quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre a polêmica em torno da fala do Papa Francisco em relação aos homossexuais



            Muitas das reações negativas sobre a fala do Papa Francisco em relação aos homossexuais são um tanto sintomáticas. No seio da Igreja Católica encontramos um grupo significativo de pessoas que, sempre que tem oportunidade, polemiza as falas do Papa Francisco. Quem tem apreço pela verdade também não pode perder a oportunidade para desmascarar essa gente.

A fala do Papa, veiculada em inúmeros jornais, aponta para duas necessidades: deve-se acolher o homossexual, e tal acolhimento, na sociedade civil, deve ser promovido por leis que o protejam dos ataques dos homofóbicos. Discute-se se o Papa apoia ou não a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Todos conhecem a doutrina tradicional da Igreja no que se refere ao matrimônio. O Papa mudou essa doutrina? Não! Então, por que a polêmica?

A Igreja Católica regula a sociedade, com sua doutrina e com a lei canônica? Não! Essa não é a sua missão. As sociedades têm suas constituições, leis e costumes. No Brasil, o Estado é laico. A laicidade do Estado promove a liberdade religiosa e a tolerância, mas não confere a nenhuma denominação religiosa o poder de regular a vida social. No passado, a Igreja participava de muitos acordos que regulavam a ordem social, mas hoje não existe mais isso. Os Poderes da República são livres para organizar a vida social. Pode a Igreja opinar, criticar, denunciar e se opor a tudo aquilo que contraria a Lei de Deus? Claro que pode!

Se o Papa concordar com a necessária criação de leis que protejam os homossexuais, estaria ele contradizendo a doutrina da Igreja? Claro que não! Há um princípio evangélico que rege a vida cristã: da igual dignidade dos filhos de Deus. O heterossexual é superior ao homossexual? Quem responde positivamente a essa questão, nega o princípio da igual dignidade dos filhos de Deus, bem como o princípio da igualdade que consta no art. 5º, caput, Constituição da República. O homossexual é menos pessoa que as demais pessoas? Claro que não! Fazer tais afirmações é promover o que chamam de "cultura gay"? Claro que não! O Papa não está promovendo a "cultura gay", mas está preocupado com a dignidade das pessoas. São coisas diferentes.

A nossa época é marcada pela necessidade da explicação do óbvio. Mas por que nos encontramos nessa vergonhosa situação? Porque faltam estudo, leitura e interpretação de texto. Faltam também respeito, compreensão, acolhimento, tolerância e alteridade. O que uma pessoa ganha ao distorcer a fala de um Papa, ou de qualquer outra pessoa, com o intuito de prejudicar e diminuir? Absolutamente, nada! Dentro e fora da Igreja, precisamos crescer em maturidade e conhecimento. A ignorância gera conflitos desnecessários. Os críticos do Papa poderiam se dar o trabalho de, pelo menos, ler todos os seus textos, para descobrir que o Papa tem procurado, insistentemente, defender e promover a dignidade dos pobres e das demais categorias de pessoas excluídas.

Por fim, é preciso considerar que o cristão pode e deve denunciar as injustiças que se cometem neste mundo. E esta é a razão que me levou a escrever esse texto. Uma pessoa até pode não se identificar com o fato de alguém ser homossexual, mas jamais pode se utilizar disso para julgar e condenar. É possível que se reprove determinados excessos e desvios cometidos por heterossexuais e homossexuais, em todos os âmbitos, mas é inaceitável que se utilize da doutrina da Igreja para julgar e condenar os homossexuais. Não foi para isso que a doutrina foi criada. A doutrina condena erros, não pessoas. Somente Deus tem o poder de julgar uma pessoa, e este poder não foi conferido a ninguém (cf. Mt 7,1-2).

Tiago de França

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Maria: modelo dos servidores do Evangelho

 


      Neste dia em que a Igreja católica no Brasil celebra a solenidade de Nossa Senhora Aparecida, a liturgia nos oferece o texto de Jo 2,1-11, que narra a festa de casamento em Caná da Galiléia. Para essa festa foram convidados Jesus, seus discípulos e sua mãe.

O texto conta que o vinho da festa acabou, e Maria logo percebeu. Ela sabia que Jesus poderia fazer alguma coisa, pois conhecia o seu filho. Interessante essa percepção de Maria, prova de sua sensibilidade. Aqui já podemos pensar sobre o valor da sensibilidade para a vida cristã.

Nossos dias são marcados pela insensibilidade, que manifesta o terrível pecado da indiferença. Quem tem fé em Jesus não pode ser insensível à dor do outro, porque o encontro com Jesus é encontro com o outro, que existe em determinado contexto. A falta do vinho simboliza a ausência de amor, perdão, solidariedade, justiça, mansidão, paz, e de tudo o que é necessário para vivermos dignamente.

O discípulo de Jesus, guiado pelo Espírito do Senhor, consegue identificar a falta do vinho, e não fica parado, esperando que alguém faça alguma coisa. Maria não ficou parada, mas foi até Jesus. Ela sabia que Jesus não iria ficar indiferente.

Olhando para os discípulos de Jesus, Maria diz: "Fazei o que ele vos disser". É como se dissesse: "Fiquem atentos, porque Jesus vai fazer alguma coisa para que a festa possa continuar". Então, Jesus age, providenciando vinho novo para a festa: 600 litros de vinho! O responsável pela organização da festa ficou admirado, porque experimentou do vinho novo, de boa qualidade. E a festa continuou, sem que o noivo soubesse de onde tinha saído tanto vinho.

O vinho novo é símbolo da renovação e da abundância. O desejo de Deus é que seus filhos possam se renovar sempre, mudando a mentalidade, aceitando o novo que transforma. Em Cristo, nasce o novo homem, porque "as coisas antigas já se passaram". Esse novo homem é o vinho novo presente no mundo, que causa alegria e festa. O cristianismo não é a religião da tristeza, mas da alegria e da festa.

Jesus realiza o seu primeiro sinal em uma festa de casamento. Isso é muito significativo, porque se distancia do formalismo que muitas vezes muitos cristãos querem imprimir no cristianismo. Os sinais de Deus se manifestam no cotidiano da vida comunitária. Jesus sinaliza para uma presença divina marcada pela simplicidade e pelo amor que não deixa nada faltar.

O evangelista faz questão de afirmar que diante da manifestação do sinal operado por Jesus, os "discípulos creram nele". É para crer em Jesus que os sinais são realizados. O mais importante não é o sinal, mas a fé em Jesus. Os sinais de Jesus não possuem um fim em si mesmos, mas apontam para a necessidade da fé. Pela fé, muitos outros sinais são realizados; pela fé, a comunidade cristã entra em comunhão com a Trindade, e a festa do Reino se torna realidade já neste mundo, e de forma definitiva no mundo futuro.

Tiago de França

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A missão e o desapego

 


“Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. No entanto, vosso Pai celeste os alimenta. Será que vós não valeis mais do que eles?”
(Mt 6,26)

            Muitas são as características e as exigências da missão, porque esta não se realiza de qualquer jeito, mas requer preparação, discernimento, coragem e desapego. Nestas breves linhas, trataremos do significado e importância do desapego em vista da missão do cristão. Desapego é caminho para a liberdade. O missionário precisa ser livre para, de fato, ser presença do Deus da liberdade neste mundo. Trata-se de um desafio imenso, porque neste mundo capitalista as pessoas são induzidas ao apego, principalmente no que se refere aos bens materiais.

            Para relacionar-se bem com Deus e, assim, viver uma intensa experiência com Ele, é necessário desapegar-se de tudo aquilo que prende e aliena. Desapegar-se de si mesmo parece ser uma das formas de desapego mais exigente. Há ideias e modo de ser que, muitas vezes, não correspondem à vontade de Deus. Os pensamentos de Deus são diferentes dos nossos (cf. Is 55,8); por isso, é necessário analisar e discernir os pensamentos que povoam a mente, para saber se há sintonia com o que Deus espera e exige. O missionário é alguém que projeta a sua vida considerando o projeto de Deus, pois não é Deus que deve se submeter ao que o missionário planejou para a sua vida.

            Há modos de ser que dificultam a vida do missionário, tornando-o indiferente em relação às pessoas, especialmente os pobres e esquecidos. O ideal de vida do missionário deve ser o de Jesus. Ou seja, é necessário adotar o estilo de Jesus, marcado pela simplicidade, humildade, disponibilidade, despojamento, abertura, solidariedade, compreensão, ternura e amor. Desapegar-se de um estilo de vida egoísta e medíocre é fundamental para viver uma vida autenticamente missionária. O egoísmo é incompatível com a missão, porque uma pessoa egoísta somente pensa em si mesma, e corre o risco de transformar a missão em um instrumento de satisfação de seus próprios interesses.

            A missão do cristão nasce com a experiência de Jesus e é continuada por seus discípulos. Quem se dispõe a seguir Jesus se torna missionário e participa da sua missão. Isso significa que a missão nasce com Jesus, deve ser vivida com Jesus, aponta para Jesus, e tem como razão de ser o próprio Jesus. Falar de Jesus é falar do Reino de Deus, porque a sua missão está em função do Reino. Foi para inaugurar o Reino que foi enviado. Portanto, pelo batismo cada cristão participa da missão de Jesus. Assim, não pode o cristão realizar a missão de acordo com seus pensamentos e anseios, mas deve partir do Evangelho, observando a pedagogia de Jesus.

            O desenvolvimento da missão exige proximidade e deslocamentos, porque a missão é movimento. Jesus não realizou a sua missão somente pregando no Templo e nas sinagogas. A sua forma de ser missionário era dinâmica, marcada pelo contato com as pessoas: vivia caminhando com elas e as visitando. Seus primeiros seguidores não o conheceram no Templo ou na sinagoga, mas nos caminhos que conduziam aos mais simples do povo. Por isso, o missionário deve desapegar-se do comodismo. Certamente, é mais cômodo esperar que as pessoas procurem o missionário, mas Jesus ensinou que este deve procurá-las, indo ao encontro delas. É necessário enfrentar as resistências que aparecem, capazes de impedir o missionário de sair ao encontro das pessoas.

            Muitas vezes, a missão exige que o missionário se distancie de sua própria família, para viver distante, próximo daqueles para os quais foi enviado. Esta saída para conhecer e viver em outros lugares, com outras culturas, exige desapego. É verdade que o missionário não deve esquecer, nem perder o vínculo com a sua família biológica, mas é verdade também que a missão lhe oferece uma família mais ampla, para cuidar e deixar-se cuidar. É necessário cortar o cordão umbilical e partir, confiando no chamado de Deus e na Providência divina, que a todos assiste, misteriosamente.

            Outro tipo de apego a ser superado para o cristão ser verdadeiramente missionário é o apego aos cargos. No seio da Igreja, algumas pessoas exercem a liderança, ocupando alguns cargos: coordenam grupos e comunidades (párocos, administradores, vigários, coordenações diocesanas e paroquiais etc.); outros são chamados a exercer os inúmeros ministérios presentes na vida da Igreja. Todos os cargos e ministérios devem estar em função da missão; do contrário, transformam-se em instrumentos de envaidecimento e autoritarismo.

A teologia dos ministérios é clara ao ensinar que, na vida eclesial, os que ocupam cargos e ministérios são chamados a servir. Infelizmente, os desvios aparecem quando as pessoas se servem dos cargos e ministérios para serem vistas como influentes, bem como para gozar de possíveis privilégios. Quando isso ocorre, perde-se o sentido da missão, e o “mundanismo espiritual” (expressão muito utilizada pelo Papa Francisco) passa a dominar a vida eclesial. Desapegar-se das ambições e/ou pretensões contrárias ao espírito de serviço é fundamental para o fiel cumprimento da missão.

Por fim, e não menos importante, é preciso desapegar-se de lugares e pessoas. A missão faz com que o missionário se relacione com muitas pessoas, e com elas estabeleça vínculos de amizade. Isso é bom, justo e necessário. Sem amizade a missão não se realiza, porque o missionário não é um despachante, mas alguém que se envolve com os dilemas das pessoas, disponibilizando-se a ajudá-las. O apego às pessoas está no fato de não conseguir se libertar delas, criando uma espécie de dependência. Aí já não temos amizade, mas prisão. O missionário não pode perder a liberdade; do contrário, não consegue evangelizar. Permanecer preso às pessoas e grupos é prejudicial à missão, porque prejudica o anúncio do Evangelho. Quem se prende a pessoas e grupos corre o risco de falar somente o que lhes agrada, ocultando a verdade do Evangelho.

A disponibilidade é uma das regras da missão. Quem assume a missão se coloca à disposição da missão, sendo nomeado e enviado para os lugares nos quais a necessidade exige determinado perfil de missionário. Havendo missionário suficiente para atender à demanda da missão, o ideal é atender às exigências de determinados ofícios e lugares, no sentido de escolher o missionário “certo” para determinado lugar, ou ofício. Isso evita que determinado lugar, ou cargo tenha um missionário totalmente incompatível com as respectivas exigências. Quando isso ocorre, o povo de Deus sofre as consequências.

As obras e ofícios pertencem à Igreja, instrumento a serviço da missão de Jesus, e exigem pessoas capazes e disponíveis para servir. Este é o ideal a ser buscado e vivido. Fora deste ideal, a Igreja pode ser transformada em uma empresa, cujos cargos e ministérios são disputados, gerando conflitos e escândalos. Desapegar-se de lugares e não cair na tentação de exigir determinados lugares, cargos e ministérios são virtudes que revelam liberdade e consciência da missão. Trata-se de um processo de discernimento e um caminho que pode ser trilhado com o auxílio da graça de Deus, sem a qual não existe missão.

Tiago de França