quarta-feira, 28 de abril de 2021

A CPI da Covid e os pecados de omissão

 


             Certa vez, um amigo padre, missionário estrangeiro no Brasil, me falou o seguinte: “Vocês, brasileiros, tem uma mania de não encarar os problemas; vocês gostam de adiar as coisas”. Ao ler as notícias de hoje, principalmente as relacionadas à CPI da Covid, instalada hoje em Brasília, veio à mente essas palavras do amigo padre missionário. Certamente, em todo lugar há os omissos e os procrastinadores. Mas o Brasil tem ganhado destaque nestes dois pontos. De fato, muitos brasileiros tem a mania de fugir dos problemas, pensando que, dessa forma, os problemas deixam de existir.

            O famoso “jeitinho brasileiro” também está inserido nesta cultura da fuga e do adiamento. Em inúmeros setores da sociedade, é comum escutarmos as pessoas falarem: “Depois a gente resolve isso!”, ou “A gente dá um jeitinho”. No caso da CPI da Covid, parlamentares investigarão as ações e omissões do governo, bem como o repasse de verbas durante a pandemia. Uma comissão parlamentar de inquérito tem a missão de investigar. Mas como a política brasileira é contaminada pelo vírus da corrupção, as CPIs já nascem com suspeitas. Há os que querem investigar, e os que querem evitar as investigações.

            O cenário é evidente: houve ações e omissões que provocaram a morte de milhares de brasileiros. Esta é a matéria das investigações. Se os parlamentares se afastarem das posições partidariamente apaixonadas e encararem o problema com seriedade, certamente a CPI encontrará os culpados. E o tempo de investigar é agora. Quando se adia uma investigação, geralmente não se investiga mais. Quando os responsáveis pelas investigações dizem não ter encontrado elementos suficientes, sem terem se ocupado com as investigações, então é porque, claramente, não se quer investigar. Consequência natural e óbvia: reforça-se a cultura da impunidade.

            O governo não quer a CPI da Covid, porque teme que os trabalhos sejam levados a sério e, assim, revelem-se os culpados. Alguém precisa ser responsabilizado pelas consequências do negacionismo que tomou conta do país. A negação da realidade pode conduzir à omissão. Se alguém nega que o vírus é capaz de provocar a morte das pessoas, esse alguém pode permitir que as pessoas morram, sem tomar nenhuma providência para evitar tal tragédia. Não querer enxergar a realidade também conduz à omissão. Quando alguém finge não enxergar o óbvio, não assume a responsabilidade de fazer alguma coisa para evitar o mal.

            Muitas pessoas deixam de falar e agir, porque não querem assumir responsabilidades; recusam-se a se comprometer. Mais do que isso, torcem para o “circo pegar fogo”, mesmo sabendo que também serão atingidas pelo fogo. Vivemos numa sociedade profundamente marcada pela falta de responsabilidade. Muitos dos detentores de poder não exercem com justiça o seu papel, gerando sofrimento e morte. A omissão sempre causa vítimas, sempre gera um mal coletivo. A falta de providência, ou a providência errada pode causar sofrimento e morte. Isso é óbvio, mas as pessoas, geralmente, não pensam nessas coisas. Essa falta de pensamento também constitui omissão. Evita-se o assunto.

            A espiritualidade cristã também fala de omissão. As pessoas podem pecar por pensamentos, palavras, atos e omissões. A omissão é um pecado. Omitir-se é deixar de fazer algum bem necessário à vida em comunidade. Também nas comunidades cristãs os problemas, muitas vezes, não são encarados. Quando não se adia a solução, decide-se de forma equivocada, prejudicando a comunidade. Muitas decisões não visam o bem da comunidade, mas somente o bem individual de muitas pessoas. Tais decisões não estão em sintonia com o projeto eclesial e comunitário, mas estão em função da satisfação do desejo pessoal dos que delas se beneficiam.

            Na Igreja Católica, apesar das dificuldades e resistências, o Papa Francisco tem tocado em algumas feridas abertas. Tocar na ferida é ação que provoca dor e incômodo. A reforma da Igreja passa, necessariamente, por incômodos, porque há aqueles que não querem tal reforma. Defendem que tudo continue do jeito de sempre. Tal posição coaduna-se com a ideia de que o Espírito Santo nada transforma, mas somente confirma o de sempre. Alguns alegam: “Sempre foi feito dessa forma; por que mudar agora?” As pessoas se acostumam, facilmente, com o mesmo, com a rotina, a mesmice, passando a gostar de uma vida insossa. Levam uma “vida espiritual” sem dinamismo, desligada do Evangelho e da ação do Espírito de Jesus.

            Quem se habitua a esse estilo de vida não consegue ser proativo, não tem iniciativa. Portanto, facilmente se omite diante da necessidade de mudanças. Dominada por este espírito mundano de ser, a Igreja se torna letárgica, uma sociedade parada no tempo, impossibilitando a experiência dos necessários rompimentos. A radicalidade do Evangelho passa a ser vista como exagero, passível de apaziguamento. A subjetividade das pessoas passa a ser a norma da vida coletiva, e o gosto de cada um precisa ser satisfeito, sacrificando o bem comum. O eu passa a ser mais importante que o nós. Não se decide pensando nas pessoas, mas na pessoa a ser beneficiada pela decisão.

            Qualquer pessoa pode pecar por omissão, tanto o governo quanto os governados; tanto que tem quanto quem não tem poder em determinada instituição. Apesar dos condicionamentos, toda pessoa goza de uma margem de liberdade para decidir conforme a sua consciência e à luz do Evangelho de Jesus. A experiência de Jesus mostra que a omissão não fez parte de sua vida, pois agia sempre orientado pela vontade do Pai. Ele agia em nome do Pai, porque era um com o Pai (cf. Jo 10,25.30). O mesmo deve fazer todo aquele que deseja ser seu discípulo: agir conforme a vontade do Pai.

            Em todas as situações que exigem decisão, para não ser omisso, deve o discípulo pensar: “O que Jesus faria nessa situação?” Os evangelhos mostram que Jesus pensava sempre no bem das pessoas. Ele não jogava fardos pesados nas costas de ninguém. Também não se omitia nas situações de injustiça. Diante da exploração religiosa, pegou o chicote e expulsões os exploradores do Templo.

Este é apenas um dos exemplos que mostra um Cristo decidido a agir para libertar as pessoas. Até que ponto somos capazes de agir, visando a libertação das pessoas? Ao nosso redor há pessoas sofrendo. Estamos enxergando, ou fingimos não enxergar? Quando decidimos agir, a nossa ação colabora com a opressão, ou com a libertação das pessoas? Ajudamos a carregar a cruz, ou agimos para a cruz se tornar mais pesada e penosa? De nada adianta ficarmos indignados com os políticos omissos, quando também somos omissos no cotidiano de nossa vida. Por fim, cabe pensar nas seguintes palavras atribuídas a Martin Luther King: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

 

Tiago de França

quinta-feira, 8 de abril de 2021

O culto cristão e o radicalismo de muitos cristãos


Desde o início da pandemia temos visto nas redes sociais a proliferação de mensagens de cristãos tidos como radicais, que se expressam com muita violência sobre a limitação do culto cristão; limitação imposta pelos decretos governamentais e pelas orientações dos líderes religiosos que buscam respeitar tais decretos.

O radicalismo não vem de Deus, mas agride as coisas de Deus. Não faz bem às pessoas e faz com que o cristianismo seja rejeitado pelas mulheres e homens de bom senso. Assim como há radicais no Islamismo, que provocam o terrorismo no Oriente Médio e em outras partes do mundo, também no cristianismo estamos assistindo ao crescente surgimento de radicais cristãos: pessoas que usam a Bíblia numa tentativa desesperada de legitimar ideologias de morte.

Jesus Cristo não fazia parte de nenhum grupo adepto do radicalismo. A sua mensagem é radical porque centrada no amor a Deus e ao próximo. O amor é exigente e, portanto, radical, porque capaz de transformar e libertar, integralmente, as pessoas. Mas Jesus, Filho de Deus e Salvador da humanidade, não agredia as pessoas, nem se utilizava do nome de Deus para satanizar pessoas e instituições. Infelizmente, muitos que professam a fé em seu Nome estão caindo nesta tentação avassaladora

Os cristãos radicais costumam satanizar muitas realidades. Um exemplo claro disso é a satanização do novo coronavírus. Muitos estão dizendo que Satanás está usando o vírus para destruir a Igreja de Cristo, e afirmam também que os governantes e juízes que decretam o fechamento transitório das igrejas e templos são agentes de Satanás. Para isso, buscam na Bíblia expressões que sirvam para legitimar suas falas absurdas. Tiram os textos bíblicos de seus contextos e instrumentalizam a Palavra de Deus. Trata-se de uma desprezível manipulação da Palavra de Deus.

O que está escrito no livro do Apocalipse vale para toda a Bíblia: "Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!" (Apocalipse 22,18-19). Usar textos bíblicos para satanizar pessoas e instituições é um pecado gravíssimo, porque constitui falsificação das Sagradas Escrituras.

Além da Bíblia, os radicais cristãos se utilizam de uma interpretação equivocada da Tradição da Igreja. Muitos citam a época da Igreja primitiva para dizer que estamos vivendo situação semelhante. Trata-se de um equívoco. A comparação mostra, com clareza, que não conhecem a Igreja primitiva. Precisam estudar a História da Igreja. O desconhecimento das Escrituras e da História faz com que apareçam tais comparações. Somente em algumas partes do mundo os cristãos têm experimentado perseguições sangrentas. No Brasil não há uma perseguição sistemática aos cristãos, como na Igreja primitiva.

O coronavírus não é uma invenção de Satanás para destruir a Igreja de Cristo. A ciência explica muito bem o surgimento dos vírus e outros agentes nocivos à saúde e ao progresso dos povos. Esta mesma ciência tem a capacidade de buscar soluções possíveis para erradicar tais males, e as vacinas produzidas são uma prova disso. Os adeptos do radicalismo se parecem com aqueles que, no tempo de Jesus - época desprovida de conhecimento científico -, atribuíam a Satanás e seus demônios a origem de inúmeras doenças. É necessário aprender a ler e a interpretar as Sagradas Escrituras; do contrário, muitas aberrações podem ser ditas e feitas em nome de Deus, com base nas mesmas Escrituras Sagradas.

Por fim, cabe ainda considerar que os juízes dos tribunais têm a missão constitucional de resolver os conflitos entre as pessoas. Quando direitos entram em conflito, os tribunais devem resolver a questão. Em matéria de direitos, é preciso considerar que nenhum direito é absoluto. Quando o direito à vida entra em conflito com o direito à prática pública do culto, prevalece o direito à vida. Isso é óbvio. Ninguém precisa ser jurista para compreender isso. Para cultuar a Deus, o crente precisa estar vivo. Os mortos não louvam ao Senhor (cf. Salmo 115,17).

O culto cristão está para além das práticas religiosas realizadas nas igrejas e templos. O próprio Jesus ensinou no sermão da montanha que se deve orar ao Pai com sinceridade de coração a partir de qualquer lugar (cf. Mateus 6,5-6), porque Deus está em toda parte. É preciso aprender a adorar ao Pai "em espírito e verdade" (João 4,24).

O culto nas igrejas e templos é muito importante para manter as comunidades unidas e animadas, porque a fé cristã é essencialmente comunitária, mas a suspensão provisória do culto não deve ser motivo para desespero. O que o Senhor espera de cada fiel é a prática cotidiana do amor. Não adianta o culto nas igrejas e templos se o coração permanece distante do Senhor. Cabe ainda recordar uma palavra oportuna para este momento, escrita por São Tiago: "Com efeito, a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo" (Tiago 1,27).

O momento reclama o amor a Deus e aos irmãos. Há muita gente precisando de ajuda. Muitas pessoas estão passando fome. Outras estão angustiadas, ansiosas e depressivas. Inúmeras famílias enlutadas. Portanto, muitas ocasiões para a prática do amor ao próximo. Os adeptos do radicalismo precisam abandonar o barulho que fazem nas redes sociais para terem tempo para a prática da caridade. No dia do juízo final, o Senhor não perguntará se o fiel defendeu a religião e suas doutrinas. Neste sentido, vale a leitura e meditação de Mateus 25,31-46, que fala do julgamento segundo o amor. Deus salva os que amam, porque o mais importante é o amor, não a prática rigorosa da lei e da religião. 

Tiago de França