quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Adeus ano velho, feliz Ano Novo!


        Muita gente não conseguiu chegar ao final de 2020. Os números oficiais falam que já são mais de 194 mil vítimas fatais da Covid-19, sem contar as demais vítimas da violência, do trânsito, de outras doenças e de outras ocorrências. A pandemia segue matando milhares de pessoas em todo o mundo, e parece longe de acabar. Mesmo com a vacinação, a Covid-19 continuará matando muita gente. O cenário é de desespero e desolação, exceto para quem ainda não acredita que estamos em uma pandemia. Infelizmente, muitos iludidos imaginam que tudo não passa de invenção da mídia, apesar de terem notícia das mortes de pessoas próximas.

            A pandemia está revelando o nível de consciência e responsabilidade das pessoas. A cultura negacionista é assimilada por inúmeros brasileiros: alguns negam a existência da pandemia, da mesma forma que negam que existiu a ditadura militar no Brasil; outros negam a eficácia das vacinas contra a Covid-19, recusando-se a se vacinar e influenciando outros a fazerem o mesmo. Nestes dias, por ocasião da celebração do Natal e da virada de ano, muitas pessoas estão se aglomerando, expondo-se ao vírus; e assim a pandemia vai se estendendo e se agravando, ceifando inúmeras vidas.

            A política e a economia também foram afetadas pela pandemia. Nos EUA, Donald Trump caiu, e renovou a esperança de dias melhores para os norteamericanos. O presidente eleito parece mais sensato, sensível e aberto à diversidade das culturas e a um jeito mais decente de fazer política. A democracia daquele país saiu fortalecida das eleições deste ano. No Brasil, a maioria dos eleitores optou pela moderação. Aos poucos e com muito sofrimento, parcela dos brasileiros está descobrindo que os radicalismos, o conservadorismo e o falso moralismo destroem a democracia e geram uma sociedade escandalosamente intolerante, preconceituosa e condenada ao fracasso.

            Economicamente, o real segue sendo desvalorizado; os preços dos alimentos aumentam cada vez mais; o desemprego atingiu mais de 14 milhões de pessoas; o endividamento das empresas atingiu recorde de 60,5% do Produto Interno Bruto; nos últimos quatro anos, segundo o IBGE, o Brasil fechou mais de 316 mil empresas; os preços dos combustíveis continuam subindo; enfim, a pandemia piorou a situação econômica que já estava ruim. Com o fim do auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional, a tendência é piorar. O auxílio reduziu a pobreza em 23%. Isso significa que o seu término aumentará o nível de pobreza. Em 2019, o país alcançou recorde de 13,5 milhões de miseráveis.

            Essa é a nossa situação. Contra as estatísticas não há ideologia que possa criar outra realidade. A violência dos discursos possui a finalidade de esconder a realidade. Não é possível esconder o número crescente das vítimas do feminicídio, do racismo, da violência policial, do tráfico de drogas e do crime organizado, das milícias e da corrupção sistêmica. Esta permanece avassaladora, na política e na sociedade. Essa realidade não é transitória nem acidental, mas permanente e, em muitos aspectos, integra projetos de poder pensados e implementados por gente criminosa, detentora do poder político e econômico. A situação do Brasil retrata fielmente o poder da elite econômica que controla a economia e a política.

            Mas a esperança permanece viva em muitos corações. Aos que professam a fé em Jesus, é preciso recordar esta palavra do apóstolo Paulo: “A esperança não decepciona, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Essa esperança nos impulsiona na caminhada da vida, e o amor de Deus nos sustenta. Assim, pacientes e perseverantes, praticando a justiça e o amor, somos capazes de suportar e vencer esse momento sombrio da história da humanidade. É necessário despertar.

            No amor somos fortes e vencedores. Livres da indiferença e firmes na solidariedade, tudo podemos superar. O Senhor permanece conosco e nos ajuda na travessia.

Feliz Ano Novo!

 

Tiago de França

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A Palavra se fez carne

 


                                         “A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)

            Anualmente, celebra-se a solenidade do Natal do Senhor. Para aqueles que não vivem em comunhão com o mistério de Cristo, 25 de dezembro é feriado, dia de muita comida e bebida, e de trocar presentes. O mercado ofuscou o verdadeiro brilho do Natal. Apesar da pandemia do novo coronavírus, milhões de pessoas continuam enxergando o Natal como uma excelente oportunidade para comprar e vender. E assim acontece, anualmente.

            Entre os católicos, há os que raramente participam da liturgia da Igreja. Mas costumam aparecer para participarem da Missa de Natal. Muitos retornam na Missa de vésperas de Ano Novo, ou na do dia 1º de janeiro. Trata-se de um jeito esporádico de ser católico. Há uma consciência maior sobre o sentido do Natal entre os que celebram o mistério pascal de Cristo durante todo o ano litúrgico. Estes sabem que não se celebra o aniversário de Jesus, mas o mistério da Encarnação da Palavra, Jesus, o Messias.

            Jesus é a Palavra de Deus, que estava com Deus desde toda a eternidade; é a vida dos homens, luz que brilha nas trevas (cf. Jo 1,4-5). Em Cristo Jesus, temos a encarnação do próprio Deus, que veio armar sua tenda no meio do mundo. Não veio a passeio, mas para permanecer. Ele é o Emanuel, Deus conosco (cf. Mt 1,23). A vinda de Jesus é a prova incontestável do amor de Deus, que jamais abandona o seu povo. O Messias foi enviado para oferecer a salvação a toda a humanidade. Ele é a expressão viva do desejo de Deus: libertar o ser humano do pecado e do poder da morte, fazendo surgir uma humanidade nova. O Messias inaugura a nova e eterna Aliança.

            Jesus, Palavra de Deus, armou a sua tenda no meio dos pobres (cf. Lc 2,6-7). Nasceu pobre não por acaso, mas porque desde os tempos de Abraão, Deus escolheu um povo frágil e pobre. Do Gênesis ao Apocalipse, as Escrituras falam da predileção divina pelos pobres. Deus ama toda a humanidade, mas seu amor se dirige especialmente aos pobres e sofredores. Estes são mais vulneráveis e, por isso mesmo, carecem de mais atenção e cuidado. A pobreza do Messias é a riqueza de todo o povo de Deus. Contemplando o Messias na manjedoura, os pobres e sofredores compreendem o sentido do Natal. No presépio natalino, o Senhor nos diz: “Eis o Messias, vosso Salvador. Ele veio para vós”.

            Jesus nasce hoje entre os pobres e sofredores de todos os povos e nações. No Brasil, Ele permanece e sofre na vida dos mais de 14 milhões de desempregados; dos familiares das vítimas da Covid-19; dos que se encontram internados nos hospitais e os que estão desenganados pelos médicos; dos familiares das vítimas da violência, principalmente as vítimas de policiais criminosos; das crianças e idosos explorados; dos que estão doentes, psicologicamente, sofrendo com depressão, ansiedade, síndromes e traumas; dos injustiçados, vítimas da arbitrariedades dos poderosos (empresários, juízes, políticos, patrões desonestos etc.); dos que são explorados por líderes religiosos mercenários etc. Todos esses e tantos outros sofredores pertencem à tenda do Senhor. Todos estão sob o olhar misericordioso e amoroso de Deus. Ai daqueles que ferem a dignidade desses filhos e filhas de Deus!

            A Igreja tem consciência de que não pode celebrar o Natal de Jesus ignorando os pobres e sofredores. A liturgia solene do Natal nos fala de encarnação, ou seja, da participação na carne de Cristo, e de Cristo na carne humana. Os pobres e sofredores são a carne de Jesus Cristo. Sem comunhão com a carne de Cristo não há Natal, mas aparência de Natal. Essa comunhão vai além das cestas de Natal dadas aos pobres, que também são importantes, pois muitos passam fome. Esta exige alimento, imediatamente. Mas também exige geração de emprego e renda. A comunhão com a carne sofrida de Jesus não é experiência desligada do necessário encontro com os pobres. Não se adora a carne sofrida de Jesus somente na adoração eucarística, mas, sobretudo, nas feridas abertas dos que sofrem.

            O Espírito do Senhor, que fecundou o ventre da Virgem Maria, torna o cristão capaz de viver em comunhão com a carne sofrida de Jesus, o Messias. Esse mesmo Espírito liberta da indiferença, do obscurantismo e da desunião. A celebração da encarnação da Palavra deve levar o cristão a despertar para a construção de um mundo novo, no qual a justiça do Reino de Deus ocupe lugar central. Sem essa justiça, a paz não é possível. Que o Natal de Jesus desperte o coração de todo cristão para o compromisso com essa justiça, que exige o feliz encontro com os sofredores deste mundo!

Feliz Natal!

Tiago de França

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

A fé em Jesus e a vacina contra a Covid-19

 

(Foto: Istock foto)

       No seio de inúmeras Igrejas cristãs, muitas pessoas têm dito que não se vacinarão contra a Covid-19. Muitas são as fake news que circulam nas redes sociais, levando muita gente desinformada a crer que a vacina é um mal, não um bem à saúde humana. A desinformação causa tanto mal quanto o novo coronavírus.

            Pessoas desinformadas acreditam nas várias mentiras que se falam sobre a vacina, oriunda de vários laboratórios renomados. Dentre as mentiras se destacam as seguintes: afirmam que ela contém o vírus HIV; que causa paralisia em todo o corpo; que transforma a pessoa em um jacaré; que transforma a pessoa em homossexual; que causa impotência sexual; que faz cair o cabelo; que causa cegueira; que provoca alergia e problemas cardíacos; que é usada pelo governo para matar, em primeiro lugar, os aposentados; que a vacina chinesa é a mais perigosa, porque a China é comunista (a vacina chinesa contém o vírus do comunismo!) etc. Muitos outros absurdos sobre a vacina circulam nas redes sociais.

            É conhecida a posição do presidente da República, que nega a eficácia da vacina, principalmente a chinesa, e que já afirmou que não irá se vacinar. É algo inédito na história da República brasileira, porque nunca tivemos um presidente que tenha sido contrário a nenhum tipo de vacina. Essa posição do presidente também influencia muitos desinformados. É claro que qualquer pessoa, incluindo o presidente, pode se negar a se vacinar. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a vacinação contra a Covid-19 deve ser obrigatória, mas nenhum cidadão será forçado a se vacinar.

            Em tempos sombrios, marcados pelo obscurantismo, é preciso afirmar o óbvio: a finalidade da uma vacina não é provocar doenças, mas preveni-las. Desde a infância, todo brasileiro recebe inúmeras vacinas. Nunca houve um movimento tão forte, contrário à vacinação. Se o presidente da República fosse favorável à vacinação, e tivesse se empenhado para que a mesma se efetivasse da forma mais ágil e organizada possível, como ocorre em vários países do mundo, principalmente na Europa, certamente, no Brasil, a confusão em torno da vacina não existiria.

            O problema é que o presidente e o governador de São Paulo transformaram a vacinação numa questão política, visando as eleições de 2022. Como o governador aderiu à vacina chinesa, o presidente passou a se opor, principalmente, à “vacina comunista”. Essa situação é vergonhosa e lamentável, porque leva a crer que tanto o presidente quanto o governador não estão preocupados, em primeiro lugar, com a saúde das pessoas, mas se utilizam da vacina para se promover no cenário político nacional. Uma das evidências disso é o pedido que o governador fez ao país comunista, para que a vacina, no Brasil, seja denominada “vacina do Brasil”.

            Ninguém precisa ser oposição política ao presidente para constatar essa realidade. Não é novidade para ninguém que o presidente adota o negacionismo em questões científicas. Para o presidente e seus seguidores/admiradores, a palavra da ciência não tem muito valor. A existência da pandemia, a periculosidade do novo coronavírus, a produção e eficácia da vacina são evidências científicas. Contra tais evidências, o senso comum não tem nenhuma força, porque são realidades devidamente estudadas e comprovadas. O bom senso exige o reconhecimento daquilo que a ciência consegue comprovar, pois graças a esta a Covid-19 poderá ser controlada e erradicada.

            O que a fé em Jesus tem a dizer sobre a ciência e a confusão gerada pelo negacionismo? A Igreja Católica não se opõe à ciência; pelo contrário, inúmeros sacerdotes e leigos se dedicaram às pesquisas científicas. A história da Igreja comprova isso. Há um diálogo possível e fecundo entre fé e ciência, porque são realidades que não se excluem. Recentemente, a Congregação para a Doutrina da Fé manifestou-se por escrito, reconhecendo a possibilidade de se receber vacinas contra a Covid-19 que utilizem as linhagens celulares de fetos abortados na sua pesquisa e processo de produção.

            Considerando que a Igreja prega o Evangelho de Jesus Cristo, cujo núcleo fundamental é a promoção e defesa da vida e da dignidade da pessoa humana, o Papa Francisco recordou a necessidade de as vacinas serem acessíveis para todos, especialmente aos mais pobres e vulneráveis. Na audiência do dia 19 de agosto deste ano, disse o Papa: “Seria triste se a prioridade da vacina contra a Covid-19 fosse dada aos mais ricos. Seria triste se isso se transformasse na prioridade de uma nação e não fosse destinado a todos”. No início de 2021, toda a população do Estado do Vaticano será vacinada, incluindo, obviamente, o próprio Papa Francisco.

            A fé em Jesus não impede que uma pessoa seja vacinada. Afirmar o contrário seria um absurdo. Portanto, um cristão afirmar que não pode ser vacinado por causa da sua fé em Jesus, é algo sem sentido. Também é reprovável a atitude de todo e qualquer líder religioso que induz as pessoas a não se vacinarem. Tal atitude é passível de verificação criminal, porque coloca a vida das pessoas em risco. É gravemente ilícita a atitude de quem, disseminando mentiras, induz as pessoas a não se vacinarem. Quando um líder religioso se atreve a isso, também incorre em pecado grave. O cristão deve aderir à verdade, não à mentira, principalmente quando esta coloca em risco a vida das pessoas.

            Outra atitude reprovável ao cristão é não se vacinar pensando que, uma vez se contaminando, Jesus certamente realizará a cura da Covid-19. Jesus tem poder para curar uma pessoa? Claro que sim! Mas isso é justificativa para recusar a vacina? Claro que não! Os pais podem, em nome da fé em Jesus, deixar de vacinar seus filhos? De modo algum! Confiando na fé que tem em Jesus, pode o cristão se expor ao mal? Quando o diabo pediu para Jesus se lançar no precipício, argumentando que Deus enviaria seus anjos para protegê-lo, eis o que o Mestre respondeu: “Também está escrito: Não porás a prova o Senhor teu Deus” (Mt 4,7).

            Milhares de cristãos já morreram por Covid-19 em todo o mundo. Muitos eram ministros ordenados, homens ungidos por Deus para o apostolado na Igreja e no mundo. Por que a fé dessas pessoas não as livrou da morte? Os teimosos podem argumentar que a fé dessas pessoas não era suficientemente grande! Esse tipo de julgamento não convém fazer. Somente Deus pode julgar a fé das pessoas, porque somente Ele conhece o coração humano. Muitos desses teimosos hoje estão sepultados, porque não se preveniram: pensavam que a Covid-19 seria incapaz de tirar-lhes a vida.

            A fé cristã rima com bom senso, prevenção e cuidado. A vida humana é frágil e exige cuidado permanente. Toda pessoa precisa cuidar da saúde física e mental. A fé em Jesus não dispensa, nem substitui esse cuidado. Cuidar-se é ser responsável por si mesmo e pelos outros. Essa responsabilidade não pode ser transferida para Deus. O Senhor dotou o homem de inteligência, sensibilidade e disposição para a promoção e defesa da vida humana.

A vacina contra Covid-19 é fruto da inteligência humana, capaz de encontrar solução para os problemas que afligem toda a humanidade. Neste momento da história, crer e vacinar-se são imprescindíveis para a preservação da vida. A vida está em primeiro lugar. Toda crença que fere e ameaça a vida é incompatível com a mensagem do Evangelho de Jesus. Deus acredita no homem, e este deve aprender a confiar na capacidade que tem para colaborar com a ação salvífica de Deus.

Tiago de França

domingo, 20 de dezembro de 2020

Maria e o mistério do Natal

 


“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)

            O personagem central do mistério da Encarnação é Jesus, o Messias. Mas Maria possui um lugar importante nesse mistério. O texto para nossa meditação (cf. Lc 1,26-38) traz alguns detalhes reveladores, já no momento da anunciação. O anúncio do Anjo é uma boa notícia para a vida de Maria, mulher que encontrou graça diante de Deus. As primeiras palavras do Anjo falam de alegria e de graça. A escolhida por Deus deve se alegrar, porque é cheia de graça para viver uma missão sublime: conceber e dar à luz a Jesus, o Santo de Deus.

            Antes da ação do Espírito que a fecunda, o Senhor já estava com ela. Maria é mulher do povo de Deus, conhecedora de promessas divinas. O Anjo fala de alegria, porque nela estava se realizando tais promessas. Os pobres do povo de Deus esperavam o Messias, e o anúncio de sua vinda revela bem isso: o Anjo foi enviado a Nazaré, uma cidade de pouca importância da Galileia. Maria, virgem prometida em casamento, não era uma mulher rica, nem ocupava posição importante na sociedade judaica da época. Aliás, a mulher não tinha papel importante numa sociedade de cultura patriarcal.

            Após ter falado da alegria, o Anjo fala do medo: Não tenhas medo, Maria... Ele a chama pelo nome. Na Bíblia, o nome identifica a pessoa e sua missão. Pelo nome, o Senhor se dirige diretamente, sem meias palavras. Ele explica o que vai acontecer, revelando o seu plano de amor. O Senhor a tornou digna de conhecer seus desígnios. Maria foi a primeira mulher que conheceu o significado da nova e eterna Aliança. O Senhor envia o seu Anjo com a missão de anunciar, e este anúncio contempla o necessário entendimento daquilo que Deus quer e planeja fazer.

            O Anjo fala do medo porque Maria, na sua simplicidade e pequenez, ficou perturbada com as suas palavras. E o texto segue dizendo que ela começou a pensar sobre o significado da saudação. As coisas do Senhor podem ser pensadas, porque a pessoa humana é dotada dessa capacidade. Pensar sobre o significado da missão que o Senhor propõe é ação imprescindível, porque ninguém pode responder ao chamado divino sem que tenha alcançado a necessária clareza do projeto de Deus. Maria alcançou o entendimento da sua bela missão.

            Quem é o filho de Maria? O Anjo responde que ele é Jesus, Filho do Altíssimo, Santo de Deus e aquele que reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim. Ela compreende bem quem é Jesus, porque conhecia a história do povo de Deus, que falava da promessa do Messias. A sua questão foi: Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum? Ela não convivia com José, seu futuro esposo. Era prometida em casamento. Maria esperava o Messias e vivia a promessa de casamento. Portanto, conhecia bem o significado da promessa. Maria é portadora da promessa divina e, simultaneamente, da sua realização.

            Com Maria, o cristão aprende a confiar nas promessas de Deus, porque sabe que Ele as cumpre. Ao aceitar e cumprir a missão que lhe foi confiada, Maria ensina a observar a vontade de Deus. Tendo compreendido a proposta divina, ela não resiste: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra! Ela é a serva do Senhor. Não é serva de nenhum poder opressor, nem dos caprichos dos homens, mas servidora do Altíssimo Senhor. Ela se tornou a mãe do Rei que reinará para sempre; Rei que passou a ser venerado e adorado por inúmeros povos, em todas as épocas e lugares.

            Eis aqui: expressão de quem se coloca à disposição, sem reservas e sem medo. A disponibilidade de Maria é exemplo para todos os que desejam seguir Jesus. A missão a exige, e faz o discípulo entrar na dinâmica do discipulado. Sem permanecer à disposição, o discípulo não aprende e, consequentemente, não é capaz de assumir os desafios da missão. Em tempos de pandemia do novo coronavírus, o que seria da humanidade sem esta disponibilidade que faz tanta gente se colocar a serviço dos outros?... A solidariedade somente existe quando as pessoas estão disponíveis para os outros.

            O texto também fala de Isabel, parenta de Maria, e mãe do profeta João Batista. Considerada estéril e de idade avançada, Isabel já estava grávida. O Anjo apareceu a Maria no sexto mês da gravidez de Isabel. Para fazer com que Maria compreendesse o poder de Deus, o Anjo faz questão de dizer que para Deus nada é impossível. Não há nada neste mundo que impeça a realização dos desígnios do Senhor. As pessoas são livres para aceitarem ou não o projeto de Deus, mas a sua realização acontece, independentemente da vontade e da ação humanas. Deus tem seus caminhos e, na liberdade, cumpre o que promete e realiza o seu Reino.

            Os que confiam no Senhor sabem que Ele é assim. Por isso, nele confiam e esperam. Por mais sombrios que sejam os dias atuais, o Senhor permanece presente, enviando seus anjos para anunciar a Boa Notícia da Libertação. Mais do que em outras épocas, as mulheres e homens de hoje precisam ser libertados, e precisam, também, aprender a trilhar o caminho da liberdade. Este é o caminho do Senhor, porque o Seu desejo é que surja uma nova humanidade, constituída por mulheres e homens livres, respeitados em sua dignidade, praticantes da justiça do Reino, única capaz de gerar a paz de que tanto precisam. Que o SIM de Maria inspire tantas outras pessoas a ousarem professar o mesmo SIM! Assim seja.

Tiago de França

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O itinerário da conversão

 


“Que é o homem, para que nele penses, e o ser humano, para que dele te ocupes?” (Sl 8,5)

            A conversão é uma exigência fundamental do seguimento de Jesus. Partindo dessa premissa, a presente reflexão visa oferecer algumas provocações sobre o tema da conversão na vida cristã e eclesial. Essa indagação do Salmo 8, transcrita acima, revela a porta de entrada do processo de conversão: o reconhecimento da fragilidade e da pequenez do ser humano.

Sem reconhecer-se pecador, não é possível iniciar o itinerário da conversão. Mas é preciso considerar um dado importante, que antecede a esse reconhecimento: o Senhor chama e, imediatamente, concede a graça do reconhecimento da fragilidade e da pequenez humanas. Na oração e na escuta dos sinais que vão se manifestando no cotidiano da vida é possível identificar a acolher essa graça.

            Isso significa que a iniciativa da conversão é de Deus. Sozinha e entregue às próprias forças, nenhuma pessoa consegue trilhar o caminho da conversão. Deus chama e concede a graça de iniciar e perseverar no caminho. Em outras palavras, a conversão de uma pessoa não é resultado de mérito pessoal, mas da abertura permanente à ação da graça de Deus. Esta graça não atua de forma mágica, nem está submetida aos caprichos humanos. A graça é dom do Espírito de Deus, que age no tempo marcado por Deus. É Deus quem conhece o momento de todas as coisas, quem direciona a pessoa para a verdadeira felicidade. Pe. Cícero de Juazeiro costumava dizer que “Deus conduz o homem por caminhos que somente Ele conhece”.

            Em muitos casos, o Espírito infunde na pessoa, de forma extraordinária, a graça. Essa efusão provoca um despertar para Deus. De repente, a pessoa passa a enxergar a vida de outra maneira. Não se trata de momento mágico, que possa ser experimentado mediante uma invocação voluntária da pessoa, como se esta tivesse o poder de controlar a ação do Espírito. Deus não pratica magia. O seu agir é discreto, silencioso e amoroso. A ação da sua graça faz a pessoa enxergar a si mesma, suas potencialidades e limites, luzes e sombras. Esse despertar é pura ação da graça de Deus, jamais obra humana.

            Mas Deus não age de forma forçada. Sem a cooperação da vontade humana ninguém muda de vida. O querer humano é importante, e Deus espera a manifestação do desejo de mudança. Santo Agostinho dirá, sabiamente: “Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Esse santo do séc. V é um exemplo de homem que soube acolher a graça divina para trilhar o árduo e feliz itinerário da conversão.

Santo Agostinho não nasceu santo. Aliás, ninguém nasce santo, mas todos recebem o chamado à santidade. Os que respondem, generosamente, a esse chamado, inevitavelmente, trilham o caminho da conversão. Os santos e santas de Deus são pessoas convertidas, que aceitam o desafio da santidade e se deixam lapidar pela ação da graça divina. Essa graça, que é dom do Espírito, é concedida na liberdade e para a liberdade. Deus não age de forma impositiva. A pedagogia divina, revelada nas Escrituras Sagradas, mostra que Ele seduz a pessoa, com a força da sua graça, e a conduz à vida plena.

No caminho da conversão, o cristão cai e se levanta. Não há cristão convertido que não volte a pecar, aqui e acolá. Isso ocorre porque ninguém é perfeito. O Espírito não anula, nem substitui a natureza humana, corrompida pelo pecado. O apóstolo Paulo explicita bem a condição humana ao afirmar o seguinte: “Sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não habita: querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero” (Rm 7,18-19). Não adianta aparentar perfeição, nem se manifestar superior aos outros, porque tais atitudes são, por si mesmas, pecaminosas.

No caminho de Jesus não se caminha sozinho. O itinerário da conversão é, essencialmente, comunitário. Jesus realizou a sua missão contando com a fraterna colaboração de seus discípulos. Sozinho e isolado ninguém muda de vida. A conversão acontece mediante o exercício da caridade: ajudando-se uns aos outros, o itinerário se torna menos pesado e mais suave. Saindo de si mesmo para viver em fraternidade, as potencialidades são ativadas e desenvolvidas; a transformação acontece, sem atropelos. É para viver em comunidade que o cristão se converte. Portanto, quem trilha o caminho da conversão se afastando dos outros, encontra-se numa profunda contradição.

Arrogância, espírito de superioridade, mania de grandeza, competitividade, mundanismo espiritual, e outras manias e males que caracterizam uma falsa espiritualidade cristã, não fazem parte do itinerário da conversão. Os que se encontram nesse itinerário se tornam mansos, alegres, generosos, disponíveis, íntegros, amigos, humildes, desapegados, abertos aos outros, capazes de amar. Trata-se de um processo gradativo, que exige paciência, perseverança, fé e entrega. Para avançar no itinerário da conversão, a pessoa precisa ser como o barro nas mãos do oleiro (cf. Jr 18,1-6). Nas mãos de Deus, o oleiro fiel, a pessoa está segura e poderá, deixando-se moldar, transformar-se naquilo que Deus quer: uma nova criatura, conformada a Cristo Jesus.

Atualmente, assiste-se a uma crescente desumanização da pessoa humana. Vive-se uma grave crise civilizacional. O individualismo, o relativismo e o materialismo destroem a dignidade da pessoa humana. O capitalismo selvagem não considera, nem respeita essa dignidade, mas coisifica as pessoas, instrumentalizando-as. Os bens materiais passam a ter mais importância que as pessoas.

A pandemia do novo coronavírus, apesar de ter ceifado a vida de milhares de pessoas, parece não ter sido suficiente para tornar inúmeras pessoas mais sensíveis e humanas. Muitas vezes, o sofrimento é incapaz de despertar a compaixão e a solidariedade. O itinerário da conversão gera nas pessoas sentimentos de compaixão e ternura, impulsionando-as à ação amorosa e transformadora. Para ser transformada, a sociedade precisa de pessoas mais justas e fraternas, mais cordiais e verdadeiramente humanas. O mundo carece, urgentemente, dessas pessoas.

Tiago de França