papa Francisco é muito feliz quando ensina que é necessário evangelizar com trabalho e oração. A mística deve estar ligada a um vigoroso compromisso social e missionário, e as ações sociais devem ter como alicerce uma espiritualidade que transforme o coração. O Papa chama a atenção para o necessário “pulmão da oração”, sustentáculo da vida espiritual e missionária, essencial à vida do discípulo missionário. Recordando seu predecessor, o Papa João Paulo II, fala do risco do cultivo da espiritualidade intimista e individualista, que faz aparecer na Igreja e no mundo experiências religiosas que não transformam, mas atrofiam e prejudicam a caminhada cristã (cf. n. 262 da Evangelii Gaudium, do Papa Francisco – sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual).
            Por fim, é preciso recordar que neste dia também celebramos o significado e alcance do ministério do Papa, Bispo de Roma e chamado a confirmar os irmãos e irmãs na fé. Apesar de, canonicamente falando, ser detentor do poder supremo, pleno, imediato e universal sobre a Igreja católica, assim como Pedro, o Papa é um servidor.
Francisco, mais do que muitos de seus predecessores, tem demonstrado a importância do serviço humilde, simples e aberto à pluralidade das manifestações religiosas presentes no mundo. Tem também recordado o lugar dos pobres na vida eclesial e social. Na Igreja, por exigência evangélica, quem quiser exercer o poder sagrado é chamado ao serviço humilde e despojado; do contrário, perde a autoridade e se transforma em figura folclórica. Todo pastor é chamado a ser imagem do Bom Pastor, aquele que deu a sua vida para que todos pudessem ter vida em abundância (cf. Jo 10,10-11). Que Pedro e Paulo nos ajudem a sermos fieis discípulos missionários de Cristo, o Filho do Deus vivo.

Tiago de França

quinta-feira, 25 de junho de 2020

A fé cristã fora dos templos


“Religião pura e sem mancha diante de Deus é esta: assistir órfãos e viúvas em suas dificuldades e guardar-se da contaminação do mundo” (Tg 1,27).
            Nesses meses de pandemia do novo coronavírus circulam nas redes sociais mensagens de católicos questionando a hierarquia da Igreja pelo fato de os templos permanecerem fechados. Bispos, padres e leigos já escreveram e gravaram vídeos, respondendo a estes católicos. Não quero repetir os argumentos ventilados, mas discorrer, de forma breve, sobre o significado da expressão que intitula estas reflexões, bem como do versículo da carta de são Tiago, que vem recordar sobre o sentido da religião pura e sem mancha diante de Deus.
            Inicialmente, é preciso afirmar que a fé cristã não nasceu dentro dos templos religiosos. Quem ler o Novo Testamento das Escrituras não vai encontrar Jesus estabelecendo o culto a Deus no Templo e nas sinagogas. É verdade que tanto ele quanto seus discípulos frequentavam tais lugares, mas o culto a Deus não foi estabelecido para se realizar somente no Templo e nas sinagogas. É preciso ter clareza quanto a isso, porque a interpretação que muitos fazem da importância dos templos religiosos é a de que seriam eles essenciais para o culto a Deus.
            Dialogando com a samaritana junto ao poço de Jacó, entre outras coisas, disse Jesus: “[...] vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém, adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus; mas vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; pois são estes os adoradores que o Pai procura” (Jo 4,21-23). Com muita clareza, Jesus diz que o Pai é adorado em toda parte, em espírito e verdade.
            Jesus é o Templo de Deus, e está em toda parte. Ele é o Emmanuel, Deus conosco (cf. Mt 28,20). Dada a impossibilidade de participar do culto nas igrejas, o católico deve se perguntar se aprendeu a adorar o Pai em espírito e verdade. Precisa se perguntar também sobre a compreensão que tem da Eucaristia. Jesus somente pode ser encontrado no pão eucarístico? Fora deste pão, que alimenta e que dá vida, que salva e dá coragem, não existe comunhão com Jesus? Quem responde negativamente a esta pergunta, precisa ser melhor evangelizado.
            A pandemia do novo coronavírus é um convite para toda a Igreja repensar a catequese, a pregação e a formação de seus membros. Infelizmente, não é pequeno o número de católicos que ainda pensam que ser católico se reduz a ir à igreja. É o famoso católico de missa. A missa é importante? Claro que sim! Mas a missa é o ponto de partida para a missão. Pelo que parece, são os católicos de missa que estão reclamando da impossibilidade da participação na missa. É necessário que se reflita sobre as razões desta reclamação. Jesus foi claro que o culto de adoração ao Pai não está ligado, necessariamente, aos templos religiosos, nem aos denominados lugares santos.
            Quando ensinou a seus discípulos a oração do Pai nosso, disse Jesus: “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar nas sinagogas e nas esquinas das praças, em pé, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai que está em segredo. E teu Pai, que vê o que está em segredo, te retribuirá” (Mt 6,5-6). Nessa passagem, Jesus não está reprovando o culto nas sinagogas, mas a forma hipócrita de orar: “para serem vistos pelos homens”.
            Interessante a sugestão de Jesus: “... quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai que está em segredo”. O culto a Deus pode ser realizado em toda parte. Inúmeras outras passagens apontam para a mesma verdade, o que não dá razão ao cristão para ficar desesperado por causa do fechamento provisório dos templos religiosos. Também Jesus “se retirava para lugares desertos” para orar ao Pai (Lc 5,16). Após assumir publicamente a sua missão, Jesus não era um frequentador assíduo do Templo e sinagogas. A sua prática de oração era muito livre e desprovida de ritualismos.
            Desse modo, cada cristão é chamado a pensar sobre o que há para além das práticas rituais realizadas nos templos. A oração é comunitária e pessoal. É de se lamentar o grande número de cristãos que somente oram ao Pai nas celebrações comunitárias. E mais grave ainda é a situação daqueles que vivem sem orar. A fé cristã precisa da oração para permanecer viva. Sem nenhum momento de contato mais íntimo com Deus, como a fé cristã pode subsistir? Longe de uma compreensão reducionista de oração, todo aquele que crê em Deus é chamado a viver em comunhão com ele também através do diálogo fraco e direto.
            A adoração ao Pai em espírito e verdade leva a considerar a verdade contida no versículo da carta de são Tiago que introduz estas reflexões. Voltar-se para Deus, com um coração sincero, contrito e humilde, independente do lugar, é o que agrada a Deus. Mas voltar-se para Deus é também voltar-se para os outros, pois “se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4,20). A finalidade da religião é religar as pessoas a Deus, e são Tiago ensina que este religar passa, necessariamente, pelo amor ao próximo. O apóstolo nomeia duas categorias de pessoas dignas do amor: os órfãos e as viúvas, que desde o Antigo Testamento, juntamente com o estrangeiro, eram os prediletos de Deus.
            Além do serviço às pessoas afetadas pela orfandade e viuvez, que representam todos aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, o apóstolo também fala que a religião pura e sem mancha diante de Deus passa, também, pela justiça que liberta da corrupção deste mundo. Os verdadeiramente cristãos devem se afastar da corrupção deste mundo, pois esta sinaliza o abandono do mandamento de Deus. De nada adianta lotar nossas igrejas de gente, para celebrações liturgicamente impecáveis, se os mais vulneráveis e pobres permanecem no esquecimento e na marginalização, vítimas de uma sociedade que exclui e mata.
            O culto espiritual digno de Deus, que é puro Espírito e perfeição, deve estar atrelado a práticas humanas puras e sem mancha. Este difícil tempo de pandemia precisa ser ocasião de intensificar a oração pessoal e familiar, a boa convivência com os membros da família, a solidariedade com os que sofrem e passam necessidade, o combate às notícias falsas nas redes sociais e a comunhão fraterna com todos os que lutam para que as diversas formas de sofrimento sejam amenizadas. Este é o culto que agrada a Deus.
E quando o culto litúrgico nas igrejas for plenamente retomado, será necessário não esquecer que a vida fora das igrejas é extensão do culto divino; é o lugar privilegiado do encontro com Deus, porque este permanece no meio do povo, guiando a história rumo à plena realização de seu Reino. É no cotidiano da vida que Deus se revela e age, discreta e amorosamente. O culto litúrgico nos templos é ação de graças pela presença de Deus no cotidiano da vida de seu povo. Desligado da vida cotidiana, com suas alegrias e tristezas, esperanças e desilusões, o culto litúrgico perde o seu sentido e não agrada a Deus. 

Tiago de França

quarta-feira, 24 de junho de 2020

João Batista: o precursor do Salvador


“... a mão do Senhor estava com ele” (Lc 1,66).
            O profeta João Batista tem muito a dizer às mulheres e homens de nosso tempo, principalmente aqueles que professam a fé em Jesus Cristo. As Escrituras falam que Deus o enviou para preparar os caminhos de Jesus, missão que cumpriu com dedicação e coragem. Filho de Isabel, uma mulher idosa, João simboliza o cumprimento das promessas de Deus a Israel. Inclusive, o nome Isabel significa “o juramento de Deus”. Nela, Deus mostrou que continua unido a seu povo, demonstrando que a aliança feita estaria prestes a ser renovada, de forma definitiva, na pessoa de Jesus, o Messias.
            O nome do pai de João também fala desse Deus que jamais se esquece de seu povo: Zacarias quer dizer “Deus se recordou”. Zacarias era sacerdote no Templo, homem fiel e temente a Deus. Conhecedor da Lei de Deus, certamente conhecia as promessas divinas, e dando ao seu filho, prodigiosamente concebido, o nome de João, declarou que, de fato, Israel gozava do favor divino. João quer dizer “o favor de Deus”. Em torno do menino surgiu uma grande expectativa, e todos que souberam da notícia do seu nascimento se perguntavam: O que virá a ser este menino? (Lc 1,66).
            Diferentemente do pai, João não se tornou sacerdote, mas um grande profeta. Posteriormente, Jesus vai elogiá-lo, dizendo que João era mais que um profeta: Eu vos digo: entre todos os nascidos de mulher, não há ninguém maior do que João (Lc 7,28). Em relação ao sacerdote, que era vinculado à oferta de sacrifícios, o profeta é um homem livre, portador da palavra de Deus, partícipe da economia salvífica. O profeta é mensageiro de Deus; não fala por si, nem de si, mas transmite o que Deus quer de seu povo. João anunciava a vinda do Messias, pregando a penitência e batizando no Jordão.
            O evangelista Lucas afirma que a mão do Senhor estava com ele. Esta expressão tem um profundo significado. Enviado por Deus, todo profeta não deixa este mundo sem cumprir a sua missão. Quando Deus envia, faz com que a missão se realize, plenamente. As ameaças, as forças humanas, a calúnia, a injúria e a difamação, e toda espécie de empecilho não são capazes de impedir a plena realização da missão profética. Cada profeta é enviado por Deus para uma missão específica, em um contexto específico e numa época determinada. Assim ocorre, porque Deus assim determina, para que o seu plano de salvação chegue à plenitude.
            João teve a missão de preparar as mentes e os corações das pessoas, anunciando a vinda do Messias prometido. Este anúncio era pautado no chamado à conversão. João era perspicaz e corajoso, contundente e objetivo: Arrependei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo. E completava, utilizando entre outras palavras: Cria de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para chegar? Produzi, pois, fruto digno de vosso arrependimento (Mt 3, 2.7-8). A palavra do profeta é forte como a palavra de Deus, que é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração (Hb 4,12). Quando o profeta fala, as pessoas logo sentem que é Deus que fala por seu intermédio, porque se trata da pura revelação da vontade divina, e não de palavras soltas ao vento, desprovidas de sentido e fundamento.
            Para que seja dessa forma, o profeta goza da liberdade de filho de Deus, e somente ao Espírito de Deus deve obediência. A mão do Senhor é o favor divino que auxilia o profeta, dando-lhe discernimento e segurança. É no Senhor que o profeta se apoia, porque transmite a Sua palavra libertadora: Palavra que, muitas vezes, incomoda e provoca a ira dos ouvintes, que inconformados, não a aceitam
É no deserto que o profeta escuta o que deve proclamar ao povo (cf. Mt 3,1). O deserto é o lugar da provação, da escuta e do autoconhecimento. João era homem de fé inabalável, uma fé mais valiosa que o ouro provado no fogo (cf. 1Pd 1,7). Todas as vezes que o povo de Deus desdenhou das palavras dos profetas, recusando-se a escutá-los, experimentou as consequências inevitáveis desta triste atitude. Não há conversão possível sem escuta atenta dos apelos de Deus; e todos os profetas não fizeram, nem fazem outra coisa senão proclamar sobre os telhados os apelos divinos para cada época e circunstância.
A celebração da solenidade do nascimento de João Batista, o precursor do Salvador, é uma feliz oportunidade para a escuta dos apelos de Deus. O que Deus está nos falando, nesse momento tão desolador da história da humanidade? Será que não há um apelo à mudança de vida? Será que a pandemia do novo coronavírus não é uma ocasião para rever a forma como as pessoas se relacionam? Será que já não é hora de revisar a relação que as pessoas têm com a natureza? E a relação com Deus, será que não precisa ser revista? Ou será que após a pandemia, a vida humana vai permanecer do mesmo jeito, como se nada tivesse acontecido?...
Assim como João Batista, toda pessoa que habita este mundo é chamada a viver de tal forma que o seu caminhar seja uma permanente preparação para que surja um mundo mais justo e fraterno. Nossas palavras e ações edificam, ou destroem?... João nos recorda que o machado já está posto à raiz das árvores... (Mt 3,10), e não podemos ser “cortados” sem que produzamos frutos de justiça e paz. É preciso vigiar, esperar agindo, e integrar as forças do Reino que transformam todas as coisas. Certamente, Deus não é o causador do mal do mundo, mas esse mal pode ser transformado no caminho de volta ao Senhor, sempre disposto a acolher e produzir vida em cada pessoa e no mundo.
Tiago de França

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Buscar o essencial


“Atualmente permanecem estes três: a fé, a esperança, o amor. Mas o maior deles é o amor” (1 Cor 13,13).

            O tempo da pandemia do novo coronavírus impôs um novo ritmo à vida das pessoas. O recolhimento virou regra, e muitos continuam sofrendo com o tédio, a ansiedade, a inquietação. Também a depressão atinge a vida de muita gente. Mas esse tempo é propício para o silêncio e a oração. Nesse silêncio é possível refletir sobre a vida e seus dilemas. Para o cristão, é uma feliz oportunidade para estar mais perto de Deus, de forma mais íntima e discreta.
            O recolhimento obrigou muitas pessoas a se encontrarem consigo mesmas. Não é uma experiência fácil, porque a tendência é fazer o oposto. Os estímulos externos quase que as obrigam a permanecer fora de si mesmas, fora do próprio eixo. Fora de si, dominada pela dispersão, a pessoa não consegue encontrar o próprio eixo, não consegue encontrar-se. É preciso vencer aquela resistência quase natural que insiste em manter-se do lado de fora. E são tantos os motivos!...
            Parece que o medo é o maior empecilho, a pedra que permanece no meio do caminho: O medo de si mesmo. Há um paradoxo doloroso que parece estar no mais íntimo da pessoa: O medo de mergulhar em seu próprio poço, e o desejo de ser livre. O medo retrai e o sonho da liberdade expande os horizontes. O medo afasta do essencial da vida; é uma força que deixa a pessoa diminuída, travada, aprisionada. Às vezes, tira até a visão, impedindo que se veja o quanto a vida é bela e cheia de possibilidades.
            Entre as opções que a vida oferece está o amor. Este é o essencial da vida. Isto parece não ser novidade. Tanta gente já nos falou sobre isso. Mas olhando o mundo e as pessoas, bem como navegando nos recônditos profundos da alma, uma pergunta pode surgir e inquietar: Será que busco o essencial da vida?... Nas Igrejas, palestras, livros de autoajuda, rodas de conversa, oração, e nas reflexões que se multiplicam em outros lugares e momentos aparece este apelo ao essencial: O apelo ao amor. Por que será que esse apelo não é levado a sério?...
            Há uma diferença entre amor e aparência de amor. Na concepção cristã, onde se encontra o fio condutor dessas provocações, o amor é ação. Não é uma ideia, nem mero desejo. O amor é postura, atitude, movimento que aponta para uma direção. Na vertical, aponta para Deus; na horizontal, para o próximo. Mas estas direções se unem numa só: O amor ao próximo é expressão do amor a Deus. Quem revelou isso foi Jesus de Nazaré, que segundo a fé cristã, é a encarnação do Amor.
            O amor humano se manifesta de diversas formas e todas são legítimas: no amor entre pais e filhos, entre os cônjuges, na amizade sincera, no exercício das profissões, na política, nas artes, no cuidado com a vida de todo ser vivo; enfim, onde existem pessoas, aí existe a possibilidade do amor. Este é uma possibilidade aberta e plena de sentido. O amor é o essencial porque preenche a vida de sentido. Não há felicidade possível fora dele.
            Inúmeras são as situações que manifestam a ausência do amor. É possível afirmar que na ausência do amor o mal se manifesta. No amor se manifesta o bem-querer, o querer o bem do outro. Este querer benfazejo é carregado de uma energia positiva, que tranquiliza, alegra e constrói. No mal se manifestam as forças de morte, dotadas de energias que causam incômodo, tristeza e destruição. O amor une, o mal divide. A pessoa que ama está em paz consigo mesma, mesmo quando a vida é sofrida. Quem ama se torna forte para vencer o sofrimento, ou para conviver com ele.
            Desprovida de amor, ou entregue às forças geradoras de morte, a pessoa não tem paz. A mente e o coração se ocupam em planejar o mal para si e para os outros. Não há a busca do bem do outro. Este bem passa a ser visto como um mal. O que domina a pessoa é um estado permanente de perturbação da mente, do coração e do espírito. A consciência, mesmo deturpada, ainda insiste em manifestar um julgamento sobre o mal pensado, desejado, planejado e praticado. A consciência é uma juíza que nunca falha.
            De que mal está se falando? O mal não é uma entidade abstrata. É concebido no coração humano e se materializa na ação. O mundo está aí, tristemente marcado por inúmeras manifestações do mal. A aparência de amor é um desses males. Acontece quando alguém verbaliza o amor, mas não o pratica. Trata-se do amor declarado, mas não vivido.
Entre muitos exemplos, é possível citar a traição. Esta parecer ser a expressão que denuncia a falta de amor. Trair a confiança do outro é uma experiência decepcionante e cruel. As relações humanas devem ser pautadas na confiança. Quando esta é quebrada temos a traição, que é uma espécie de desvio de caráter. O que seria da raça humana sem a confiança? O que seria do paciente se não confiasse no seu médico? O que seria do penitente se não confiasse no seu confessor? O que seria da amizade e do casamento sem a confiança constitutiva dessas relações?... A traição revela a aparência de amor, a sua ausência.
O amor não livra do sofrimento decorrente dos inúmeros males que possam atingir as pessoas, mas previne, eficazmente, contra o mal da falta de amor. Quando se ama, dar-se a si mesmo e ao outro a possibilidade do crescimento e do amadurecimento. No amor, as pessoas amadurecem e se tornam melhores. Amar é dar a si mesmo e ao outro a oportunidade de ser feliz.
Um dos benefícios do amor é a saúde física e espiritual. A pessoa que ama não permanece intoxicada por sentimentos que puxam para baixo. O amor rejuvenesce, confere leveza e suavidade à vida. Quem ama não precisa armar-se contra os outros, pois o amor é a força mais forte que existe. Sendo amorosa, a pessoa é capaz de desarmar os outros, porque nenhuma força negativa consegue resistir à força transformadora do amor.
No amor, a pessoa é livre. Isto é perceptível na serenidade do olhar, das palavras e dos gestos da pessoa. O amor a integra e plenifica. Por isso, é possível encontrar pessoas que são capazes de gestos extraordinários, sempre envolvendo o bem do outro. O que levou São Maximiliano Maria Kolbe, no campo de concentração de Auschwitz, a morrer no lugar de um pai de família? O amor o tornou livre para abraçar o martírio.
O amor liberta e transforma a pessoa. Como é possível trilhar o caminho da conversão? Sem o amor ninguém consegue mudar de vida. Independentemente do que a pessoa fez, sempre existe a possibilidade de conversão. Deus ama o pecador porque sabe que seu amor é o remédio que liberta do pecado. Ninguém se converte com ameaça e castigo, mas sendo amado.
Não poderia concluir estas reflexões sobre a busca do amor, essencial da vida, sem deixar algumas perguntas que podem ajudar no necessário processo diário de conversão. Há sempre quem leva a sério as perguntas existenciais, que até podem incomodar, mas tem o propósito de ajudar. O tempo está passando, e a vida biológica, inevitavelmente, conhecerá seu fim. Esta mesma vida é uma feliz oportunidade para, de fato, ser vivida, no amor.
O que estou fazendo da minha vida? Por que resisto tanto ao amor? Por que desejo, planejo e faço o mal às pessoas? O que tenho feito para tornar o mundo melhor? O que minhas palavras e ações reforçam no mundo? Por que não estou aproveitando o tempo da minha vida com o que realmente vale a pena? Qual o lugar que o amor ocupa na minha vida? Por que evito beber do meu próprio poço, no mais profundo de mim mesmo? O que estou procurando para minha vida, realmente é importante e corresponde ao amor? Se morresse hoje, morreria feliz?...
Feliz aquele que pensa na própria vida e se decide pelo amor!

Tiago de França

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Do coração de pedra ao novo coração


“....porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso” (Mt 11,29).
            Na Bíblia, o coração é o centro da afetividade, da vontade, das motivações; revela o nosso ser interior. A celebração da solenidade do Sagrado Coração de Jesus não é uma mera celebração emotiva, mas a solene festa daquilo que Jesus é: Deus e homem verdadeiro, de coração manso e humilde. Vamos olhar para Jesus a partir do que nos fala o evangelista Mateus (cf. Mt 11,25-30), para que possamos sentir a necessidade da conversão do coração.
            Jesus louva ao Pai, a quem chama de Senhor do céu e da terra, por ter revelado a sua sabedoria não aos sábios e entendidos, mas aos pequeninos (v.25). Na época de Jesus, os mestres e sábios cometiam um pecado que causava sofrimento nos pequeninos: A opressão religiosa. Aproveitavam-se do conhecimento da lei para oprimir os que a ignoravam. Em muitas passagens dos evangelhos encontramos a soberba dos mestres da lei e fariseus. Estes eram os sábios e entendidos.
            Os poderosos do mundo e os “sabidos” de todas as épocas, geralmente desconhecem a sabedoria divina revelada no escândalo da cruz de Cristo. Isso ocorre porque onde há autossuficiência, não há espaço para Deus. Quando a pessoa passa a ser o centro da própria vida, então gira em torno de si mesma. Trata-se de um ensimesmamento doentio: A pessoa fica cheia de si mesma, comportando-se como se fosse uma espécie de divindade. Todo conhecimento que afasta a humildade que conduz a Deus é prejudicial.
            Tornar-se pequenino é reconhecer que se depende de Deus, pois Deus é o Senhor do céu e da terra. Os filhos de Deus dependem dele para viver com sentido. Pela fé, o sentido da vida está no Senhor do céu e da terra. Portanto, somente os pequeninos tem acesso à sabedoria divina, porque em sua pequenez e fragilidade reconhecem a grandeza, a bondade e a misericórdia de Deus. Os pequeninos possuem o novo coração, que brota do conhecimento da sabedoria divina. Os poderosos e “sabidos” possuem um coração petrificado pela sede de poder e pela vaidade.
            Jesus diz que a revelação da sabedoria divina aos pequeninos é o que agrada a Deus (v.26). Qualquer doutor em Teologia (área do conhecimento que se dedica ao estudo das coisas relacionadas a Deus) precisa ter a humildade para reconhecer que o conhecimento teológico, por si mesmo, não revela a sabedoria divina. Basta esse doutor se colocar na escuta dos pequeninos e pobres para descobrir os limites de sua teologia. Certamente, a teologia pode ser uma importante ferramenta para conhecer o ser e o agir de Deus, mas é na vida dos pequeninos que a sabedoria divina é encontrada. Cabe à teologia ir ao encontro desses pequeninos; do contrário, o conhecimento teológico se reduz a abstrações que nada revelam.
            Jesus diz também que o Pai revela o Filho, e este revela o Pai (v.27). Isso mostra que a sabedoria divina é revelada pelo Filho, que é o próprio Jesus. Portanto, sem ir a Jesus, o cristão não tem acesso ao Pai e Sua sabedoria. Entre o Pai e o Filho há uma forte relação, e nesta ocorre a necessária revelação daquilo que Jesus é: Deus e homem verdadeiro, de coração manso e humilde. Sem o Pai, o Filho não existiria, porque foi gerado pelo Pai. Sem o Filho, não conheceríamos o Pai, porque o Filho é a plenitude da revelação divina. O cristão é chamado por Jesus a mergulhar nessa relação amorosa: Vinde a mim...
            Jesus chama a ele todos os que estão cansados e fatigados sob o peso dos fardos. E o que promete? ... e eu vos darei descanso. Na época de Jesus eram muitas as pessoas cansadas e fatigadas: Os pecadores públicos, as mulheres, as crianças, os doentes, os possuídos pelos demônios, os leprosos, os pobres etc. Carregavam pesados fardos e estavam sob o jugo das diversas formas de exploração. Jesus oferece o seu jugo, que é suave, e seu fardo, que é leve (v.30). Ou seja, o que está oferecendo é a suavidade, a leveza, a paz, o alívio, o conforto, a esperança, a coragem, a segurança e a ternura de sua presença fiel.
            Nesses tempos difíceis de pandemia do coronavírus, as pessoas precisam experimentar o fardo e o jugo de Jesus, experiência de plena liberdade. Há tantas pessoas aflitas e desesperadas, atribuladas por causa dos pesados fardos que carregam: desemprego, depressão e outras doenças, fome, violência doméstica e social, morte de entes queridos, ameaças, corte de direitos etc. Todas as vítimas das inúmeras espécies de escravidão precisam saber que o Senhor do céu e da terra enviou seu Filho para libertar de todo mal, e que esta libertação começa a acontecer a partir do momento em que Jesus é acolhido no coração.
            Acolher Jesus para a conversão do coração significa abrir-se à possibilidade de deixar de ter um coração de pedra, insensível e fechado, para adquirir um novo coração, manso e humilde como o de Jesus. É necessário aprender com Jesus (v.29), abrindo-lhe o coração. Habitando no mais profundo do ser humano, Jesus transforma a pessoa em sal da terra e luz do mundo. Um coração aberto a Cristo é oportunidade feliz de encontro com Deus; encontro revelador da sabedoria divina.
            Hoje, o mundo precisa de pessoas de bom coração, capazes de amar sem medida, disponíveis e entregues ao serviço dos irmãos. Uma pessoa mansa e humilde faz muito bem a um mundo marcado pela agitação e pela prepotência. O mundo precisa de pessoas de coração indiviso, integradas e serenas, alegres e cheias do amor de Deus.
Os que aderem a Jesus são aqueles que se tornam mansos e humildes, sinais de esperança e de paz, promotores da justiça do Reino de Deus. Do contrário, podemos até celebrar a festa do Sagrado Coração de Jesus, mas sem esta abertura para Deus, tudo não passa de ritualismo vazio e infértil, que não agrada a Deus, porque os corações afastados do Coração de Jesus são corações duros e insensíveis, distantes de Deus e fechados ao seu amor. Que o coração de Jesus nos faça conhecer a ternura de Deus!

Tiago de França

terça-feira, 16 de junho de 2020

O resultado da flexibilização


A retomada das atividades comerciais e a movimentação das pessoas no espaço público não resolverão o problema da economia a curto prazo. A economia brasileira somente vai se recuperar após muito investimento estatal e geração de emprego e renda. Afirmar o contrário é mentir para o povo, e causar mais mortes.
Hoje, 16 de junho, foram registrados 37.242 novos casos nas últimas 24 horas, totalizando 928.798 casos. Muito em breve, o Brasil chegará a 1 MILHÃO de casos confirmados. Nas últimas 24 horas foram registradas 1.338 mortes, totalizando 45.456 mortes. Será que as pessoas já pararam para pensar neste número? Ou será que foram contaminadas pelo vírus da insensibilidade?
Os números PROVAM que a flexibilização foi adotada no momento ERRADO. As pessoas estão se contaminando e morrendo. Vai chegar o momento em que irão procurar atendimento médico e não serão atendidas. Motivo: Falta de vagas nas UTIs. Como é que os governantes ousam defender que a flexibilização está acontecendo porque há UTIs vagas? Esse critério é válido? Por que temos hospitais, as pessoas podem se contaminar? Essa é uma lógica declaradamente genocida.
Quem está morrendo? Os mais pobres. Ou será que os ricos, principalmente os empresários, estão expostos ao vírus, em seus carros, mansões e apartamentos seguros e confortáveis? Claro que não! Estamos assistindo ao genocídio de pessoas pobres no Brasil. E quem discorda, considere os números. E se os números não são suficientes para o necessário convencimento, a chegada do vírus às famílias e parentes próximos dos mais teimosos trará este convencimento.
A pandemia se estenderá por mais tempo e matará mais pessoas, porque a flexibilização segue sendo feita como se estivéssemos no seu fim. O Brasil está longe do fim da pandemia. Quanto mais o vírus se espalha, mais pessoas correm o risco de morrer. O isolamento social, apesar das resistências, deveria ter sido mantido, funcionando, apenas, os serviços essenciais. Com ou sem isolamento social, a economia brasileira continuará estagnada. O atual governo não tem projeto para uma economia inclusiva dos pobres.
Quando a pandemia passar, o discurso será: "Estamos mal por causa do coronavírus!" Já estávamos mal muito antes da chegada do coronavírus. O atual governo está a serviço dos empresários. As falas e posturas do presidente mostram que não está preocupado com a morte de parcela da população brasileira. Tentou até esconder o número de mortos. As tentativas do governo não são em prol da vida, mas dos que querem continuar ganhando muito dinheiro. Esta é a realidade, quer se aceite, quer não.
Numa sociedade capitalista, em primeiro lugar, busca-se a salvação dos mais ricos, e não dos mais pobres. Primeiro o CNPJ, depois o CPF. O Estado deveria trabalhar para socorrer os mais frágeis, pois essa é a razão de sua existência. Mas os donos da economia mandam fazer o oposto: Primeiro é preciso salvar o mercado financeiro. A lógica neoliberal é um tanto curiosa: Os empresários não querem fiscalização pesada nem pagar muitos impostos; mas quando estão prestes a quebrar, exigem o socorro do Estado. Nesta hora são a favor da intervenção estatal.
E o que faz o Estado? Emprega o dinheiro público na salvação do mercado financeiro; perdoa dívidas; oferece inúmeras facilidades; e onera mais ainda os pobres, para que paguem a conta. É isso que está por trás das falas dos ministros da economia e meio ambiente, na reunião do dia 22 de abril: O primeiro reclamou a venda do Banco do Brasil, usando até palavrão; e o segundo, disse que é preciso aproveitar que o brasileiro está com a atenção voltada para a pandemia, para "passar a boiada" no meio ambiente, ou seja, flexibilizar leis, retirar multas e entregar o patrimônio natural aos exploradores.
Enquanto as pessoas morrem, o presidente e seus apoiadores estão enfrentando medidas judiciais. Enfrentam fazendo ameaças, como se estivessem acima da lei. Não aceitam ser questionados. Fazem e desfazem e não querem ser incomodados. É um estado de coisa que nunca se viu na história do Brasil. Mas não se chegou ao fundo do poço. Parece ser necessário que se chegue, para que os iludidos acordem. Alguns já foram tomados pelo sono eterno (não sobreviveram ao coronavírus), outros estão fazendo muito barulho.
E assim, o Brasil segue passando vergonha perante o mundo. O que é ruim vai se normalizando, e as pessoas tendem a se acostumar. Quando o que é ruim vira a regra do convívio social, as mortes dos fracos já não incomodam mais. No começo da pandemia, o presidente estimou que morreriam uns 70 mil brasileiros de Covid-19. Já são mais de 45 mil. Por que o presidente fez essa previsão? Porque desde o início decidiu que nada faria para impedir isso. Antes, tem colaborado para a situação piorar. Não é à toa que não há um ministro da Saúde, mas um general do exército ocupando o posto. Qualquer pessoa minimamente inteligente compreende o significado disso.
A esperança, que permanece viva, é que o brasileiro aprenda a lição, mesmo tendo que assistir à morte de milhões de contemporâneos. No futuro, os que não sofrerem da memória, sentirão muita vergonha desse período triste, ameaçador, sombrio, deplorável e horroroso da história brasileira.
Por isso, se puder, PERMANEÇA EM CASA.
Tiago de França

O amor aos inimigos


"Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem!" (Mt 5,44)
Jesus parece pedir algo impossível ao ser humano, mas se assim fosse, certamente não teria pedido. Na revisão que faz dos princípios que regiam a lei mosaica, Jesus pede o amor aos inimigos e a oração pelos perseguidores. Esta parecer ser uma das páginas mais difíceis das Escrituras neotestamentárias. É necessário compreender o que se pede.
Certamente, no Antigo Testamento, não encontramos nenhuma passagem em que Deus apareça pedindo ou recomendando o ódio ao inimigo. Portanto, quem busca justificar o ódio ao inimigo se utilizando da Bíblia comete um equívoco e um pecado. A palavra de Deus não foi escrita com esse objetivo.
O que existia era algo simples de se compreender: Amava-se aquele que era da tribo, e odiava-se o estrangeiro, o que não pertencia à tribo. O sentimento nacionalista e tribal vigorava entre os judeus. Esta situação criou uma imagem de Deus que confirmasse tal oposição ao inimigo: Um Deus que ama seu povo e destrói os opositores de sua gente. Mas a partir de Jesus não deve ser assim.
Para o judeu, perfeito era aquele que cumpria a lei mosaica. Para Jesus, perfeito é aquele que age conforme a vontade de Deus. Por isso, a perfeição consiste em fazer a vontade de Deus. Esta ultrapassa os limites da lei, porque não é legalista nem está em função da lei. A lei é importante, e Jesus não veio aboli-la, mas seu convite é para que seus discípulos possam buscar fazer a vontade de Deus. Quem assim procede, cumpre toda a lei.
Jesus ensina que o Pai é bom, e que faz o sol nascer e a chuva cair sobre maus e bons, justos e injustos (cf. Mt 5,45). Nos versículos seguintes, afirma que amar somente aquelas pessoas que nos amam não tem nada de extraordinário; bem como saudar somente aqueles que nos saúdam. Para ser filho do Pai é preciso amar os inimigos e rezar por aqueles que nos perseguem. Isto é ser perfeito, porque esta é a vontade do Pai.
Pela fé, somos filhos no Filho. Deus é Pai de todos, e não somente daqueles que nos são próximos. Também é Pai daqueles que nos fazem o mal. O amor ao inimigo não é mero sentimento, nem exige que se acerque do inimigo para afagá-lo. O amor aos inimigos nos impede que os destruamos. O ensinamento de Jesus condena a cultura da eliminação dos inimigos, que é tão comum até entre os cristãos.
Infelizmente, nas relações interpessoais, quando as pessoas entram em conflito; quando uma atrapalha a vida da outra, é comum que ambas procurem pagar o mal com o mal. Isso não é atitude de filho (a) de Deus. O que Jesus pede é o querer o bem daqueles que nos desejam o mal. Esta é a perfeição exigida por Jesus: O amor. Perfeito é aquele que ama, e não o que cumpre a lei e odeia quem não a cumpre.
Muitas vezes, nas relações com as pessoas, vigia-se a conduta do outro para pegá-lo em alguma fraqueza. O objetivo não é a correção fraterna, nem ajudá-lo em sua fragilidade. Busca-se, pelo contrário, arruinar mais ainda o outro. Esse tipo de conduta não convém ao cristão.
O amor reprova o mal, mas salva o pecador; reprova a má conduta, mas sem causar a eliminação do outro. Quem errou, já se encontra numa situação de queda. Precisamos acabar, principalmente no seio das comunidades cristãs, com essa cultura da rivalidade e da eliminação do outro.
É necessário resgatar o pedido de perdão, fazendo com que haja espaço para a reconciliação. É preciso também alargar os horizontes de compreensão, num esforço permanente de compreender as causas que levam às quedas do próximo. Todos caímos, e todos necessitamos da misericórdia.
Os impiedosos não alcançarão o Reino de Deus, e os que pagam o mal com o mal, não escaparão das consequências da própria maldade. É preciso amar as pessoas, indistintamente, "como se não houvesse amanhã".

Tiago de França

domingo, 14 de junho de 2020

A compaixão de Jesus e o perigo da insensibilidade


“...vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,36).
            Jesus viu as multidões. O verbo ver precisa ser melhor vivido pelas pessoas. Às vezes, corremos o risco de viver sem olhar para os outros, mas apenas centrados em nós mesmos. Quem se ocupa somente consigo mesmo, com seus próprios interesses, com suas buscas e sonhos, preocupado somente em alcançar seus objetivos, facilmente se torna egoísta. O verbo ver nos oferta uma questão importante: Tenho enxergado as pessoas, ou sigo minha vida pensando e agindo somente em função da minha realização e felicidade pessoais?...
            No seio da comunidade cristã também é necessário se perguntar se as pessoas estão sendo esquecidas, ou deixadas de lado. Temos pessoas invisíveis em nossas comunidades? Ou será que somente enxergamos aquelas que nos podem ajudar, ou satisfazer nossos interesses e caprichos? A fé cristã é comunitária, e não permite que o cristão se comporte ignorando os outros. Nas famílias e comunidades é preciso redimensionar o olhar. As pessoas precisam ser enxergadas, especialmente as mais frágeis e sofredoras. Tenho enxergado o sofrimento dos outros, ou finjo que eles não existem?...
            Jesus se compadeceu porque as multidões estavam cansadas e abatidas. Hoje, as multidões de brasileiros estão cansadas e abatidas, por causa da pandemia do coronavírus e das crises econômica e política. O cansaço e abatimento decorrem de inúmeras situações, dentre as quais podemos citar o medo de adoecer, de passar fome e morrer; a fome que já maltrata milhões de pessoas, muitas delas, desempregadas, ou incapazes de trabalhar; a violência doméstica que aumenta; a ansiedade que domina por causa do medo em relação ao futuro incerto; as constantes ameaças ao regime democrático já fragilizado; a falta de compaixão de autoridades que se aproveitam do cenário atual para tirar vantagens política e econômica etc. Estou enxergando esta realidade, ou penso e ajo como se nada tivesse a ver comigo?...
            O evangelista diz que as multidões estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não tem pastor. Isso significa que as multidões estavam abandonadas à própria sorte, desamparadas. Quem consegue enxergar a realidade atual, logo percebe que a situação de abandono e desamparo é gritante. Nas Igrejas cristãs há uma tentação constante, que precisa ser enfrentada com coragem, reflexão, discernimento e oração: Há o risco de os líderes religiosos se preocuparem, em primeiro lugar, com a própria sobrevivência e com a sobrevivência de suas instituições, em detrimento da vida sofrida do povo. Parece que foi isso que ocorreu, recentemente, com alguns religiosos que ofereceram apoio ao presidente da República em troca de verba pública para seus meios de comunicação. Por que esses religiosos não pediram para o governo ter compaixão das vítimas da pandemia do coronavírus?...
            Ao ver a situação das multidões cansadas e abatidas, Jesus se dirige a seus discípulos e lhes faz a seguinte recomendação: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi pois ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita!” (Mt 9,37). O campo de trabalho é imenso, há muito o que se fazer. Não se pode reclamar a falta de serviço. Há muita gente precisando de ajuda em toda parte. Isso é uma constante na história da humanidade. São muitos os campos de missão; muitas as periferias materiais e existenciais. Sempre é possível fazer alguma coisa. Não se trata de abarcar o mundo, no afã de resolver tudo, mas de estender a mão para alguém: escutar, apoiar, incentivar, ajudar de alguma forma.
            Quando Jesus recomenda aos discípulos que peçam a Deus que envie trabalhadores para a colheita, na verdade, ele está apontando para a realidade. Pedir para que Deus envie trabalhadores para a sua colheita. Não se pode conceber que Deus envie trabalhadores para que vivam ocupados somente com o seu próprio bem-estar. Isso não é ser trabalhador, mas mercenário. O trabalhador da messe do Senhor vive em função da messe, não em função de si mesmo. Nas Igrejas, os que se consagram ao serviço do Senhor, consagram-se ao serviço da messe. Às vezes, tem-se a impressão de que muitos consagrados se esquecem de que são operários da messe do Senhor.
            O trabalhador da messe do Senhor é alguém que se identifica com Jesus e seus desígnios, e esta identificação exige compromisso com a construção do Reino de Deus, que é amor, justiça e paz para todos. Para isso, exige-se uma entrega total de si. O trabalhador da messe do Senhor é alguém que vive a contemplação na ação. A santidade deste trabalhador depende, necessariamente, de sua dedicação pastoral e de seu compromisso com o mundo. É o que nos ensina o Papa Francisco em sua belíssima encíclica Gaudete et Exsultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual, nn. 25-27.
            Após nomear os doze discípulos, dando-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar doenças e enfermidades, Jesus ordena para irem primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10,6). O trabalhador da messe do Senhor não é chamado a julgar e condenar as ovelhas perdidas, mas recebeu de Jesus a ordem de ir até elas para resgatá-las. Jesus praticou isso em sua missão: Aproximou-se, acolheu, curou e deu dignidade às pessoas consideradas perdidas. Qual tem sido o nosso pensamento e nossa maneira de agir quando nos deparamos com as pessoas que consideramos “perdidas”? Se as julgamos, condenamos, mandamos para o inferno, ou agimos para que sejam mais prejudicadas ainda, então não estamos no caminho de Jesus. E nossas Igrejas, como tem tratado estas ovelhas?...
            É preciso anunciar que o Reino dos céus está próximo (Mt 10,7). Este Reino não é uma má notícia, nem ocasião de condenação para as ovelhas perdidas, mas anúncio de renovação da vida em Jesus Cristo para a glória de Deus Pai. O trabalhador da messe do Senhor é um agente da Boa notícia, não é um propagador do medo e da morte.
No mundo, já existe muita gente para anunciar o medo e a morte. Essa triste atuação não cabe ao trabalhador da messe do Senhor, porque enviado por Deus, deve anunciar a alegria da ressurreição de Jesus, que restaura, dá força e salva. Em sintonia com as palavras e o agir de Jesus, todo cristão é chamado a ser trabalhador da messe do Senhor, vivendo como Jesus viveu, sendo sensível e solidário com os que sofrem. Esta é a vocação primeira do cristão e do cristianismo no mundo.
Tiago de França

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Jesus: Pão vivo descido do céu


“Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51).

            A celebração da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo é um convite para rezar e refletir sobre o sentido da Eucaristia para a vida cristã. Jesus é o pão vivo descido do céu. Quem consegue viver sem o alimento? O discípulo de Jesus vive dele e para ele. Este é o sentido da Eucaristia. Quem recebe Jesus na Eucaristia vive unido a ele e viverá eternamente.
            Viver eternamente é a promessa de Jesus a toda pessoa que permanece em comunhão com ele. Esta comunhão se dá no pão, que é a sua carne dada para a vida do mundo. Esta carne dada é uma clara referência à sua vida doada na cruz. Desse modo, todo aquele que deseja permanecer unido a Jesus precisa saber que esta união também se dá na morte de cruz.
            Unir-se a Jesus em sua morte significa viver como ele viveu: anunciando o Reino, na fidelidade ao Pai, até a morte de cruz. O mesmo Jesus que afirmou ser o pão vivo descido do céu é o que disse que quem quiser segui-lo terá que renunciar a si mesmo e tomar a cruz. Portanto, é inconcebível permanecer em comunhão com o Pão vivo descido do céu sem assumir o compromisso do seguimento a Jesus.
            Seguir a Jesus é renunciar a si mesmo e tomar a cruz. Renunciar é preciso, porque na vida não se pode abraçar, nem querer tudo. Cada escolha exige suas renúncias. Qualquer profissão exige que se abra mão de tudo aquilo que não contribui para a escolha feita. Na vida cristã é a mesma coisa: Seguir a Jesus exige renúncia de tudo aquilo que realmente afasta dele: riqueza, poder, prestígio, ostentação, rivalidades, inveja, vontade de destruir os outros, falta de amor...
            Afastar-se do mal e ser solidário é um caminho de cruz. Não é fácil lidar com as tendências negativas da própria natureza, bem como permanecer aberto e disponível aos outros. Vencer o egoísmo é um caminho espinhoso. Quem vence o egoísmo experimenta a alegria de Jesus, o Pão da vida. A participação no Corpo e no Sangue de Jesus é uma feliz oportunidade para permanecer livre do egoísmo. Quem se deixa dominar pelo egoísmo está em profunda contradição com a Eucaristia que recebe. Eucaristia e egoísmo são realidades incompatíveis.
            O Papa São João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia, ensina que a Eucaristia é o sacramento por excelência do mistério pascal e está colocada no centro da vida eclesial, porque, segundo ele, a Igreja vive da Eucaristia (cf. nn. 1 e 3 da encíclica). O que significam estas afirmações do Papa? Muitas vezes, comunga-se da Eucaristia sem conhecer o seu verdadeiro significado. Há também aqueles que tomam parte no Corpo e Sangue do Senhor, mas se recusam a aderir ao seu projeto. Há um terceiro problema: Transformar a Eucaristia em um mero objeto de culto e adoração, desvinculando-a da vida.
            O mistério pascal de Cristo está no centro da vida da Igreja. Como a Eucaristia está no núcleo deste mistério, então ela ocupa o centro da vida eclesial. Às vezes, tem-se a impressão de que muitas pessoas não reconhecem Jesus na Eucaristia. Esta é vista como se fosse um alimento que purifica e alimenta a alma do fiel. Trata-se de uma visão reducionista da Eucaristia. Jesus não partilhou o pão pensando na purificação das almas das pessoas. Ninguém participa de uma refeição para se purificar, mas para se alimentar.
            Com isso, não se está negando que o Corpo e o Sangue do Senhor não perdoam os pecados. O sangue do Senhor foi derramado por todos para a remissão dos pecados. Quando se invoca o Espírito Santo, o pão e o vinho são transformados no Corpo do Senhor, que redime e salva a todos. O problema está no equívoco que ocorre ao se interpretar a remissão dos pecados. Os remidos pelo sangue de Cristo devem viver unidos a ele na missão que acontece no mundo. Não se deve comungar para viver isolado, com medo do pecado.
            Há uma íntima ligação entre a Eucaristia e a Igreja. Não é possível viver em comunhão com Jesus na Eucaristia sem viver em comunhão com a Igreja. Mas qual Igreja? A Igreja é Povo de Deus. Pela Eucaristia, este Povo é chamado a se tornar instrumento de unidade e paz das pessoas entre si e destas com Deus (cf. o cap. 17 da Lumen Gentium - constituição dogmática sobre a Igreja). Unidos à Eucaristia, os que professam a fé na Igreja são chamados a ser instrumentos de unidade e paz.
            Ultimamente, tem surgido outro mal na vida eclesial: Pessoas e grupos que banalizam a Eucaristia e deturpam o seu sentido eclesial. Há também os que ousam criar, para si e para os outros, concepções eclesiológicas incompatíveis com o Evangelho, com a Tradição e com o Magistério da Igreja. Particularizam a Igreja, ferindo a sua universalidade. A Igreja deixa de ser católica, para ser “minha Igreja”, “nossa Igreja”, em detrimento da “Igreja dos outros”. O mesmo se faz com a Eucaristia: Alegam a existência de um Jesus capaz de satisfazer os desejos pessoais e grupais.
            Quando vista desta forma, perde-se a sua dimensão vivencial. A Eucaristia passa é reduzida a objeto sagrado, que cura doenças, que dá sorte, que é reservada a algumas categorias de pessoas, que deve ser guardada em recipientes de ouro e prata, que serve para afastar pragas e castigos, que sendo tocada afasta o mal e o diabo etc. Esse reducionismo faz com que a Igreja não cresça no compromisso com os que mais sofrem, e contribui para o esvaziamento da fé.
            Os que possuem uma visão reducionista da Eucaristia não compreenderam o que Jesus quis dizer ao afirmar que é o pão vivo descido do céu. Quem se alimenta deste pão precisa caminhar. Este pão confere força para agir em conformidade com a vontade de Deus. É para fazer a vontade de Deus que o fiel comunga, e esta vontade divina exige compromisso com os que sofrem. Se o fiel comunga, mas vive na indiferença, entrou em comunhão com quem? É preciso adorar Jesus na hóstia consagrada sem deixar de olhar nos olhos dos irmãos. Estes olhos revelam o significado da comunhão eucarística, porque é um constante apelo ao amor.
            Em tempos de pandemia do coronavírus, a comunhão eucarística leva o cristão a viver por causa de Jesus. Quem o recebe como alimento permanece nele e vive por causa dele (cf. Jo 6,56-57). Toda pessoa que vive por causa de Jesus, vive em íntima relação com o que ele viveu e pregou: O amor. A Eucaristia torna as pessoas mais amorosas. Este é o efeito natural deste alimento salutar. Já que não é possível aos católicos, neste momento de pandemia, a participação de todos nas celebrações e procissões, na preparação de tapetes nas ruas, nos momentos de adoração eucarística etc., é importante que se reflita sobre o significado da Eucaristia na vida pessoal e eclesial, tendo em vista a celebração vivencial deste sacramento.
            Culto e vivência devem estar interligados. O que Jesus deseja é a comunhão na vida dos irmãos. Não basta somente comungar Jesus na hóstia consagrada. A celebração eucarística continua após a bênção final e a despedida. Separar liturgia eucarística da vida cotidiana é tornar sem efeito a comunhão com Jesus. A relação com Ele se dá na relação Eucaristia-Igreja. Cada fiel é membro da Igreja, e como membro deve comungar com os demais membros. A Eucaristia faz a Igreja e, assim, cada fiel se alimenta dela para tornar-se cada vez mais Igreja, cada vez mais Povo de Deus para a vida do mundo.

Tiago de França