terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Quaresma: tempo de voltar para o Senhor

 


“Agora, diz o Senhor: voltai para mim com todo o coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Joel 2,12-13).

            Com estas palavras da profecia de Joel, a Igreja Católica convida seus membros a iniciarem o itinerário quaresmal. Quaresma é tempo de voltar para o Senhor, com todo o coração. Não se trata de uma experiência passageira, mas de um itinerário permanente, marca do processo de conversão. O Senhor pede para rasgar o coração, e não as vestes; ou seja, é um retorno para com Ele permanecer. A conversão do coração é radical, porque transforma a pessoa, conferindo-lhe um novo alento e orientação de vida.

            As lágrimas e os gemidos sinalizam o reconhecimento da condição frágil e limitada, que integra o humano. Escrevendo aos coríntios, o apóstolo Paulo recomenda: “Como colaboradores de Cristo, nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus” (2Coríntios 6,1). Não há conversão sem abertura à ação da graça de Deus. Ninguém muda de vida sem o auxílio da graça divina. O Senhor que convida ao encontro com a sua misericórdia é o mesmo que infunde a graça que opera no coração.

            Na mesma Carta, acrescenta o apóstolo: “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (6,2). É preciso aproveitar o tempo da ação de Deus. Ele envia a sua graça no momento certo, porque não age conforme os planos humanos, mas trabalha para que seu Reino se torne uma realidade plena. Ele não olha para a multidão dos pecados, mas deseja entrar no coração das pessoas. Respeitando a liberdade humana, simplesmente pede para entrar e realizar as suas maravilhas. É belo e fecundo o trabalho divino no coração humano. Deus age no humano, divinizando as pessoas, restabelecendo aquela imagem e semelhança do ato criador descrito no Gênesis.

            A profecia de Joel revela também que o Senhor é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia. Esta é a verdadeira imagem de Deus. A sua bondade é infinita, inclusiva, porque capaz de alcançar a todos, especialmente os que mais precisam do seu amor. Ele é compassivo, porque conhece do que o ser humano é feito. É conhecedor de todas as coisas. Em Cristo, conheceu a realidade humana, com suas dores e alegrias. Não é indiferente ao sofrimento de seus filhos e filhas; pelo contrário, é compassivo. Não é dado à vingança, mas é puro amor.

            Deus é paciente e misericordioso. Não se deixa dominar pela ira, quando seus filhos pecam. É cheio de ternura, e não se cansa de perdoar. Por isso, todo pecador pode, a qualquer tempo, voltar-se para Ele, implorando a sua misericórdia. Deus perdoa, infinitamente, e acredita sempre na possibilidade da conversão do coração dos rebeldes e indiferentes. Sendo paciente, espera o retorno daqueles que se aventuram nos descaminhos deste mundo. Permite que o mal aconteça não porque seja mau, mas porque criou o ser humano livre, e trabalha para salvá-lo na liberdade. O Senhor não força nada. Quem se deixa se envolver pelo seu amor jamais volta à casa da escravidão, porque encontrou a razão de viver e a salvação.

            No evangelho (cf. Mateus 6,1-6.16-18), encontramos Jesus ensinando a fazer caridade, a jejuar e a orar, três práticas acentuadas no tempo da Quaresma. Ser caridoso é ser solidário com os que sofrem. Os que passam bem, sendo indiferentes aos que passam mal, na verdade, não estão bem diante do Senhor. Os que tem com o que viver sem se importar com aqueles que nada tem não podem dizer que acreditam em Deus. O Senhor é Pai e todos somos irmãos. Ignorar os outros, negando-lhes o devido socorro é atestar a própria falta de fé.

            Também o jejum está atrelado à caridade. O jejum que agrada ao Senhor está intimamente ligado à comunhão fraterna. Nesta comunhão se vive a fraternidade, e esta não existe sem a caridade. Os que jejuam, fechando-se aos outros, perdem seu tempo. Fora da comunhão fraterna, o jejum se transforma em hipocrisia, abominável aos olhos do Senhor. A caridade e o jejum devem ser vividos na discrição, distante da mania de em tudo querer aparecer. Os que procuram elogios não receberão de Deus nenhuma recompensa, pois já são recompensados pelos que os elogiam.

            O Senhor também ensina a orar. A recomendação é a mesma: é preciso orar no silêncio do coração, sem chamar a atenção dos outros. No seio das Igrejas cristãs, certas práticas de oração não têm outra finalidade senão a busca por elogios e aplausos. As câmeras dos celulares registram o semblante angelical de muitos que vivem orando em pé, nas igrejas e nas esquinas das praças, para serem vistos pelos homens. Quanto maior o brilhantismo, maior é o vazio das orações dos hipócritas! Há muito barulho e muitas selfs, mas pouca oração e comunhão com o Senhor.

            O resultado da ausência da verdadeira oração é a ausência de conversão. Há muitos que oram, mas não abandonam o caminho da iniquidade. Louvam a Deus com os lábios, mas o coração está distante do Senhor (cf. Isaías 29,13). Não há conversão possível quando o coração está distante do Senhor, fechado em si mesmo, habitado e dominado pelo mal. Sem oração não é possível se colocar no caminho de Jesus e nele perseverar. Orar não é somente pronunciar fórmulas e palavras ao Senhor, mas buscá-lo, diuturnamente, para fazer a Sua vontade. A oração exige este permanecer na presença do Senhor, para viver unido a Ele.

            A adoração que se deve prestar ao Senhor é em espírito e verdade (cf. João 4,23), ou seja, na liberdade dos filhos de Deus, independentemente de religião e lugar. O Senhor está em toda parte, e pode ser encontrado por toda pessoa que o procura de coração sincero. Ele é acessível, porque próximo e atento; não dorme nem cochila (Salmo 121,4). A comunhão com Ele vai além do culto oferecido nos templos religiosos, porque o que lhe agrada é o permanecer nele, em espírito e verdade. Na oração, o Senhor se revela e faz o orante conhecer a sua vontade, seu amor e sua salvação. É uma experiência extraordinária no ordinário da vida humana. Na oração é possível ter acesso ao mistério de Deus revelado em Cristo.

            Neste ano, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade, que há décadas é realizada no Brasil, será ecumênica e terá como tema “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”. Dialogar é uma exigência fundamental do caminho de Jesus. A conversão passa, necessariamente, pelo diálogo. Os que dialogam com o Senhor na oração devem dialogar com o próximo no cotidiano da vida. Sem diálogo não existe comunidade, e sem esta não existe Igreja. Para viver em comunhão é preciso dialogar, respeitando a pluralidade de ideias e formas de ser e de agir. O Senhor se recusa àqueles que se fecham ao diálogo frutuoso com o próximo, porque não se ama a Deus e ao próximo sem o diálogo.

            As resistências à Campanha da Fraternidade Ecumênica revelam a necessidade do diálogo. Revelam também a necessidade da conversão do coração. Há uma cultura do ódio e da eliminação do outro infiltrada no seio das Igrejas cristãs. Mas o amor de Deus, semeado nos corações das mulheres e homens de boa vontade é infinitamente superior a todo espírito de discórdia. A mentira não é superior à verdade; pelo contrário, a verdade liberta da mentira e desmascara o mentiroso. Os que escutam a voz do Senhor não seguem os mercenários e oportunistas, mas aderem ao amor que gera comunhão e paz. A Campanha é para gerar fraternidade; os que a ela se opõem não desejam promover o diálogo e a paz.

            A fé em Jesus exige diálogo, comunhão e promoção da justiça e da paz. Os que se dedicam ao ataque sistemático da fé e da comunhão eclesial não prosperarão. Nenhuma forma de violência pode ser legitimada. A violência contra a Campanha da Fraternidade deste ano não possui legitimação alguma. Os que professam a fé em Jesus e possuem consciência de sua missão no mundo devem promover a verdade, jamais a mentira e a confusão. A polêmica em torno da Campanha não é, nem será capaz de impedir a sua realização frutuosa, porque vivemos em um país que clama por justiça e paz. Cristo é nossa paz, e os inimigos desta paz serão vencidos.

Feliz e fecundo itinerário quaresmal, rumo à Páscoa do Senhor!

 

Tiago de França

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Breves considerações sobre a polêmica em torno da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021

 


Ultimamente, os tradicionalistas estão saindo do armário. Sempre existiram, mas não faziam questão de ser tão agressivos. A onda ultraconservadora que tem tomado a política nacional despertou e provocou uma onda tradicionalista no seio do cristianismo católico e não católico, no Brasil.

Nestes breves apontamentos, não quero fazer uma análise minuciosa das semelhanças e diferenças que há entre o tradicionalismo político e o tradicionalismo religioso. Mas qualquer pessoa que se utilize do bom senso e da observação acurada poderá perceber, com certa nitidez, as características e os prejuízos desse movimento violento.

Mais do que em outras épocas, este é o momento de todo cristão, de qualquer Igreja, saber discernir o bem do mal, o que vem de Deus e o que é invenção humana para satisfação de interesses humanos e mundanos. Toda espécie de violência praticada em nome de Deus, obviamente não vem de Deus. Toda espécie de ataque à unidade cristã e à comunhão eclesial, certamente não vem de Deus. E por que podemos afirmar isso com tanta clareza e certeza? Porque Jesus não semeou a discórdia entre as pessoas, mas pregou, com palavras e obras, o caminho da pacificação. Ele é o Príncipe da Paz (cf. Is 9,5).

Desde o tempo dos primeiros cristãos, a discórdia sempre existiu no seio das comunidades. Em todas estas podemos enxergar a ação do diabo, que é pai da mentira e da divisão. Infelizmente, há cristãos que ousam em fazer o papel do diabo, provocando a divisão e a discórdia; transformando-se em inimigos da paz de Cristo. Em nome de Deus e da ortodoxia da fé, muitos se dedicam a caluniar, difamar e injuriar pessoas e instituições. É o que tem ocorrido, com mais veemência e violência, nos últimos tempos, principalmente a partir do pontificado do Papa Francisco.

Os tradicionalistas pregam a obediência, mas, muitos deles, não a vivem. Falam que se deve respeito e obediência aos bispos e ao Papa, mas se revoltam contra os Bispos, a Conferência dos Bispos e ao próprio Papa. Porque não concordam com o jeito de ser, pensar, agir e pastorear do Papa, dedicam-se a desmoralizá-lo. Onde ficam o respeito e a obediência? E a unidade cristã? Pode alguém, em nome de Jesus, participar de um movimento sistemático de perseguição e desmoralização dos Pastores da Igreja? Não seria isso papel de quem aderiu ao estilo de ser e de agir do Anticristo?

No evangelho segundo João, diz Jesus: "Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com os outros" (Jo 13,34-35). Quem calunia, difama e injuria o irmão não o ama, não pratica o mandamento novo dado por Jesus. Portanto, está fora da comunhão eclesial. Não há meio termo, nem se pode tolerar que a defesa da ortodoxia da fé ocorra por meio da violência contra a boa fama das pessoas e das instituições.

Partindo desse pressuposto teológico, que está na base da teologia da unidade cristã, consideremos os últimos ataques à Conferência dos Bispos. Tem circulado nas redes sociais um vídeo, no qual aparece inúmeras mentiras sobre a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. A mentira decorre da falta de conhecimentos básicos e da malícia propositada de colaborar com a divisão da Igreja. Muita gente mal informada e desprovida de formação teológica básica tem se dedicado a destruir a unidade cristã.

Para afastar a confusão, muitas vezes, é preciso esclarecer questões básicas, tais como:

1. O Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) não é uma instituição político-partidária de esquerda, mas um organismo que visa fortalecer o testemunho ecumênico, fomentar o diálogo interreligioso e promover interlocução com organizações da sociedade civil e com o governo para a promoção da justiça e da paz.

2. A Campanha da Fraternidade surgiu na Igreja Católica, com o objetivo de levar os católicos a refletir sobre as questões que afetam diretamente a vida das pessoas, na sociedade e na Igreja. Anualmente, a Campanha é proposta durante o Tempo da Quaresma, por ser um tempo de penitência, oração, caridade e escuta da Palavra de Deus.

3. Pela quinta vez, a Campanha é realizada no formato ecumênico, ou seja, em parceria com outras Igrejas cristãs, principalmente as que integram o CONIC. A Igreja Católica integra o CONIC. O fato de ser ecumênica não significa que a Igreja Católica esteja abrindo mão da sua identidade; pelo contrário, a comunhão com irmãos e irmãs de outras Igrejas é uma necessidade vital para a Igreja Católica, que tem se esforçado para testemunhar Jesus Cristo, de forma ecumênica e interreligiosa, como ensina o Concílio Ecumênico Vaticano II.

4. A Campanha da Fraternidade não fere o espírito quaresmal, mas o torna mais fecundo e necessário. Não se trata de experiência comunista, nem sociológica, mas espiritual, teológica, pastoral e eclesial. O comunismo, como é falado pelos tradicionalistas nas redes sociais, não existe, porque é inventado por quem não se dar ao trabalho de estudar a história e o significado histórico e sociológico dos fatos e dos sistemas políticos e econômicos. No Brasil, o comunismo nunca existiu, nem na política nem no seio das Igrejas cristãs. O que existe é o capitalismo selvagem, expressão viva da atuação da elite econômica, que controla a economia e a política, contando com a conivência de muitos líderes religiosos.

5. O texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021, que tem como Tema: "Fraternidade e diálogo: compromisso de amor", e Lema: "Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade" (Ef 2,14a), não promove a denominada ideologia de gênero. A própria CNBB já se manifestou contra tal ideologia. Não é prioridade da Igreja trabalhar esse tema, apesar da sua importância. As urgências do momento são outras.

O que o texto faz é denunciar os crimes cometidos contra as pessoas que integram a população LGBTQI+, por entender que tais pessoas são filhas de Deus e cidadãs, merecedoras do respeito e da estima dos discípulos de Cristo. Todo ser humano deve ser respeitado e promovido em sua dignidade. À luz do Evangelho, toda forma de preconceito é antievangélica e, portanto, inaceitável.

Por fim, e não menos importante, é preciso recomendar que as pessoas de boa vontade evitem compartilhar textos, vídeos e transmissões de falsos católicos que trabalham contra a unidade da Igreja. Não se deve dar ouvidos a essa gente. Quem se dedica à destruição da comunhão eclesial não deveria ser ouvido. A defesa e promoção da fé cristã passa, necessariamente, pelo respeito, diálogo, tolerância, reciprocidade, compreensão, caridade e pela cultura do encontro. Disseminar mentira e ódio é se colocar, frontalmente, contra a mensagem libertadora de Jesus de Nazaré, que nos deixou outro ensinamento importante e inviolável: "Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim, e eu em ti" (Jo 17,21).

Tiago de França