sábado, 13 de agosto de 2011

Conviver com o diferente: um desafio possível


O texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XX Domingo Comum (cf. Mt 15, 21 – 28) é um convite para que se repense a questão das diferenças, da diversidade e da difícil arte de conviver num mundo cada vez mais plural e, portanto, profundamente marcado pelas ideologias e pelo jogo de interesses pessoais e grupais. É possível ser verdadeiramente cristão em meio a tudo isto? O que a mensagem evangélica tem a dizer a este mundo marcadamente plural, contraditório e desumano?

O texto mostra Jesus estava fora do seu contexto familiar e regional, na região de Tiro e Sidônia. De repente, se depara com uma mulher cananeia, que lhe implora a cura de sua filha, cruelmente atormentada por um demônio! Os discípulos de Jesus ficam incomodados com aquela gritaria e pede a Jesus que mande embora aquela mulher. Jesus simplesmente responde que veio somente às ovelhas perdidas da casa de Israel, mas mesmo assim a mulher não desiste e continua a implorar socorro.

Não tendo como escapar da insistente mulher, Jesus a questiona e recebe, pontualmente, uma resposta que o convence de que ela, mesmo não pertencendo à casa de Israel, possuía grande fé. Jesus não resiste ao pedido insistente da mulher desesperada e realiza a sua missão: liberta a filha da cananeia das amarras do demônio. Este é o texto. A mensagem central é: Jesus não se fechou no mundo da casa de Israel e sua ação libertadora está para todos, independentemente de credo e cultura.

Num primeiro momento, Jesus age como todo judeu de seu tempo: não responde à mulher palavra alguma e, verbalmente, restringe sua missão somente à casa de Israel. A grande fé da mulher chamou a sua atenção. Chamando-o de Senhor, filho de Davi, a mulher reconhece a descendência de Jesus e sabe do que ele é capaz da fazer. Jesus despertou naquela mulher a fé na liberdade de sua filha e não permitiu que a mesma voltasse para casa decepcionada.

Para o cristão de hoje, o que diz esta atitude de Jesus? Em relação a outros povos de religiões e culturas diferentes, os cristãos não são melhores ou superiores. O Cristianismo não representa uma raça superior no mundo, mas procuram seguir Jesus no mundo, sem fugir deste e a partir das culturas e das religiões. A origem destas está na produção cultural do seres humanos.

Na literatura cristã dos primeiros séculos da era cristã encontramos um escrito de um autor anônimo chamado Carta a Diogneto e nesta se confirma a verdade de que os cristãos não são seres de outro mundo, não possuem privilégios que os colocam acima de outros povos; enfim, são cidadãos do Reino de Deus que se dedicam a construí-lo neste mundo. O cristão que se julgar superior ou melhor do que aqueles que não o são, não é verdadeiro cristão. O verdadeiro cristão procura viver a fraternidade no respeito às diferenças presentes na diversidade das manifestações culturais.

Na relação entre os cristãos, o texto evangélico chama a atenção da igualdade que deve existir entre todos. Quando se busca construir a fraternidade deve-se buscar superar todo e qualquer espírito de superioridade. Para vencer este espírito, a alteridade é fundamentalmente necessária, ou seja, o cristão deve pensar sempre e em primeiro lugar no outro. Esta é uma vocação evangélica, pois Jesus não fez outra coisa senão compadecer-se do outro, do outro considerado perdido e cruelmente excluído por aqueles que se julgavam santos e perfeitos em suas práticas religiosas.

Na espiritualidade cristã, o outro é irmão de sangue em Cristo Jesus. Evitar o outro compromete a fé que alguém julga ter em Jesus. Não permitir que o outro seja, que se manifeste, que viva e que seja feliz é um pecado contra a fé cristã. O texto evangélico estimula o cristão a buscar sempre promover o outro. A promoção do outro é uma manifestação explícita da ação amorosa de Deus, porque Deus está presente onde há a defesa e a promoção da vida do outro.

O contrário disso se manifesta no egoísmo, porque neste a pessoa se aproxima do outro para sua autopromoção e para sua autoglorificação. O outro não passa de instrumento, objeto de uso e oportunidade que não pode ser perdida. Quem assim procede costuma ser chamado de oportunista. Este vive procurando oportunidades para o próprio engrandecimento, em detrimento da vida do outro. Assim, não é possível construir fraternidade, porque esta é o oposto de tudo isso.

Para a Igreja de hoje, o que diz esta atitude de Jesus? Durante séculos, a Igreja pecou gravemente pensando e agindo segundo critérios exclusivistas. Comunhão e participação são palavras que não existiam no vocabulário eclesiástico até o Concílio Vaticano II e, mesmo após este, estas palavras continuam sendo pouco cultivadas na prática eclesial. Infelizmente, a Igreja sempre ensinou que a hierarquia (Padre, Bispo e Papa) detém a verdade e que, por isto mesmo, deve ser escutada. Isto hoje não funciona mais.

A hierarquia da Igreja está se convencendo de que o mundo é plural e que a verdade não é propriedade particular de pessoas e de instituições. Estas podem ser promotoras da verdade, jamais proprietárias. As pessoas, de modo geral, quer na Igreja, quer fora dela, quando sentem que os discursos eclesiásticos não condizem com a verdade que liberta, simplesmente questionam e não aceitam. Verdades absolutas e condenações oriundas da hierarquia não são mais consideradas. As pessoas podem até escutar, mas não levam para a prática nada ou quase nada do que escutaram.

Na relação com outras Igrejas e religiões, precisamos admitir que o Reino de Deus também está se manifestando nelas. É inquestionável que o Espírito está presente no coração de todos os homens e mulheres de boa vontade, independentemente de cor, sexo, religião, condição social e sexual, cultura etc. O Espírito age em favor da liberdade que se manifesta na pluralidade e na diversidade. O tempo da uniformidade passou. Quem não se abrir ao novo que o Espírito faz surgir na humanidade morrerá frustrado numa fé tradicional que se encontra num estado gravíssimo de convalescência.

Acreditar em Jesus é viver num espírito de total abertura e simplicidade. Abertura para o diferente e para o novo. Simplicidade, no sentido vicentino da palavra, significa cultivar a verdade de si mesmo perante as pessoas, ser verdadeiro e transparente, buscar viver uma vida que esteja em plena comunhão com o Deus que se manifesta na palavra, nos gestos e na vida do outro. Somente assim poderemos construir uma Igreja mais humana e mais fiel ao Reino de Deus.


Tiago de França

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