segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia Internacional da Mulher

 


           Não há muito o que comemorar neste dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher. No Brasil, os índices de violência contra a mulher são preocupantes. Segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em 2020, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher. A maioria das vítimas é pobre, da periferia, com pouca escolaridade e autodeclarada como de cor parda, com idade entre 35 e 39 anos. O perfil mais comum dos agressores é de homens brancos, com idade entre 35 e 39 anos.

            A pandemia contribuiu para piorar a situação, ou torná-la mais explícita. Segundo um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio cresceram 22,2% em março e abril de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. A alta dos crimes ocorreu em 12 estados. A Lei do Feminicídio alterou o Código Penal, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio, que também se tornou crime hediondo, com penalidades mais altas.

            A Lei 13.104/15 (Lei do Feminicídio) prevê duas situações para a sua aplicação: que o crime resulte de violência doméstica, hipótese em que o autor do crime é um familiar da vítima ou já manteve algum laço afetivo com ela; que o crime resulte de discriminação de gênero (misoginia/coisificação da mulher), sendo o autor conhecido ou não da vítima. A misoginia ultrapassa o machismo por se caracterizar como um tipo específico de ódio à mulher. Trata-se de uma forte repulsa à figura feminina. O Brasil é o quinto país do mundo com maior número de feminicídios.

            Segundo estudos psicanalíticos, o misógino sente prazer ao ferir o sentimento feminino. A situação chega ao ponto de o cérebro liberar dopamina, neurotransmissor do prazer, o que leva o criminoso a repetir o comportamento. Muitos misóginos são facilmente identificados nas redes sociais, pois se aproveitam do “anonimato” para se esconderem por trás da tela do computador ou celular. Essas redes facilitam a ação dos criminosos, que, de forma impiedosa, extravasam ódio e ofensas às mulheres. Os estudos também indicam que, para muitos homens, a misoginia funciona como um escudo que os ajuda a esconder dúvidas ou problemas relacionados à própria masculinidade.

            Os misóginos costumam se aproveitar das mulheres mais frágeis e inseguras, que sofrem com baixa autoestima e, por isso mesmo, são menos assertivas. Inicialmente, o homem misógino é cordial, educado, amoroso e atencioso; mas com o passar do tempo, torna-se intolerante, possessivo, autoritário e violento. Oprime física e psicologicamente suas vítimas. Costuma matá-las aos poucos, sufocando-as com sutileza e frieza. É um monstro travestido de cordeiro.

            A ética cristã ensina que a mulher não é, nem pode ser considerada inferior ao homem. Ensina também que todo homem que trata a mulher com desprezo e ódio não pode, jamais, afirmar que segue Jesus, porque a fé cristã é incompatível com o desprezo do outro. Falsos cristãos tratam as mulheres com desprezo e indiferença. Não há um versículo sequer na Bíblia que possa justificar tal forma de proceder. Quem afirma o contrário, na verdade, deturpa o sentido das Sagradas Escrituras com o objetivo de justificar a violência contra a mulher.

            Jesus se relacionou com as mulheres com estima e respeito, promovendo a sua dignidade (cf. Jo 4,1-26; 8,1-11; Lc 7,36-50; 10,38-42) e libertando-as do poder opressor dos homens moralistas e sedentos de violência. Maria Madalena, discípula do Senhor, foi a primeira testemunha da ressurreição (cf. Jo 20,1-18). O próprio Jesus se encarnou no seio virginal de Maria, uma pobre mulher de Nazaré da Galileia (cf. Mt 1,18-24; Lc 2,7; Jo 1,14). Quis Deus que seu Filho amado se encarnasse no seio de uma mulher, bendita entre todas as mulheres (cf. Lc 1,42).

            Neste Dia Internacional na Mulher é necessário não somente reconhecer o seu lugar e importância para o desenvolvimento da humanidade, como também apoiar todas as iniciativas de defesa e promoção de seus direitos. É necessário também denunciar as injustiças que as afligem e ferem. Todas as formas de violência contra a mulher são inaceitáveis, porque jamais podem ser justificadas. Nenhum tipo de violência se justifica.

O art. 5º, inciso I da Constituição da República é claro e preciso ao afirmar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. É preciso lutar, incansavelmente, para que esta igualdade seja real, afetiva e efetiva. Independentemente das circunstâncias, a violação dessa igualdade constitui injustiça que não pode ser tolerada. O sangue das vítimas clama por justiça. Não há cidadania autêntica, nem democracia sem o reconhecimento, defesa e promoção dos direitos da mulher.

O Disque 100 e o Ligue 180 são canais gratuitos e confiáveis para denúncias de violações de direitos humanos e de violência contra a mulher. Estes serviços funcionam 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. Denunciar é preciso. Omitir-se é tornar-se conivente com as violações dos direitos e com a violência contra a mulher. Se os bons permanecem em silêncio, os maus dominam, oprimem e matam. Todo ser humano é chamado a ser livre e feliz; não há liberdade, nem felicidade onde reinam a violência e a morte.

Tiago de França

quinta-feira, 4 de março de 2021

Breves apontamentos sobre os delitos contra a unidade da Igreja Católica

 


“Lembremos bem: ser parte da Igreja quer dizer ser unido a Cristo e receber Dele a vida divina que nos faz viver como cristãos (…) e quer dizer também aprender a superar personalismos e divisões” (Papa Francisco, catequese do dia 19/06/2013). 

            Nestes breves apontamentos, desejo compartilhar alguns conceitos expressos no Código de Direito Canônico, que falam sobre delitos contra a unidade da Igreja Católica. A situação atual, marcada pelo acirramento de conflitos no seio da Igreja reclama a nossa atenção e acende um sinal de alerta no que se refere à unidade da Igreja.

Não somente a Palavra de Deus exige a comunhão da Igreja, mas também a legislação canônica em vigor, que precisa ser conhecida, para que haja maior clareza da necessidade, importância e urgência da comunhão eclesial. Muitas vezes, a violação da lei ocorre por falta de conhecimento, o que não livra o violador da justa pena prevista na própria lei.

1. Apostasia, heresia e cisma

            O Livro VI do Código de Direito Canônico, promulgado por São João Paulo II em 1983, trata das sanções na Igreja. Os delitos contra a religião e a unidade da Igreja se encontram no Título I da II Parte. Para a nossa abordagem, interessa-nos o cânon 1.364, §§1 e 2, onde se preceitua o que se segue:

Cân. 1.364 - §1. O apóstata da fé, o herege ou o cismático incorre em excomunhão latae sententiae, salvo a prescrição do cân. 194, §1, n. 2; além disso, o clérigo pode ser punido com as penas mencionadas no cân. 1336, §1, nn. 1, 2 e 3.

§ 2. Se a prolongada contumácia ou a gravidade do escândalo o exige, podem-se acrescentar outras penas não excetuada a demissão do estado clerical.

            Para não dar margem a injustiças decorrentes de interpretações equivocadas, o próprio Código traz os conceitos de apostasia, heresia e cisma, expressos no livro III (Do múnus de ensinar da Igreja). Vejamos:

Cân. 751 – Chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos.

            Para que se configure heresia, a verdade da fé é negada de forma clara e continuada. Deve a culpa estar claramente verificada. Em outras palavras, de forma obstinada, o herege nega ou coloca em dúvida uma ou várias verdades de fé. Trata-se de postura pertinaz, ou seja, que dura no tempo, praticada com insistência. Na apostasia, temos uma situação mais gravosa, que se configura no repúdio total da fé cristã. Tendo sido batizado e professado a fé, o apóstata se volta contra a mesma fé, repudiando-a plenamente.

            O momento atual parece não ser muito marcado por hereges e apóstatas, que, certamente, devem existir. Facilmente, verificamos a ação deliberada de católicos que distorcem a doutrina da Igreja, negando verdades fundamentais da fé. Ora fazem de forma propositada, ora de forma inconsciente.

A distorção é negação, porque não se aceita o que a Igreja ensina. Não aceitando, rejeita-se, e tal rejeição é uma forma dissimilada (indireta/implícita) de negação. Cada caso deve ser verificado, para saber da clareza e da consciência dos que, supostamente, cometem esse tipo de delito. A heresia requer uma avaliação mais rigorosa, nos termos da lei. A apostasia parece ser mais fácil de ser identificada, porque se trata de repúdio total à fé cristã.

Na situação atual, caracterizada por agressões ao Papa, ao Colégio dos Bispos e a Bispos determinados, encontramos manifestações, nitidamente, cismáticas. Basta verificar o teor das falas e/ou posicionamentos de inúmeros católicos, principalmente nas redes sociais, para constatar que se tratam de católicos cismáticos.

A lei canônica fala de recusa de sujeição ao Sumo Pontífice. O que significa essa sujeição? Na Igreja Católica, o Papa é sucessor de Pedro, Bispo da Diocese de Roma, cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo, Pastor da Igreja universal e detentor do poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal (cf. Cân. 331; constituição dogmática Pastor Aeternus). Além dessas prerrogativas, também acumula a função de Chefe do Estado da Cidade do Vaticano. Estes poderes podem sempre ser exercidos livremente.

A sujeição de que fala a lei canônica não é sinônimo de subserviência, nem de obediência cega. É possível que, respeitosamente, um cristão católico não possa se identificar com alguma palavra ou posicionamento do Papa, mas em matéria de doutrina sobre a fé e os costumes, cabe a todo católico observar com “religioso obséquio de inteligência e vontade” (cf. Cân. 752).

Devem os fiéis evitar tudo o que não estiver de acordo com a doutrina que o Papa e o Colégio dos Bispos enunciam sobre a fé e os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo. Além deste dever de observância em matéria doutrinal, cabe a todo fiel católico o respeito e a obediência quanto às decisões emanadas pelo Papa e pelos Bispos, também sobre questões disciplinares. Entende-se que tais decisões visam promover a disciplina eclesiástica e a comunhão eclesial, considerando a diversidades das culturas e dos costumes.

O cânon 751 também fala de recusa à comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos. A Igreja somente cresce na comunhão, que significa união com Deus e com os irmãos que professam a mesma fé. Todo fiel que se dedica a disseminar o ódio, criando e veiculando mentiras sobre os ministros sagrados e demais membros da Igreja, tornam-se inimigos da comunhão eclesial, ferindo-a, gravemente. É o que tem ocorrido, ultimamente.

Nas redes sociais, pessoas e grupos tem se dedicado a caluniar e difamar o Papa Francisco, a Conferência dos Bispos e alguns bispos, mais especificamente. Utilizam-se de notícias falsas e ofensas de toda sorte, numa tentativa violenta de deslegitimar o Pontífice e inúmeros Bispos. Além disso, fazem leitura seletiva de documentos da Igreja, tirando-os dos contextos nos quais foram elaborados, bem como deturpando o sentido dos mesmos. Utilizam as Sagradas Escrituras para difamar, julgar e condenar pessoas e instituições eclesiásticas. Há também os que se recusam a aceitar o pontificado do Papa Francisco, questionando, assim, a legitimidade do conclave que o elegeu.

2. A punição de clérigos apóstatas, hereges e cismáticos

            O cânon 1.364, §1 fala que os que praticam apostasia, heresia e cisma incorrem em excomunhão latae sententiae, ou seja, logo que cometem o delito, sem nenhuma intervenção de autoridade eclesiástica, já estão excomungados. Portanto, não estão mais em comunhão com a Igreja, mas fora desta. Trata-se de excomunhão automática. Isso vale tanto para leigos quanto para clérigos (ministros ordenados) que cometam tais delitos.

            No caso de clérigo, o supracitado cânon prescreve a punição com as penas previstas no cânon 1.336, §1, nn. 1, 2 e 3:

1º proibição ou obrigação de morar em determinado lugar ou território;

2º privação de um poder, ofício, encargo, direito, privilégio, faculdade, graça, título ou insígnia, mesmo meramente honorífica;

3º proibição de exercer o que é mencionado no n. 2, ou proibição de exercer em determinado lugar ou também fora de determinado lugar; essas proibições, porém, nunca são sob pena de nulidade.

            O rol de penas previstas no cânon 1.336 não é taxativo, mas exemplificativo, conferindo ao Ordinário o poder de escolha. Se aplicada uma destas penas, o clérigo insistir no cometimento do delito, podem-se acrescentar outras penas; e se estas se mostrarem ineficazes, pode-se demiti-lo do estado clerical. Dependendo da gravidade do escândalo, pode-se agir da mesma forma, ou seja, aplicar outras penas, ou, não sendo suficientes, decrete-se a demissão do estado clerical. É o que dispõe o n. 2 do cânon 1.364.

            No cânon 1.373 há previsão de punições (interdito ou outras justas penas) para os católicos, clérigos ou leigos, que excitam publicamente aversão ou ódio contra a Sé Apostólica ou contra o Ordinário (Bispo ou Arcebispo), em razão de algum ato de poder ou ministério eclesiástico, ou incitam os fiéis à desobediência a eles. O interdito se assemelha à excomunhão, porém, é mais brando, pois possui efeitos de menor alcance. Pelo interdito há uma suspensão parcial da comunhão visível. Incorrem nas penas previstas neste cânon os que atuam em campanhas difamatórias contra o Pontífice e os Bispos. A ofensa ao Pontífice constitui ofensa à Sé Apostólica.

            A Igreja tem o legítimo poder de privar dos bens que ela administra (sacramentos, ofícios, ministérios etc.). No rol das penas e punições previstas no Código, há algumas censuras aos que são excomungados. A excomunhão é a censura mais grave, pois coloca a pessoa fora da comunhão visível da Igreja. A censura é uma pena medicinal, que priva a pessoa dos direitos inerentes à comunhão da Igreja. Eis as censuras impostas aos que são automaticamente excomungados:

Cân. 1.331 - §1. Ao excomungado proíbe-se:

1º ter qualquer participação ministerial na celebração do sacrifício da Eucaristia ou em quaisquer outras cerimônias de culto;

2º celebrar sacramentos ou sacramentais e receber sacramentos;

3º exercer quaisquer ofícios, ministérios ou encargos eclesiásticos ou praticar atos de regime.

            Como se vê, a excomunhão é sanção gravosa, pois tira da pessoa a comunhão com a Igreja, adquirida pelo Batismo. No Código há outras proibições impostas aos excomungados: incapacidade de lucrar indulgência (cf. cân. 996); inabilidade para votar e para participar de associação de fieis (cf. cânones 171,§1 e 316); proibição de receber a Eucaristia (cân. 915), entre outras.            

3. A unidade da Igreja e a aplicação da lei penal canônica

            Algumas pessoas discordam da utilização da lei penal canônica para salvaguardar a unidade da Igreja. A lei penal existe em vista da caridade evangélica; melhor dito, esta é o fundamento daquela. Discorrendo sobre a finalidade do Código, diz o Papa São João Paulo II na Constituição Apostólica de promulgação do Código:

“Torna-se bem claro, pois, que o objetivo do Código não é, de forma alguma, substituir na vida da Igreja dos fiéis, a fé, a graça, os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo o seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

            O Papa é claro em suas palavras: a finalidade do Código é criar uma ordem na sociedade eclesial, facilitando o desenvolvimento do amor, da graça e dos carismas na vida da Igreja e de seus membros. Os delitos contra a unidade da Igreja causam desordem, portanto, desarmonia e confusão. As divisões são produzidas por quem, obstinada e sistematicamente, dissemina o ódio, utilizando-se de todos os meios possíveis. Neste sentido, as redes sociais, vergonhosamente, transformaram-se em campo de batalha, onde se manifestam pessoas que parecem desconhecer o significado do amor, da graça e dos carismas.

            A lei penal visa restabelecer e assegurar a comunhão da Igreja, que é um bem jurídico fundamental. A unidade da Igreja também depende da atuação dos responsáveis pela aplicação da lei, que com justiça e misericórdia, não podem deixar de aplicá-la. Quando a unidade está ameaçada é necessário agir com firmeza, para que os que cometem tais delitos saibam que a Igreja não é Casa da desordem e/ou da anarquia, mas da misericórdia, da justiça e da paz. Toda a Igreja sofre com as divisões, e reclama por justiça, para que se restabeleçam a unidade e a paz. Uma Igreja dividida é incapaz de falar de unidade e paz ao mundo dilacerado por discórdias.

            A responsabilidade pela unidade da Igreja é de todos aqueles que nela receberam o Batismo. O apelo de Jesus é claro e veemente: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21). Cada membro da Igreja precisa crescer em espírito de pertença e comunhão. Na Igreja cabem todos, porque nasceu para acolher a todos, sem proselitismo, nem acepção de pessoas.

Superando o personalismo se descobre que todos são igualmente importantes, porque gozam da mesma dignidade de filhos e filhas de Deus. É na comunhão fraterna que a Igreja cresce e cumpre a sua missão. Nenhum batizado deveria se insurgir contra seus irmãos, porque tal atitude fere o Corpo místico de Cristo e, consequentemente, vai contra a Cabeça da Igreja, que é o próprio Cristo. Todos os que militam contra a unidade da Igreja se colocam, por si mesmos, fora dela. Isso contraria a vontade de Deus, expressa nas palavras de Jesus e no testemunho de Jesus.

Seminarista Tiago de França