“Lembremos bem: ser parte da Igreja quer dizer ser unido a Cristo e receber Dele a vida divina que nos faz viver como cristãos (…) e quer dizer também aprender a superar personalismos e divisões” (Papa Francisco, catequese do dia 19/06/2013).
Nestes breves apontamentos, desejo
compartilhar alguns conceitos expressos no Código de Direito Canônico, que
falam sobre delitos contra a unidade da Igreja Católica. A situação atual,
marcada pelo acirramento de conflitos no seio da Igreja reclama a nossa atenção
e acende um sinal de alerta no que se refere à unidade da Igreja.
Não somente a Palavra de Deus exige a comunhão da Igreja,
mas também a legislação canônica em vigor, que precisa ser conhecida, para que
haja maior clareza da necessidade, importância e urgência da comunhão eclesial.
Muitas vezes, a violação da lei ocorre por falta de conhecimento, o que não
livra o violador da justa pena prevista na própria lei.
1. Apostasia, heresia e cisma
O
Livro VI do Código de Direito Canônico, promulgado por São João Paulo II em
1983, trata das sanções na Igreja. Os delitos contra a religião e a unidade da
Igreja se encontram no Título I da II Parte. Para a nossa abordagem, interessa-nos
o cânon 1.364, §§1 e 2, onde se preceitua o que se segue:
Cân. 1.364 - §1. O apóstata da fé, o
herege ou o cismático incorre em excomunhão latae sententiae, salvo a
prescrição do cân. 194, §1, n. 2; além disso, o clérigo pode ser punido com as
penas mencionadas no cân. 1336, §1, nn. 1, 2 e 3.
§ 2. Se a prolongada contumácia ou a
gravidade do escândalo o exige, podem-se acrescentar outras penas não excetuada
a demissão do estado clerical.
Para não dar margem a injustiças
decorrentes de interpretações equivocadas, o próprio Código traz os conceitos
de apostasia, heresia e cisma, expressos no livro III (Do múnus de ensinar da
Igreja). Vejamos:
Cân. 751 – Chama-se heresia a negação
pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com
fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela; apostasia, o
repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de
comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos.
Para que se configure heresia, a
verdade da fé é negada de forma clara e continuada. Deve a culpa estar
claramente verificada. Em outras palavras, de forma obstinada, o herege nega ou
coloca em dúvida uma ou várias verdades de fé. Trata-se de postura pertinaz, ou
seja, que dura no tempo, praticada com insistência. Na apostasia, temos uma
situação mais gravosa, que se configura no repúdio total da fé cristã. Tendo
sido batizado e professado a fé, o apóstata se volta contra a mesma fé,
repudiando-a plenamente.
O momento atual parece não ser muito
marcado por hereges e apóstatas, que, certamente, devem existir. Facilmente,
verificamos a ação deliberada de católicos que distorcem a doutrina da Igreja,
negando verdades fundamentais da fé. Ora fazem de forma propositada, ora de
forma inconsciente.
A distorção é negação, porque não se aceita o que a Igreja
ensina. Não aceitando, rejeita-se, e tal rejeição é uma forma dissimilada
(indireta/implícita) de negação. Cada caso deve ser verificado, para saber da
clareza e da consciência dos que, supostamente, cometem esse tipo de delito. A
heresia requer uma avaliação mais rigorosa, nos termos da lei. A apostasia
parece ser mais fácil de ser identificada, porque se trata de repúdio total à
fé cristã.
Na situação atual, caracterizada por agressões ao Papa, ao
Colégio dos Bispos e a Bispos determinados, encontramos manifestações,
nitidamente, cismáticas. Basta verificar o teor das falas e/ou posicionamentos
de inúmeros católicos, principalmente nas redes sociais, para constatar que se
tratam de católicos cismáticos.
A lei canônica fala de recusa
de sujeição ao Sumo Pontífice. O
que significa essa sujeição? Na Igreja Católica, o Papa é sucessor de Pedro,
Bispo da Diocese de Roma, cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo,
Pastor da Igreja universal e detentor do poder ordinário supremo, pleno,
imediato e universal (cf. Cân. 331; constituição dogmática Pastor Aeternus). Além dessas prerrogativas, também acumula a
função de Chefe do Estado da Cidade do Vaticano. Estes poderes podem sempre ser
exercidos livremente.
A sujeição de que fala a lei canônica não é sinônimo de
subserviência, nem de obediência cega. É possível que, respeitosamente, um
cristão católico não possa se identificar com alguma palavra ou posicionamento
do Papa, mas em matéria de doutrina sobre a fé e os costumes, cabe a todo
católico observar com “religioso obséquio de inteligência e vontade” (cf. Cân.
752).
Devem os fiéis evitar tudo o que não estiver de acordo com
a doutrina que o Papa e o Colégio dos Bispos enunciam sobre a fé e os costumes,
mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato definitivo. Além
deste dever de observância em matéria doutrinal, cabe a todo fiel católico o
respeito e a obediência quanto às decisões emanadas pelo Papa e pelos Bispos,
também sobre questões disciplinares. Entende-se que tais decisões visam
promover a disciplina eclesiástica e a comunhão eclesial, considerando a
diversidades das culturas e dos costumes.
O cânon 751 também fala de recusa à comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos. A Igreja somente
cresce na comunhão, que significa união com Deus e com os irmãos que professam
a mesma fé. Todo fiel que se dedica a disseminar o ódio, criando e veiculando
mentiras sobre os ministros sagrados e demais membros da Igreja, tornam-se
inimigos da comunhão eclesial, ferindo-a, gravemente. É o que tem ocorrido,
ultimamente.
Nas redes sociais, pessoas e grupos tem se dedicado a
caluniar e difamar o Papa Francisco, a Conferência dos Bispos e alguns bispos,
mais especificamente. Utilizam-se de notícias falsas e ofensas de toda sorte,
numa tentativa violenta de deslegitimar o Pontífice e inúmeros Bispos. Além
disso, fazem leitura seletiva de documentos da Igreja, tirando-os dos contextos
nos quais foram elaborados, bem como deturpando o sentido dos mesmos. Utilizam
as Sagradas Escrituras para difamar, julgar e condenar pessoas e instituições
eclesiásticas. Há também os que se recusam a aceitar o pontificado do Papa
Francisco, questionando, assim, a legitimidade do conclave que o elegeu.
2. A punição de clérigos apóstatas,
hereges e cismáticos
O
cânon 1.364, §1 fala que os que praticam apostasia, heresia e cisma incorrem em
excomunhão latae sententiae, ou seja,
logo que cometem o delito, sem nenhuma intervenção de autoridade eclesiástica,
já estão excomungados. Portanto, não estão mais em comunhão com a Igreja, mas
fora desta. Trata-se de excomunhão automática. Isso vale tanto para leigos
quanto para clérigos (ministros ordenados) que cometam tais delitos.
No caso de clérigo, o supracitado
cânon prescreve a punição com as penas previstas no cânon 1.336, §1, nn. 1, 2 e
3:
1º proibição ou obrigação de morar em
determinado lugar ou território;
2º privação de um poder, ofício, encargo,
direito, privilégio, faculdade, graça, título ou insígnia, mesmo meramente
honorífica;
3º proibição de exercer o que é mencionado
no n. 2, ou proibição de exercer em determinado lugar ou também fora de
determinado lugar; essas proibições, porém, nunca são sob pena de nulidade.
O rol de penas previstas no cânon
1.336 não é taxativo, mas exemplificativo, conferindo ao Ordinário o poder de
escolha. Se aplicada uma destas penas, o clérigo insistir no cometimento do
delito, podem-se acrescentar outras penas; e se estas se mostrarem ineficazes,
pode-se demiti-lo do estado clerical. Dependendo da gravidade do escândalo,
pode-se agir da mesma forma, ou seja, aplicar outras penas, ou, não sendo
suficientes, decrete-se a demissão do estado clerical. É o que dispõe o n. 2 do
cânon 1.364.
No cânon 1.373 há previsão de
punições (interdito ou outras justas penas) para os católicos, clérigos ou
leigos, que excitam publicamente aversão ou ódio contra a Sé Apostólica ou
contra o Ordinário (Bispo ou Arcebispo), em razão de algum ato de poder ou
ministério eclesiástico, ou incitam os fiéis à desobediência a eles. O
interdito se assemelha à excomunhão, porém, é mais brando, pois possui efeitos
de menor alcance. Pelo interdito há uma suspensão parcial da comunhão visível.
Incorrem nas penas previstas neste cânon os que atuam em campanhas difamatórias
contra o Pontífice e os Bispos. A ofensa ao Pontífice constitui ofensa à Sé
Apostólica.
A Igreja tem o legítimo poder de
privar dos bens que ela administra (sacramentos, ofícios, ministérios etc.). No
rol das penas e punições previstas no Código, há algumas censuras aos que são
excomungados. A excomunhão é a censura mais grave, pois coloca a pessoa fora da
comunhão visível da Igreja. A censura é uma pena medicinal, que priva a pessoa
dos direitos inerentes à comunhão da Igreja. Eis as censuras impostas aos que
são automaticamente excomungados:
Cân. 1.331 - §1. Ao excomungado proíbe-se:
1º ter qualquer participação ministerial
na celebração do sacrifício da Eucaristia ou em quaisquer outras cerimônias de
culto;
2º celebrar sacramentos ou sacramentais e
receber sacramentos;
3º exercer quaisquer ofícios, ministérios
ou encargos eclesiásticos ou praticar atos de regime.
Como
se vê, a excomunhão é sanção gravosa, pois tira da pessoa a comunhão com a
Igreja, adquirida pelo Batismo. No Código há outras proibições impostas aos
excomungados: incapacidade de lucrar indulgência (cf. cân. 996); inabilidade
para votar e para participar de associação de fieis (cf. cânones 171,§1 e 316);
proibição de receber a Eucaristia (cân. 915), entre outras.
3. A unidade da Igreja e a aplicação da
lei penal canônica
Algumas
pessoas discordam da utilização da lei penal canônica para salvaguardar a
unidade da Igreja. A lei penal existe em vista da caridade evangélica; melhor
dito, esta é o fundamento daquela. Discorrendo sobre a finalidade do Código, diz
o Papa São João Paulo II na Constituição Apostólica de promulgação do Código:
“Torna-se bem claro, pois, que o objetivo
do Código não é, de forma alguma, substituir na vida da Igreja dos fiéis, a fé,
a graça, os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua
finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia
ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo o seu desenvolvimento
orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.
O Papa é claro em suas palavras: a
finalidade do Código é criar uma ordem na sociedade eclesial, facilitando o
desenvolvimento do amor, da graça e dos carismas na vida da Igreja e de seus
membros. Os delitos contra a unidade da Igreja causam desordem, portanto,
desarmonia e confusão. As divisões são produzidas por quem, obstinada e
sistematicamente, dissemina o ódio, utilizando-se de todos os meios possíveis.
Neste sentido, as redes sociais, vergonhosamente, transformaram-se em campo de
batalha, onde se manifestam pessoas que parecem desconhecer o significado do
amor, da graça e dos carismas.
A lei penal visa restabelecer e
assegurar a comunhão da Igreja, que é um bem jurídico fundamental. A unidade da
Igreja também depende da atuação dos responsáveis pela aplicação da lei, que
com justiça e misericórdia, não podem deixar de aplicá-la. Quando a unidade
está ameaçada é necessário agir com firmeza, para que os que cometem tais
delitos saibam que a Igreja não é Casa da desordem e/ou da anarquia, mas da
misericórdia, da justiça e da paz. Toda a Igreja sofre com as divisões, e
reclama por justiça, para que se restabeleçam a unidade e a paz. Uma Igreja dividida
é incapaz de falar de unidade e paz ao mundo dilacerado por discórdias.
A responsabilidade pela unidade da
Igreja é de todos aqueles que nela receberam o Batismo. O apelo de Jesus é
claro e veemente: “Que todos sejam um,
como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti. Que também eles estejam em nós, a fim
de que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21). Cada membro da Igreja
precisa crescer em espírito de pertença e comunhão. Na Igreja cabem todos,
porque nasceu para acolher a todos, sem proselitismo, nem acepção de pessoas.
Superando o personalismo se descobre que todos são
igualmente importantes, porque gozam da mesma dignidade de filhos e filhas de
Deus. É na comunhão fraterna que a Igreja cresce e cumpre a sua missão. Nenhum batizado
deveria se insurgir contra seus irmãos, porque tal atitude fere o Corpo místico
de Cristo e, consequentemente, vai contra a Cabeça da Igreja, que é o próprio
Cristo. Todos os que militam contra a unidade da Igreja se colocam, por si
mesmos, fora dela. Isso contraria a vontade de Deus, expressa nas palavras de
Jesus e no testemunho de Jesus.
Seminarista Tiago de França
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