sexta-feira, 31 de julho de 2020

Canal no YouTube


Amigos/as,

Acatando as sugestões de alguns amigos, criei um canal no YouTube. Meu objetivo é compartilhar algumas reflexões teológicas, jurídicas e filosóficas. Sem polêmicas nem radicalismos, pretendo compartilhar ideias. Quem quiser sugerir temas para as reflexões, estou aberto a sugestões. Na medida do possível, irei atualizando o canal. Acessem, se inscrevam e compartilhem.

Abraço fraterno!

Tiago de França
Nome do canal: Com Jesus na contramão

quarta-feira, 29 de julho de 2020

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARTA AO POVO DE DEUS


           Algumas pessoas pediram a minha opinião sobre a Carta ao povo de Deus, assinada por dezenas de Bispos da Igreja católica, publicada pela coluna da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo, no dia 26 de julho do corrente ano. Li e analisei o conteúdo da Carta, bem como estou acompanhando nas redes sociais as reações de inúmeras pessoas e grupos, tanto dentro quanto fora da Igreja católica. Neste breve artigo, quero tecer algumas considerações tanto sobre o conteúdo quanto sobre essas reações. Inicialmente, é preciso dizer que não sou filiado a nenhum partido político, nem faço a defesa apaixonada de nenhum deles. Falo como cristão, candidato às ordens sacras, advogado e professor.

1. O conteúdo da Carta
            Os signatários da Carta começam falando que estamos vivendo uma situação grave, e que resolveram se manifestar em comunhão com o Papa e seu magistério, bem como com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja. A premissa básica para a compreensão da Carta é o prévio conhecimento, nem que seja em linhas gerais, do significado da comunhão eclesial e da Doutrina Social da Igreja. Cabe aos Bispos se pronunciarem sobre os fatos, quer como Conferência Episcopal, quer individualmente. Neste caso, vários Bispos, de diferentes regiões do Brasil, resolveram se pronunciar sobre o momento grave em que estamos vivendo. Quem ignora a gravidade deste momento, não compreende a Carta.
            Em seguida, os Bispos falam do significado da missão da Igreja no mundo. Explicam aquilo que todo bom católico conhece e tem convicção: A Igreja nasceu para evangelizar. Citando o Papa Francisco, explicitam o conceito simples e teologicamente profundo sobre a evangelização: “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). O Reino de Deus está presente no mundo. Trata-se de uma realidade dinâmica e transformadora, que conhecerá a sua realização plena na volta definitiva de Cristo. A Igreja está a serviço desse Reino, e não o contrário. Esta é a fé da Igreja, fundamentada nas Escrituras Sagradas.
            A Carta segue manifestando a intenção dos Bispos: “Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor”. Eles não falam em nome de um partido político, nem em função da política partidária. Nenhum deles tem a pretensão de governar o País. Esta não é a função deles. Mas como a Igreja não vive a sua missão fora da realidade, esta merece a apreciação de todos, inclusive dos Bispos. Estes são homens de Deus e do mundo, e não podem ignorar o que acontece no mundo.
            A partir deste momento, os Bispos começam a fazer uma descrição pormenorizada dos principais problemas que afetam os brasileiros. Eles falam com a autoridade de quem conhece e tem a missão de anunciar o Reino de Deus. Neste anúncio está a denúncia das injustiças. Considerando a falta de um projeto de poder que favoreça, efetivamente, a promoção dos pobres e mais vulneráveis, bem como a proteção do meio ambiente, os Bispos retratam as consequências sociais que decorrem desta ausência.
O leitor da Carta precisa considerar que o atual governo não tem priorizado os mais pobres, mas governado para as classes mais favorecidas, composta, principalmente, por empresários que lutaram para eleger o atual presidente. Basta recordar a campanha eleitoral do presidente em 2018. Independente de viés ideológico, todo brasileiro, minimamente informado, sabe que o presidente foi eleito com o apoio da elite econômica do país. E sabe também que esta elite econômica controla o governo. Por isso, as medidas governamentais não favorecem os pobres.
Em breve será aprovada a Reforma Tributária, que está sendo apresentada aos poucos, para não assustar a população. Quem analisar essa Reforma verá que os pobres continuarão pagando mais impostos que os ricos. As mudanças tendem a piorar a situação dos pobres. Afirmar isso significa adesão ao comunismo? Se a resposta for positiva, então convido a estudar um pouco sobre dois conceitos: Ideologia e comunismo. Não adianta negar a realidade. O negacionismo é sinônimo de ignorância. Independentemente de preferências políticas, temos que admitir que a corda está no pescoço dos pobres.
A Carta continua com a denúncia dos discursos anticientíficos, “que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço”. Os Bispos também reconhecem a “incapacidade e inabilidade do Governo Federal” em enfrentar as crises política e econômica. Também fazem uma dura crítica ao modelo econômico neoliberal, “que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população”.
Os Bispos também reprovam as ações que atentam contra a democracia, perpetradas pelo governo e assistidas por todos os brasileiros: Os ataques às instituições, que geraram grave instabilidade institucional, fato inédito na história da República brasileira. Outros expedientes condenáveis pela moral católica e pelo bom senso das pessoas são denunciados pelos Bispos: flexibilização das leis de trânsito; uso de armas de fogo pela população; recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas (fake news).
Também denunciam o “desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia”, que os estarrece. Citam ações praticadas pelo governo federal que explicitam este desprezo em cada um desses âmbitos. No aspecto econômico, os Bispos denunciam o Ministro da Economia, que “desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem”. Falam da recessão que ameaça o país, gerando desemprego e fome.
De forma contundente, denunciam a “omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel”. Citam o descaso do governo quanto à situação dos povos indígenas, que, “dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020)”.
Os Bispos também denunciam a manipulação religiosa por parte do governo, que se utiliza da religião “para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes”. Essa manipulação acontece porque assiste-se à “associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário”. Não é novidade para ninguém que o presidente é amigo pessoal de muitos pastores de Igrejas ditas evangélicas, e que sempre busca favorecê-las. Curiosamente, o presidente se diz cristão, mas frequenta inúmeras Igrejas.
Chegando ao final da Carta, os Bispos convidam ao respeito à pluralidade. Como não basta denunciar, mas é necessário propor; então, eles propõem “um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos”.
A Carta é finalizada com um convite: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12)”, e com a bênção sacerdotal do livro de Números, capítulo 6, versículos 24 a 26.

2. As reações à Carta
            As reações à Carta foram imediatas. Fora da Igreja católica, foi bem recebida pelos intelectuais comprometidos com as necessárias transformações que beneficiam os mais pobres. Esses intelectuais não são necessariamente de esquerda, mas são ativistas engajados em questões políticas e sociais, sem paixões partidárias. Também os membros dos partidos de esquerda se identificaram com as denúncias feitas na Carta. O mesmo se pode falar, certamente, dos movimentos sociais que lutam com os menos favorecidos.
            A elite econômica e todos aqueles que se beneficiam das ações contrárias ao bem comum, praticadas pelo governo federal, certamente não gostaram da Carta. Pessoas e grupos ligados ao governo devem ter se sentido confrontados, porque se beneficiam de um governo que não governa para todos. Também não deve ter gostado da Carta os pastores das Igrejas ditas evangélicas, que fazem propaganda do governo em suas Igrejas, em troca de favores. Não preciso citar nomes, porque já são bastante conhecidos.
            Os eleitores não arrependidos do presidente Bolsonaro, principalmente os mais fanáticos, odiaram a Carta. Muitos deles estão vociferando seu ódio nas redes sociais. É algo estarrecedor. Utilizam-se de palavrões e expressões ofensivas. São, de fato, fanáticos.
Dominados pelo ódio e pela total ausência de reflexão, dedicam-se a defender o presidente da República. Calúnia, difamação e muitas notícias falsas aparecem como um oceano infinito. As redes sociais se transformaram num palco de exposição do que há de mais vergonhoso no ser humano. E para piorar, muitos agem em nome de Deus e da religião cristã. Não aceitam críticas, nem estão abertos ao diálogo; são violentos e intolerantes; desconhecem Jesus e sua mensagem de justiça e paz.
 No seio da Igreja católica, as reações à Carta também apareceram. Os católicos tradicionalistas, que são mais fechados e possuem mentalidade de cristandade, odiaram a Carta. Eles também ocupam as redes sociais, sites, blogs e canais no YouTube para julgar e condenar a iniciativa dos Bispos, que são acusados de serem comunistas e petistas. No mundo da ignorância e da intolerância, discordar do atual governo é coisa de comunista e petista. Quem é contrário ao governo é, necessariamente, comunista e petista. O mesmo se diga dos críticos dos governos petistas, que também são taxados de fascistas e bolsonaristas. Trata-se de uma visão míope, reducionista e infundada.
Salvo exceções, os católicos tradicionalistas são eleitores do presidente Jair Bolsonaro. Há os que não são tradicionalistas, mas se reconhecem como conservadores, tanto clérigos quanto leigos, que também são eleitores convictos do presidente. Pelas reações de muitos nas redes sociais, também não gostaram da Carta. Alguns se utilizam das mesmas expressões dos tradicionalistas radicais, verdadeiros “talibãs católicos”. Outros não são tão violentos, mas se declaram explicitamente contrários aos Bispos, por considerarem a política um tema que não deve ser abordado na Igreja católica. Muitos acreditam que os problemas sociais e políticos são “coisas do mundo”, e que a Igreja não deve se ocupar com tais coisas.
Esses católicos parecem ignorar o Evangelho e a Doutrina Social da Igreja. Também confundem política com partido político. A maioria desconhece o verdadeiro significado terminológico, sociológico, filosófico e histórico da palavra comunismo. Muitas publicações nas redes sociais revelam a ausência de argumentos minimamente razoáveis.
Há uma infinita repetição de frases de efeito, pensamentos sem lógica, notícias falsas e dados supostamente históricos, que cientificamente não se sustentam. Falta muita leitura, interpretação de texto, conhecimento histórico e senso crítico. Os tradicionalistas confundem Tradição (com “t” maiúsculo) com tradição. E quando se referem à Tradição, mostram que não a conhecem. Trata-se de uma confusão proposital e interminável, uma violência que divide a Igreja e envergonha o cristianismo perante o mundo.
Alguns dizem que a Carta não goza de legitimidade porque seus signatários não integram a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e, por isso, não poderiam falar em nome da Igreja. Sobre esse ponto, é preciso considerar três aspectos: 1) Cada Bispo é autônomo para falar em nome da Igreja, por ser sucessor dos Apóstolos, Pastor da Igreja, mestre da doutrina, sacerdote do culto e ministro de governo eclesiástico (cf. o cânon 375, §1 do Código de Direito Canônico), portanto, possui plena autonomia para se manifestar sobre qualquer assunto, especialmente acerca de questões que ferem a dignidade da pessoa humana; 2) Cada Bispo é livre para pensar, bem como para agir conforme a sua consciência. A Conferência Episcopal não é formada por Bispos que pensam e agem da mesma forma. Não existe nem deve existir pensamento uniforme na Igreja. A pluralidade de ideias e posturas é necessária e saudável, e não fere a colegialidade episcopal; 3) A legitimidade das manifestações está relacionada não somente ao poder que o Batismo confere a todo cristão, mas sobretudo ao testemunho que todos os batizados manifestam ao se interessar pelos problemas do mundo, tendo em vista solucioná-los à luz do Evangelho de Jesus.
Cada Bispo, padre, diácono e todos os demais fiéis devem procurar viver o Evangelho, e tal vivência acontece em meio aos conflitos que ocorrem na sociedade. Não se vive o Evangelho nas sacristias das igrejas, mas no meio do mundo, porque as “alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et Spes – constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual, n. 1).
Por isso, parabenizo a iniciativa e a coragem dos Bispos que escreveram e assinaram a Carta. A situação social e política do país não pode ser ignorada. Cabe à Igreja profetizar. Uma Igreja sem profecia não serve ao Reino de Deus. Apesar dos riscos inerentes à profecia, é necessário obedecer ao que Deus manda. O mandato missionário de Jesus é claro e precisa ser cumprido. Não se deve pecar por omissão.
No juízo final, Jesus julgará pelo que se fez aos pobres e pequeninos (cf. Mt 25,31-45), ou seja, o amor será o critério do julgamento. Não é a defesa ferrenha da doutrina, da moral e dos bons costumes que salva, mas o anúncio de Jesus Cristo que acontece na prática da caridade. A doutrina, a moral e os bons costumes devem convergir para Cristo; do contrário, transformam-se em empecilhos na caminhada para Deus.
Em síntese, é o que penso sobre a Carta ao Povo de Deus, que muito me alegrou, por saber que a Igreja não é indiferente ao que se passa com o sofrido povo brasileiro. É preciso avançar para as águas mais profundas, sem medo das tempestades. Cristo Jesus está na embarcação, decidido a permanecer nela até o fim dos tempos.

Tiago de França

domingo, 26 de julho de 2020

O essencial e o supérfluo


“O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13,44).
            As pessoas podem passar toda a vida se ocupando com o essencial, ou com o supérfluo. No cristianismo, o essencial é Jesus. Este Reino dos Céus de que fala o evangelista Mateus é o próprio Cristo. Como diria Orígenes, Jesus é o Reino de Deus em pessoa (autobasileia). A parábola fala de um tesouro escondido, e o que está escondido precisa ser descoberto. Jesus precisa ser descoberto. É possível que muitos cristãos passem a vida toda invocando o nome de Jesus sem descobri-lo na vida.
            A descoberta de Jesus passa, necessariamente, pela experiência da proximidade. É necessário se aproximar dele, na liturgia, nos sacramentos e na vida cotidiana. Ele está nas Escrituras, na Eucaristia e nos demais sacramentos. Estes são sinais que manifestam a sua presença. Mas esses sinais não estão desligados da vida cotidiana. Assim, quando criamos laços de fraternidade com as pessoas, então estamos vivendo essa proximidade com Jesus. As pessoas são sacramentos de sua presença.
            A parábola diz que o homem encontra o tesouro e é tomado por uma grande alegria. Encontrar-se com Jesus é conhecer e experimentar a verdadeira alegria da vida. Não se trata de uma alegria ingênua, nem passageira, mas daquela que transforma interiormente a pessoa, tornando-a leve e disposta para enfrentar os dilemas da vida. O evangelho de Mateus foi escrito para uma comunidade que enfrentava tribulações. A vida é cheia de tribulações, e exige que o discípulo de Jesus seja alguém cheio da sua alegria.
            Mas não bastou ao homem da parábola somente ficar alegre. Ele tomou a firme decisão de vender todos os seus bens para comprar o campo, onde estava o tesouro. Agindo assim, reconheceu o valor do tesouro escondido e se empenhou em tê-lo para si. Essa atitude nos faz pensar a respeito da nossa busca e interesse por Jesus, única riqueza da vida do cristão. O que estamos fazendo para permanecer com Jesus? Será que estamos deixando Jesus de lado para nos dedicar a outras coisas que julgamos mais importantes?
            No seio de nossas Igrejas há a grande tentação de se marginalizar Jesus. Muitas vezes, a procura é por outras coisas. Em nome de Jesus, muitas coisas erradas são feitas e ditas. Em nome dele, muitos procuram dinheiro, sucesso, poder, status etc. Pronuncia-se o nome de Jesus para legitimar interesses mesquinhos e mundanos. Assim, cria-se um cristianismo das aparências, da estética bem trabalhada, do discurso vazio e de práticas indignas do cristão. Usando uma expressão do Papa Francisco, vive-se o mundanismo espiritual.
            Esse mundanismo espiritual se manifesta naquelas situações em que somente encontramos superficialidades. O materialismo e a vaidade tentam se esconder por trás de rostos angelicais e de aparência de santidade. Cria-se um ambiente fervorosamente religioso, mas sem caridade com o próximo. A malícia se esconde por trás das invocações incessantes do nome de Deus. O cristianismo atual está sofrendo muito desse tipo de enfermidade.
O mundanismo espiritual é a manifestação mais evidente do que podemos chamar de corrupção religiosa. A religião não foi criada com este propósito. Jesus foi muito severo com esse tipo de procedimento, ao reprovar a conduta dos mestres da lei e fariseus, que usavam do aparato religioso para se apresentar como homens santos, bem como para explorar os mais simples do povo de Deus. O mundanismo espiritual revela a religiosidade que não liga o homem a Deus, mas o desvia do caminho que conduz a Deus.
Quando apontamos para a lua, o mais importante não é o dedo que aponta, mas a beleza da lua que precisa ser contemplada. O mesmo deve ocorrer na vida cristã, quando apontamos para Jesus, o mais importante é Jesus. Do contrário, quando se utiliza do aparato religioso (vestes, rituais, sacramentos e sacramentais, símbolos em geral, doutrina etc.) para que brilhe a pessoa que aponta e não o próprio Cristo, então temos um problema que merece reflexão e solução. É Jesus o centro da vida eclesial e cristã.
Tudo o que atrapalha o cristão na sua caminhada para Deus é desvio. Tudo o que ofusca Jesus na vida da Igreja é supérfluo e precisa ser reprovado e deixado de lado. Jesus é a Luz que não pode ser ofuscada. Na vida cristã é preciso ver o que é essencial e o que é supérfluo. No centro da vida da Igreja não está Maria, os santos, os anjos, a doutrina, a hierarquia eclesiástica, a pomposidade das cerimônias, o dízimo, as grandes edificações, entre tantas outras coisas. Nada disso. No centro da vida da Igreja está Jesus Cristo, Senhor e Salvador. Tudo deve convergir para Ele.
E antes que o leitor pense que Maria, os santos, os anjos, a doutrina, a hierarquia, o dízimo, as edificações etc. não são importantes, afirmo que são. Mas nada deve ocupar o lugar de Jesus. Insisto nisso porque temos assistido a certa multiplicação de práticas e usos no seio das Igrejas cristãs que tendem a tirar Jesus do centro. Isso é muito grave e perigoso. Se ao olharem para um cristão, as pessoas não enxergarem nada que as façam lembrar de Jesus, então temos um estilo de vida desse cristão é equivocado. A doutrina cristã é clara: O cristão deve refletir Cristo.
A caridade, a fé, a esperança, a sobriedade, a moderação, o cuidado, o respeito, a tolerância, a humildade, a mansidão, o despojamento e tantos outros valores integram o essencial. São valores que revelam que o essencial ocupa o centro da vida. A cultura da aparência e o apego ao que é transitório explicitam o supérfluo que prende a aliena. O seguimento de Jesus não é uma experiência superficial, mas adesão que transforma radicalmente a vida do discípulo; não é algo passageiro, mas que permanece.
É necessário procurar Jesus para ter a vida nele. Quem o encontra, tem a segurança necessária para viver e ser feliz. Entregar-se a Ele é a melhor escolha. É um caminho que vale a pena, pois é caminho de plenitude e paz.
Para tornar-se verdadeiramente humano, o cristão precisa colocar Jesus no centro de sua vida. Ele é a rocha e a seiva, o caminho e a porta, a bússola, o Pastor e a salvação. Por Ele somos justificados diante de Deus. Seu amor nos envolve e nos torna justos. Se estamos a Ele ligados, então não precisamos ter medo, mas podemos caminhar com passos firmes e orientados pela sua voz. Assim, a vida do discípulo se torna uma bela e gratificante aventura de amor. Quem não se aventura com Cristo, não conhece nada disso.

Tiago de França

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Os cristãos e a política



“Fazer política inspirada no Evangelho a partir do povo em movimento pode se tornar uma maneira poderosa de sanar nossas frágeis democracias e de abrir o espaço para reinventar novas instâncias representativas de origem popular”.
(Papa Francisco, audiência com os participantes de um Programa de pós-graduação em Doutrina Social da Igreja, no Vaticano, em março de 2019).

            O fenômeno da polarização política despertou, especialmente nas redes sociais, a discussão sobre o envolvimento dos cristãos com a política. Esta polarização não é um fenômeno recente, mas algo que sempre fez parte dos regimes democráticos. De uns tempos para cá, tem se intensificado e, assim, tornou-se mais violenta. A política brasileira ficou reduzida ao embate entre direita e esquerda. O que não se encontra neste antagonismo aparece como estanho e confuso. A oposição entre direita e esquerda, dirá N. Bobbio, é uma realidade antitética, ou seja, oposição necessária: uma depende da outra para subsistir (cf. o livro de N. Bobbio:  Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política).

Política e politicagem
            Antes da efervescência das redes sociais, de modo geral, o brasileiro não tinha interesse por questões políticas. Os mais simples sempre dizem que a política é coisa de “homem sabido”. Os políticos sempre se apresentaram como uma casta superior, que goza de inúmeros privilégios. Quanto mais alto o posto, mais privilégios são assegurados. O gasto público para a manutenção do aparato institucional é imenso. As regalias são escandalosas, mas, curiosamente, não são extintas. A maioria das pessoas já não se importa mais.
            A verdadeira política não tem nenhuma ligação com privilégios. Geralmente, as pessoas ignoram o sentido e o alcance da política, mesmo arcando com as consequências da ausência da boa política. Há muita politicagem e pouca política. A polarização é a política em seu estado extremado e nocivo; é a manifestação mais evidente da crise política que assola o país. Mas há quem se beneficie da situação, aproveitando-se do estado de cegueira provocado pelos radicalismos apaixonados. Enquanto as pessoas se digladiam nas bases da sociedade, os mais espertos assaltam os cofres públicos.
            Esta polarização vai além da oposição entre siglas partidárias. Na verdade, o núcleo da questão se encontra nos projetos de poder subjacentes às disputas políticas. Cada grupo político tem seu projeto de poder, que aparece claramente tanto nos discursos quanto na forma de governar. Qualquer pessoa atenta ao que acontece, é capaz de enxergar para qual direção cada governante conduz a cidade, o estado e o país. O problema é esta atenção ao que está acontecendo. O brasileiro apanha e não sabe quem deu surra!

Generalização e demonização
            No regime democrático não existe sistema representativo sem os partidos políticos (cf. o art. 1º da Lei 9.096/95, que dispõe sobre os partidos políticos). Com a polarização política surge também outros dois fenômenos congêneres, que revelam a falta de formação política da maioria da população brasileira: a generalização e a demonização de pessoas e instituições.
Toda generalização revela a falta de análise da realidade e, portanto, é insustentável e equivocada. “Maria cometeu adultério, logo todas as mulheres são adúlteras”; “O prefeito José desviou o dinheiro da merenda escolar, logo todos os prefeitos são ladrões”; “O padre Anastácio desviou o dinheiro do dízimo, logo todos os padres são ladrões”; “O casamento de Joaquim não deu certo, logo não existe felicidade no casamento”. Estes e tantos outros exemplos servem para ilustrar que, racionalmente, a generalização não tem sentido. Defender ideias oriundas de generalizações é atitude de pessoa pouco inteligente.
A generalização contribui para a demonização de pessoas e instituições. A ideia de que tudo está perdido é muito perigosa. Parte-se do princípio de que não adianta ser honesto, nem que se deva trabalhar por uma sociedade justa e fraterna. A demonização maximaliza o mal, semeando o desespero nas pessoas. O medo e a angústia também tomam conta da sociedade, e esta é levada a crer que não há futuro promissor. Tudo está fadado ao fracasso. Prega-se o caos generalizado de todas as coisas.

O joio e o trigo na política
Por mais caótica que seja uma situação, há sempre caminhos possíveis de saída do caos. Segundo uma comparação usada por Jesus de Nazaré, o joio e o trigo estão misturados, e crescem juntos até o dia da colheita (cf. Mt 13,24-30). Existe o joio, que é a erva daninha, mas também existe o trigo, que gera abundância. Na política, o joio é a corrupção, que sempre existiu na humanidade. Todas as sociedades são marcadas pela corrupção. Em todos os setores da sociedade é possível encontrá-la. É ilusão pensar que em algum país do mundo não exista uma parcela de gente que se aproveita da ingenuidade e da desinformação para tirar proveito, agindo ilicitamente.
No Brasil, desde o famoso escândalo do “mensalão”, em 2005, até os dias atuais, os brasileiros tomaram conhecimento de inúmeros ilícitos cometidos por agentes públicos em conluio com empresários. Curiosamente, fala-se muito em corrupção no Estado, e praticamente nada sobre a corrupção na iniciativa privada. Esta é exaltada como se fosse a via de salvação do país. Tudo o que é público passou a ser visto como algo ruim. Os ingênuos e desinformados pensam que a salvação está na entrega do que é público nas mãos da iniciativa privada. Por incrível que pareça, ainda não pararam para pensar no significado da expressão iniciativa privada. O que é público visa o bem comum; o que é privado visa o enriquecimento do empresário ou do grupo empresarial.

O poder da mídia e das redes sociais
Por mais degenerada que seja a política, é preciso considerar que nela há pessoas honestas. E por que muita gente duvida disso? Entre os vários motivos, dois podem ser elencados: Primeiro, porque a mídia não fala dos perfis e trabalhos de pessoas honestas. A mídia vive das más notícias. A repetição sensacionalista e diuturna dos desvios passa a impressão de que tudo está perdido, e que todos os políticos são corruptos. Segundo, porque são poucos os que se informam sobre o que acontece na política nacional. A maioria absorve, sem nenhuma filtragem, as informações veiculadas nos jornais televisivos, nos sites de notícias na Internet e nas mensagens que recebem pelas redes sociais.
Com a explosão das fake news (notícias falsas), a situação piorou. A Justiça Eleitoral não agiu com firmeza nas eleições de 2018, que foram contaminadas por uma onda gigante de notícias falsas veiculadas nas redes sociais, principalmente no Facebook, Instagram e WhatsApp. Somente agora estão descobrindo que existe uma rede criminosa e organizada de produção de notícias falsas. Infelizmente, a instituição escolar não trabalha a política em sala de aula. O assunto não é trabalhado como deveria, e os estudantes concluem a educação básica sem o conhecimento das noções mínimas de democracia, cidadania, regime democrático, políticas públicas, política, direitos humanos e garantias fundamentais etc.
A carência de informação e formação política abre espaço para a proliferação de notícias falsas e escolhas erradas. Pessoas mal informadas, ou desinformadas não conseguem fazer boas escolhas. Toda escolha é, por natureza, política. Todas as escolhas provocam transformações na sociedade.

Homem: animal político
O ser humano é político em tudo o que faz e planeja fazer: ao escolher o alimento, a profissão, o vestuário, a religião, a moradia, os amigos, o (a) companheiro (a) para viver, ter ou não filhos, votar ou não votar etc. Até aqueles que decidem sobreviver sem fazer praticamente nada na vida, também fazem uma escolha que pode ser denominada de omissão política.
Quem nada faz de sua vida não colabora com o próprio crescimento, nem com o desenvolvimento da sociedade. Os gregos diziam que o homem é um zoon politikon (animal político) inserido na pólis (cidade), e enquanto tal, é chamado a participar das discussões sobre os destinos da cidade. A filósofa Hannah Arendht, ao pensar o conceito de vida ativa, defendia que toda pessoa deve se empenhar em fazer algo, pois a ação pertence essencialmente ao homem (cf. o livro A condição humana, de H. Arendt). Participar das discussões sobre os destinos da cidade e agir para construir um mundo mais justo e fraterno são atitudes essencialmente políticas.
O leitor já deve ter percebido que a política vai além dos partidos políticos, que existem para aqueles que se candidatam e, assim, submetem-se ao poder que o povo tem de escolher seus representantes: “O poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (parágrafo único do art. 1º da Constituição da República de 1988). A formação política é a ferramenta indispensável para levar as pessoas a conhecerem o significado e o alcance deste poder popular. Sem formação, o povo continuará sendo vítima, em primeiro lugar, da própria ignorância. Os maus políticos enganam somente os desinformados e desprovidos de espírito crítico.

A fé cristã e a política
O que diz a fé cristã sobre a política? Os evangelhos não mostram um Cristo metido em questões políticas, no sentido partidarista da palavra. Ele não participou de nenhum movimento político que visava derrubar o império romano. Deus não o enviou com essa missão. Mas é verdade que o encontramos numa posição contrária à exploração a que o povo estava submetido. Ao repreender a ambição de alguns de seus discípulos, diz Jesus: “Sabeis que os que são considerados chefes das nações, as dominam, e os seus grandes impõem sua autoridade. Entre vós não seja assim. Quem quiser ser o maior, no meio de vós, seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro, no meio de vós, seja o servo de todos” (Mc 10,42-44).
Aqui está o fundamento da política na ótica cristã: “... seja aquele vos serve...” Jesus ensina que a autoridade legítima é aquela que serve aos mais vulneráveis. Na Igreja católica, assim como em todas as instituições, há relações de poder. Diáconos, presbíteros e bispos compõem a hierarquia eclesiástica. A autoridade exercida por cada um destes somente é legítima se for pautada no serviço ao próximo.
Neste sentido, analógica e hipoteticamente, podemos dizer que há a autoridade de direito, constituída a partir do momento em que se confere um dos três graus do sacramento da Ordem (momento da ordenação), e a autoridade de fato, que é exercida no cotidiano da vida eclesial. Quando se apresenta e age como servidor, a autoridade é plena e legítima. Do contrário, vislumbra-se um dos fatores geradores de uma crise de autoridade.
A Igreja católica, a partir da mensagem de Jesus, compreende a política como serviço ao bem comum. Conforme a citação que introduz este artigo, o cristão é chamado a fazer política “inspirada no Evangelho”, que significa fazer política conforme os valores evangélicos: solidariedade, honestidade, transparência, justiça, verdade etc. O Papa São Paulo VI dizia que a política é a forma mais sublime de caridade, explicando, assim, a importância da política na vida cristã. Portanto, não é possível separar vida cristã e política, bem como fé cristã e política. Esta é uma das formas de expressão da fé em Jesus Cristo, quando inspirada no Evangelho.
A Doutrina Social da Igreja (DSI), conjunto de ensinamentos sobre a dignidade da pessoa humana e a promoção do bem comum na sociedade, ressalta a importância da política. A construção responsável da sociedade depende da política. Os cristãos vivem no mundo, portanto, devem colaborar na construção da sociedade. Essa colaboração deve ser pautada nos valores do Evangelho.
Quais seriam as implicações da DSI, que revelam o papel do cristão na construção da nova humanidade? “A doutrina social implica, outrossim, responsabilidades referentes à construção, à organização e ao funcionamento da sociedade: obrigações políticas, econômicas, administrativas, vale dizer, de natureza secular, que pertencem aos fiéis leigos, não aos sacerdotes e aos religiosos. Tais responsabilidades competem aos leigos de modo peculiar, em razão da condição secular do seu estado de vida e da índole secular da sua vocação: mediante essas responsabilidades, os leigos põem em prática o ensinamento social e cumprem a sua missão secular da Igreja” (Compêndio da DSI, n. 83).
Neste artigo, não quero entrar na questão canônica e magisterial que trata da proibição de sacerdotes e religiosos em atividades político-partidárias, pois é um assunto a ser tratado noutro artigo, dada a necessidade de se analisar o direito canônico, as orientações do magistério dos Papas e dos Bispos e as circunstâncias que explicitam, direta ou indiretamente, as intenções políticas. Em sua doutrina social, a Igreja católica expressa claramente que a política é campo de atuação para cristãos conscientes, livres e íntegros. Sem essas três qualidades não há bons políticos, nem democracia para todos.
A DSI tem duplo objetivo: religioso e moral. Religioso, “porque a missão evangelizadora e salvífica da Igreja abraça o homem ‘na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social’”, e moral, “porque a Igreja visa a um ‘humanismo total’, vale dizer à ‘libertação de tudo aquilo que oprime o homem’ e ao ‘desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens’” (Compêndio da DSI, n. 82). Portanto, através da política cada cristão participa desta missão da Igreja no mundo: Ajudar na libertação de tudo o que oprime o homem, promovendo seu desenvolvimento integral.
Com a explosão de espiritualidades desencarnadas no seio do cristianismo atual, marcadas por um espiritualismo desenfreado, que leva as pessoas a uma espécie de fuga do mundo, o tema da libertação integral passou a ser rotulado como “coisa de comunista”. No seio da Igreja há até aqueles que propagam a falsa ideia de que a DSI também é “coisa de comunista”. Os que assim se expressam, talvez não tenham sequer lido o Compêndio da DSI, bem como desconhecem que esta integra o Magistério da Igreja. Noutra oportunidade seria oportuno discorrer, de forma mais demorada, sobre a leitura, compreensão e aceitação seletiva que muitos católicos fazem do Magistério da Igreja. É um fenômeno preocupante, que atenta contra a comunhão eclesial.
O Catecismo da Igreja Católica também confirma a DSI: “Não compete aos pastores da Igreja intervir diretamente na construção política e na organização da vida social. Este papel faz parte da vocação dos fiéis leigos, agindo por sua própria iniciativa juntamente com os seus concidadãos. A ação social pode implicar uma pluralidade de caminhos concretos; mas deverá ter sempre em vista o bem comum e conformar-se a mensagem evangélica e o ensinamento da Igreja. Compete aos fiéis leigos ‘animar as realidades temporais com o seu compromisso cristão, comportando-se nelas como artífices da paz e da justiça’” (Catecismo, n. 2442).
O bem comum deve estar no centro da atividade política. Esta “ação social” a que se refere o Catecismo é o agir político na sociedade. Portadora do Evangelho de Jesus Cristo, a Igreja precisa fazer a mesma opção feita por ele, porque Deus o ungiu para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,18). Cabe à Igreja cultivar o amor aos pobres, porque são os mais vulneráveis da sociedade.
Eis o que continua dizendo o Catecismo da Igreja: “O amor da Igreja pelos pobres [...] faz parte da sua constante tradição’. Esse amor inspira-se no Evangelho das bem-aventuranças, na pobreza de Jesus e na sua atenção aos pobres. O amor dos pobres é mesmo um dos motivos do dever de trabalhar: para ‘poder fazer o bem, socorrendo os necessitados’. E não se estende somente à pobreza material, mas também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa” (Catecismo, n. 2444). Por que será que os que desprezam a opção pelos pobres na Igreja não consideram estas palavras do Catecismo promulgado pelo Papa São João Paulo II? A pergunta fica para o leitor refletir.
Portanto, os que dizem ser a opção pelos pobres na Igreja “coisa de comunista”, desconhece, ou se opõe conscientemente ao Evangelho, ao Magistério e à Tradição da Igreja. Neste sentido, não é nenhum exagero afirmar que não é católico quem se opõe a esses três fundamentos da fé católica.
Também não constitui exagero a afirmação de que a política integra a caminhada cristã e eclesial neste mundo, e que cabe ao cristão o exercício da política como forma suprema de caridade. Nos regimes democráticos, o cristão não pode recusar-se a exercer a sua cidadania, sob pena de arcar com as consequências de um pecado social gravíssimo. Na política, peca-se por ação, ou omissão. Quem se recusa a participar das discussões e ações que traçam os destinos do país, peca gravemente. Essa omissão reflete na vida social, prejudicando a coletividade.

Crise política e reforma
O Brasil está mergulhado numa grave crise política. Os atores que a promovem tentam, de todas as formas, apresentar a realidade como normal e até necessária à democracia. É um equívoco. Para crescer, a democracia não precisa ser submetida a crises políticas. Estas tendem a destruí-la. Por isso a urgência em sanar a crise, antes que cause estragos piores. Mas como o ser humano aprendeu a se beneficiar até das situações mais desastrosas, há quem esteja se beneficiando da crise. Podemos dizer que são os “urubus da democracia”, que vivem da carnificina social. Para estes, quanto pior, melhor.
Desde os tempos coloniais, os maus políticos fazem parte da República brasileira. Sempre aparecem, são escolhidos e eleitos. São o produto da massificação social. As pessoas são moldadas para agir de forma massificada, ou seja, controlada. O aparato midiático é a grande ferramenta de massificação. As pessoas vão sobrevivendo do jeito que podem, com as migalhas que caem das mesas dos patrões. Estes ficam com as riquezas, concentradamente, e as demais pessoas vão se virando. Neste clima de desespero, os oportunistas são populistas, e sabem se aproveitar da fragilidade emocional e material do povo desassistido. Surgem os falsos profetas e os falsos messias.
Os maus políticos são eleitos, e isso merece reflexão. Eles conseguem enganar seus eleitores. Estes deveriam refletir. Mas, muitas vezes, o que ocorre é que muitos eleitores sequer se recordam em quem votaram. O atual cenário político brasileiro é uma prova incontestável de que a política precisa ser levada a sério; do contrário, tudo tende a piorar. Muita gente já percebeu que praticamente tudo depende da política: os preços dos alimentos, vestuário, combustível, mensalidade escolar, gás, luz, água, medicamentos etc. Do alcance da política ninguém escapa.
O Brasil carece de uma reforma política para transformar a política em instrumento de promoção do bem comum. Mas esta reforma deve contar com a participação do povo. Não adianta esperar que a classe política realize a reforma, porque a maioria dos políticos não está interessada. A falta de consciência política por parte de muita gente faz com que a situação permaneça caótica. Consciência política gera organização popular, que faz surgir o interesse em transformar a política em ferramenta fundamental para a transformação da democracia.
Impulsionada pelo Evangelho e por sua doutrina social, cabe à Igreja contribuir para que essa reforma aconteça. Até que aconteça, é importante promover a formação política dos leigos, para que sejam agentes de transformação da sociedade, cumprindo, assim, a sua vocação política. Sem exercer a sua missão no mundo, o cristão se transforma em um ser alienado, vivendo em uma espécie de mundo ilusório e/ou paralelo.
O testemunho missionário de Jesus Cristo é um convite permanente para a itinerância e o engajamento social e político. No sermão da montanha o seu ensinamento é claro: Toda pessoa que deseja segui-lo é chamada a ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-16), ou seja, o discípulo missionário de Jesus pensa e age como ele, praticando a justiça do Reino de Deus, única capaz de tornar este mundo mais justo e fraterno.
Sem isso, o cristianismo não passa de um aglomerado de pessoas dedicadas à realização de ritos e cultos, desligadas da realidade do mundo. É desse tipo de cristianismo que os maus políticos gostam. Nas mãos deles, é mais uma ferramenta para promover a alienação. É algo nocivo à democracia e ao desenvolvimento do país. É tudo muito claro, para todo mundo ver. Mas como toda realidade terrena é transitória, espera-se que tal situação encontre o seu devido lugar no tempo e na história.

Tiago de França

Obs: A imagem que acompanha este artigo é meramente ilustrativa/reprodução.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Pe. Cícero Romão Batista e o chamado à santidade


“O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos chamados” (Gaudete et Exsultate, n. 1).
            Estas palavras do Papa Francisco, tiradas de sua exortação apostólica que trata do chamado à santidade no mundo atual, podem ser aplicadas à vida do Pe. Cícero Romão Batista. No dia vinte de julho de 1934, aos noventa anos, o santo Patriarca de Juazeiro do Norte, entregava a sua alma a Deus. Foi o dia mais triste da história daquela localidade.
Anualmente, os católicos de Juazeiro e os romeiros da Mãe das Dores, nesta data, vestem-se de preto para marcar o luto em sua memória. O “Padim Ciço”, como até hoje é carinhosamente chamado pelos romeiros, marcou a história da Igreja católica no Brasil. Neste artigo, como devoto deste grande sacerdote, quero discorrer um pouco sobre a sua santidade.
            É preciso dizer, inicialmente, que este sacerdote obediente e fiel à mentalidade e estilo de vida de sua época e região, até hoje é vítima de interpretações equivocadas oriundas da falta do necessário conhecimento da sua vida e missão. Interpretar os fatos à luz do contexto da época é uma exigência fundamental para evitar anacronismos. A personalidade do Padim Ciço é rica em detalhes, e a sua atuação pode ser estudada a partir de vários ângulos.
            Por que podemos afirmar que ele era um homem santo? É importante considerar que a santidade não é sinônimo de perfeição, porque esta pertence unicamente a Deus. Os santos não são pessoas perfeitas. Ao analisar a vida de um santo, ensina o Papa Francisco, que “não convém deter-se nos detalhes, porque nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto de sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa” (Gaudete et Exsultate, n. 22).
            O conjunto da vida e o caminho inteiro de santificação do Padim Ciço revela esta “figura que reflete algo de Jesus Cristo”. Assim como muitos outros santos, ele fez a opção de Jesus, dedicando-se à evangelização dos pobres. Nestes o Padim Ciço encontrou a razão do seu ministério sacerdotal, porque aprendeu que Jesus Cristo está presente na vida dos pobres e sofredores.
Fiel à teologia recebida no então Seminário da Prainha, onde estudou sob o regime de formação tridentina, marcado pela disciplina aplicada pelos Padres Lazaristas, o Padim Ciço era um pregador exímio. Narra a história que a sua pregação era compreendida pelos mais simples, que ouviam com atenção a voz eloquente de um sacerdote de estatura baixa e de olhos azuis.
            Para servir melhor aos pobres e desvalidos, vítimas da fome, das doenças e das injustiças, organizou um grupo de beatos e beatas, exigindo-lhes um estilo de vida austero, caracterizado pela caridade, oração, penitência e obediência. Para cada função tinha um beato ou beata: catequese, visitas, doações, fabricação de remédios caseiros, oração, serviços de sacristia e limpeza de igrejas, cultivo da terra, aconselhamento etc. A ordem era clara: Ninguém deveria ir embora sem ser atendido pelo Padim Ciço. Para todo tipo de problema havia uma solução possível. Isso dava segurança ao povo simples, que o procurava sem cessar.
            Outro importante aspecto da santidade do Padim Ciço é a oração. Rezava e ensinava o povo a rezar. A devoção a Nossa Senhora das Dores foi proposta por ele. O rosário da Mãe de Deus e o Ofício da Imaculada Conceição são as orações prediletas dos romeiros. Ele ensinava que nada é impossível à pessoa que reza, pois a oração é alimento da fé. Educando o povo na prática da oração, Padim Ciço despertava e fortalecia a fé do povo, para que este pudesse suportar com paciência os sofrimentos da vida. “Deus nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrimas sem consolação”, dizia ele.
            A integridade moral do Padim Ciço é outra qualidade que causa admiração. Nunca se ouviu dizer que tenha desrespeitado alguém. Aos doze anos de idade, influenciado pela leitura que fez da vida de São Francisco Sales, fez voto de castidade e o cumpriu por toda a sua longa vida. Era respeitado, gostava de respeitar e ensinava o valor do respeito. Homem de palavra, cumpria o que prometia, sem voltar atrás. Pastor zeloso, corrigia os errados, para que abraçassem o bom caminho. Era escutado porque tinha autoridade moral para denunciar as injustiças e os maus costumes.
            Tinha a paciência de escutar o clamor dos pobres e desvalidos. Passava horas atendendo os fiéis, tanto no sacramento da confissão quanto no aconselhamento. Para cada situação tinha uma palavra de conforto e ânimo. Seus conselhos salvaram muita gente. Recebia muitas cartas e a todas respondia com afeto paternal. Gostava de orientar os romeiros da Mãe de Deus em todos os assuntos da vida. A sua teologia era prática. Assim como Jesus, gostava de falar com simplicidade. Era tão simples que o povo gravava e guardava seus ensinamentos na mente e no coração.
            Com o passar do tempo o povo foi percebendo que estava diante de um santo, e sua fama foi se espalhando em todo o Nordeste. Muita gente deixou seus lugares de origem para morar no Juazeiro, terra da Mãe de Deus. As romarias foram aumentando, e a cidade foi crescendo. O número de romeiros aumentou mais ainda após o milagre da hóstia, ocorrido em 1889. Várias vezes, durante a comunhão, a hóstia se transformou em sangue na boca da beata Maria de Araújo. O povo logo entendeu que era um milagre, e vinha gente de toda parte para conhecer o padre, a beata e as circunstâncias do fato.
            Este milagre, que até hoje está sendo estudado por quem é de direito na Igreja, trouxe muito sofrimento ao Padim Ciço. Duas comissões de peritos foram formadas e enviadas a Juazeiro para verificar o fato. A primeira comissão afirmou ter sido milagre; a segunda desmentiu. O caso foi a Roma, bem como o Padim Ciço, que compareceu ao Tribunal do Santo Ofício para se explicar.
            Recebeu autorização para voltar ao Juazeiro e retomar o exercício do seu ministério, mas, posteriormente, o Bispo diocesano o suspendeu. Não tendo mais conseguido voltar ao exercício do ministério sacerdotal, o Padim Ciço, atendendo aos apelos dos amigos, ingressou na política. Como o tema de nossa abordagem é a santidade Padim Ciço, não abordaremos a dimensão política da vida do Padim Ciço.
            Mas é preciso considerar outro aspecto importante da santidade do Patriarca do Juazeiro: Durante toda a questão provocada pelo milagre da hóstia, ele se manteve obediente às determinações da Igreja. Teve a oportunidade de se rebelar, mas optou pela via da obediência; e morreu dizendo que, no futuro, a própria Igreja iria fazer a sua defesa. O processo de reconciliação que acontece em Roma sinaliza que esta profecia se cumprirá no tempo oportuno. É a esperança de todo romeiro da Mãe de Deus e do Padim Ciço.
            O Padim Ciço morreu com fama de santo, aclamado pelos mais pobres. Já antes de morrer, conta-se a realização de inúmeros milagres. Após sua morte, os romeiros passaram a pedir a sua intercessão junto a Deus. Desde então, incontáveis são os milagres alcançados graças à sua intercessão. Qualquer pessoa sensível ao sentimento religioso do povo, basta ir ao Juazeiro em tempos de romaria, para ver de perto o significado do amor ao Padim Ciço. Juazeiro respira religiosidade; é uma cidade que gira em torno da pessoa dele. Sem ele, Juazeiro não seria a cidade que é: Grande, bela, hospitaleira e marcada pela fé.
            O testemunho do Padim Ciço revela o significado da santidade na vida da Igreja: Entregar-se a Deus para ganhar a vida verdadeira. Entregar-se a Deus é doar-se aos irmãos, gastando a vida inteira no exercício evangélico da caridade. Fora da caridade não existe santidade, porque o que santifica a pessoa é a vivência do amor. Este é o que permanece para sempre. Para saber se uma pessoa é santa, basta verificar se vive segundo as bem-aventuranças do Evangelho de Cristo. Deus olha a caridade vivida, porque nela está a salvação. Cristo nos salva no amor.
            Conhecer, saber e ensinar a doutrina da Igreja é importante, bem como é importante ser dizimista, ir à Missa, receber os sacramentos, rezar o rosário, ser devoto dos santos e de Maria etc., mas se todas estas “coisas” não forem acompanhadas pela vivência do amor, de nada servem. Também na vida clerical podemos dizer o mesmo: O clérigo pode até rezar a Missa e a Liturgia das Horas, observar as rubricas na liturgia, fazer uma boa pregação, ensinar ortodoxamente a doutrina, administrar bem a paróquia, construir igrejas e demais prédios, usar batina e indumentárias belas e caras, mas se não demonstrar amor, de nada serve. O amor é a regra da missão.
            Tem crescido muito o interesse de muitos católicos pelas beatificações e canonizações. O culto aos santos é importante, mas não deve ocupar a centralidade da vida eclesial. O cristianismo não deve viver de devoções, apesar destas terem a sua importância. O mais importante é cada cristão procure ser santo.
É Jesus o centro da vida cristã e eclesial. Muitas vezes, corre-se o risco de reivindicar a canonização de leigos ou clérigos, que até que foram boas pessoas, mas que não viveram a caridade conforme o Evangelho. Não é porque uma pessoa, leigo ou clérigo, tenha ganhado notoriedade na mídia, tendo-se utilizado desta para o ensino da doutrina, que já possa ser considerada santa.
Por isso, mais do que a busca por canonização que visam incrementar o grande número de santos, a urgência do momento é que cada cristão católico procure seguir Jesus. A Igreja precisa de mais pessoas que aceitem o desafio da santidade, para que, assim, a Igreja possa dar testemunho de unidade, justiça e paz no mundo.
Tendo verificado o conjunto da vida do Padim Ciço, os sinais de santidade são evidentes. Antes mesmo de sua canonização, já é santo no coração dos romeiros da Mãe de Deus. Os pobres conhecem e sabem venerar os santos de Deus, e a Igreja reconhece isso (cf. o sensus fidelium na constituição dogmática Lumen Gentium, n. 12): O povo de Deus, guiado pelo Espírito Santo, não se engana na fé, e isto se manifesta por meio do sentir sobrenatural da fé. Por isso, nunca se deve pensar que o povo fiel não sabe das coisas de Deus. O Padim Ciço tinha consciência disso, mesmo antes do concílio Vaticano II.
Tiago de França

O dom da amizade


“Já não vos chamo de servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi do meu Pai” (Jo 15,15).
            Muito difícil é a vida de quem não tem amigos. A amizade é um dom que se recebe quando saímos do isolamento de uma vida medíocre e vazia. Na verdade, ela liberta a pessoa da mediocridade. Assim como um jardim bem cuidado, cheio de cores e de vida, a amizade confere e mantém o colorido da vida. Esta deixa de ser insossa e triste.
Os amigos nos recordam o valor do companheirismo, mesmo quando estão distantes. Quem tem amigos não experimenta a solidão, mesmo quando esta, às vezes, é necessária. A solidão enquanto pausa é uma necessidade dos espíritos evoluídos.
            A amizade possui algumas características que revelam a sua importância. A primeira delas é a gratuidade. Amigos não se compram, se conquistam. Aí aparece uma segunda característica: a empatia. Uma pessoa amarga revela que é mal resolvida, e provoca afastamento. A empatia requer suavidade, bom humor, destreza e altruísmo. Quem tem empatia atrai, porque causa no outro uma sensação de bem-estar. Aqui aparece outra qualidade valiosa: a proximidade. Esta resulta da empatia, porque provocada por aqueles que sabem enxergar o que o outro tem de bom e positivo.
            A alegria também caracteriza a amizade. Ninguém procura o outro para entristecê-lo. Pelo contrário, o abatimento e a tristeza conduzem ao outro para a partilha fraterna dos dilemas que provocam tal estado de ânimo. Quem tem amigos possui a possibilidade permanente de ser ouvido, pois a escuta também marca a experiência da amizade. Escutar é uma virtude que se torna rara, numa sociedade barulhenta e de muitos discursos. As pessoas tendem a falar mais e escutar menos, criando um clima de dispersão e irritação.
            O verdadeiro amigo é aquele que confia no outro. Não há amizade sem confiança. Esta deve ser recíproca e pautada na verdade. A confiança somente aparece quando se tem a certeza de que o outro não é falso. Onde há falsidade não há verdade e, consequentemente, não pode existir confiança. Na amizade o crescimento humano e espiritual é mútuo e sem fim. A partilha das alegrias e tristezas, conquistas e fracassos, numa relação confiante e sincera, é alegria para o coração e o espírito, é puro dom.
            A amizade também liberta a pessoa de outro terrível mal que fere a dignidade do ser humano: a autossuficiência. Uma pessoa autossuficiente é insuportável porque é ensimesmada e, portanto, cheia de si mesma. Comporta-se como se fosse uma divindade, bastando-se a si mesma. Por isso, vive uma ilusão, porque pensa que não precisa do outro nem do Outro (Deus).  
Os autossuficientes são orgulhosos e prepotentes, e mesmo quando se dão mal, querem aparecer como pessoas que meramente fraquejaram por um momento. Como diz o povo, querem ficar sempre por “cima da carne seca”. Trata-se de viver segundo as aparências, passando uma falsa imagem de si mesma. No fundo, tais pessoas sofrem muito. São um pouco masoquistas.
            Os amigos nos recordam também de que não se pode viver neste mundo sem a comunicação aberta e transparente com os outros. A comunicação é um fenômeno que acontece de várias formas. Os amigos sempre percebem quando algo está fora do lugar, porque a amizade imprime percepção do outro.
Quando este chega, por exemplo, ao suicídio, e ninguém percebe, então essa percepção do outro estava ausente ou bastante comprometida. O outro sempre expressa seus sentimentos e, muitas vezes, não o faz por meio da fala. A atenção ao outro é importante.
            Essa comunicação não precisa ser, necessariamente, constante. Na amizade não existe um tempo estipulado de comunicação. Cada experiência é única. Há amigos que passam o dia se comunicando; há outros que quase não se comunicam. A necessidade e o estilo de cada pessoa ditam a constância da comunicação.  
Quando a amizade é verdadeira, amigos que não se falam nem se veem com certa constância mantém a amizade normalmente; e quando se reencontram, é como se tivessem se encontrado no dia anterior. É algo muito gratificante.
            Querer o bem do outro é uma característica fundamental da amizade, é como que o alicerce sobre o qual está fundada. Este querer evita outro grande mal que tende a destruí-la: transformar o outro em objeto de satisfação dos próprios interesses. A pessoa interesseira não tem amigos.
Aproximar-se do outro somente para aproveitar-se dele é algo abominável. Claro que os amigos se ajudam, mutuamente. Mas dirigir-se ao outro somente quando há necessidade de alguma coisa é demonstração evidente de mera satisfação de interesse, e nada mais. É preciso estar atento aos que agem dessa forma. Não é bom alimentar esse tipo de comportamento.
            Este querer exige disponibilidade para servir. O outro precisa ter a certeza de que tem amigos para acompanhá-lo na caminhada da vida. A fé cristã revela que Deus é o grande Amigo. No versículo que introduz este artigo temos a explicação desta verdade. Jesus, Deus e homem verdadeiro, não nos trata como servos, mas como amigos. E o motivo é simples: Ele nos faz participar da vida divina. O amigo participa da vida do outro. Em Cristo Jesus, os amigos são irmãos na fé.
            Jesus é o amigo que nos revela os segredos de Deus. E o maior segredo divino é a misericórdia. Na amizade é possível exercê-la. Quem se aproxima de Jesus e com ele caminha, tem tudo na vida. A pessoa pode perder tudo, mas se tem amizade com Jesus, a vida está em segurança.
Ele é o modelo por excelência do amigo fiel, que jamais abandona aqueles que se abrem à sua presença e companhia. Sua amizade se manifesta na amizade sincera que seus discípulos têm, uns para com os outros. Portanto, o discípulo de Cristo é amigo das pessoas, e não o contrário. Quem semeia inimizade não participa da amizade com Jesus.
            Jesus é o modelo porque presenteia seus amigos com o dom da sua própria vida, dando-se a si mesmo na cruz e no partir do pão. Não existe presente melhor. Ele se doa e ensina a sermos doados. Amizade é doação de si mesmo para o bem do outro. Em um mundo marcado pela indiferença, a amizade é sinônimo de proximidade, ternura, atenção e cuidado. O amigo sempre deseja o bem, e fica feliz com a felicidade do outro. Por isso, a inveja destrói a amizade, porque provoca rivalidade, desembocando na falta de comunhão fraterna.
            Certos de que não caminhamos sozinhos na vida, os amigos são tesouros inestimáveis, que precisam de cuidado e valorização. Toda pessoa tem valor, e os amigos mais ainda. Diz o ditado popular que “mais vale ter amigos na praça do que dinheiro no caixa”. Isso significa que eles são um apoio seguro também nas necessidades materiais. Mas o maior socorro que o amigo nos presta é o do seu amor generoso e fiel. Na amizade o amor se manifesta. Jesus amava os seus amigos (cf. Jo 11,5), e este amor o confortava, reanimava e auxiliava na missão.
            Quem deseja cumprir fielmente a sua missão neste mundo precisa da ajuda dos amigos. O mesmo se diga da busca pela felicidade: Ninguém é feliz sozinho. A felicidade está intimamente ligada à amizade. Procurar o próprio bem-estar ignorando bem do outro é atitude de gente egoísta, e no egoísmo não existe felicidade. Os egoístas têm colegas, não amigos.
Em todo lugar encontramos pessoas abertas e disponíveis, empáticas e apreciadoras de uma boa amizade. Há também as que não querem amizade. Quanto a estas, a gente deixa que sigam seu caminho, porque a amizade acontece na e para a liberdade. Quanto mais liberdade, mais autêntica e duradoura a amizade.
Nossos verdadeiros amigos nos ajudam a ser pessoas melhores, mais humanas e fraternas. Para isso, são sinceros e sempre nos falam a verdade. Por mais dolorosa que seja, é a verdade que liberta. A amizade é espaço de verdade e liberdade. Sejamos, pois, amigos sinceros, livres e generosos. O mundo está muito necessitado de relações pautadas na amizade.

Tiago de França