quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Adeus ano velho, feliz Ano Novo!


        Muita gente não conseguiu chegar ao final de 2020. Os números oficiais falam que já são mais de 194 mil vítimas fatais da Covid-19, sem contar as demais vítimas da violência, do trânsito, de outras doenças e de outras ocorrências. A pandemia segue matando milhares de pessoas em todo o mundo, e parece longe de acabar. Mesmo com a vacinação, a Covid-19 continuará matando muita gente. O cenário é de desespero e desolação, exceto para quem ainda não acredita que estamos em uma pandemia. Infelizmente, muitos iludidos imaginam que tudo não passa de invenção da mídia, apesar de terem notícia das mortes de pessoas próximas.

            A pandemia está revelando o nível de consciência e responsabilidade das pessoas. A cultura negacionista é assimilada por inúmeros brasileiros: alguns negam a existência da pandemia, da mesma forma que negam que existiu a ditadura militar no Brasil; outros negam a eficácia das vacinas contra a Covid-19, recusando-se a se vacinar e influenciando outros a fazerem o mesmo. Nestes dias, por ocasião da celebração do Natal e da virada de ano, muitas pessoas estão se aglomerando, expondo-se ao vírus; e assim a pandemia vai se estendendo e se agravando, ceifando inúmeras vidas.

            A política e a economia também foram afetadas pela pandemia. Nos EUA, Donald Trump caiu, e renovou a esperança de dias melhores para os norteamericanos. O presidente eleito parece mais sensato, sensível e aberto à diversidade das culturas e a um jeito mais decente de fazer política. A democracia daquele país saiu fortalecida das eleições deste ano. No Brasil, a maioria dos eleitores optou pela moderação. Aos poucos e com muito sofrimento, parcela dos brasileiros está descobrindo que os radicalismos, o conservadorismo e o falso moralismo destroem a democracia e geram uma sociedade escandalosamente intolerante, preconceituosa e condenada ao fracasso.

            Economicamente, o real segue sendo desvalorizado; os preços dos alimentos aumentam cada vez mais; o desemprego atingiu mais de 14 milhões de pessoas; o endividamento das empresas atingiu recorde de 60,5% do Produto Interno Bruto; nos últimos quatro anos, segundo o IBGE, o Brasil fechou mais de 316 mil empresas; os preços dos combustíveis continuam subindo; enfim, a pandemia piorou a situação econômica que já estava ruim. Com o fim do auxílio emergencial, aprovado pelo Congresso Nacional, a tendência é piorar. O auxílio reduziu a pobreza em 23%. Isso significa que o seu término aumentará o nível de pobreza. Em 2019, o país alcançou recorde de 13,5 milhões de miseráveis.

            Essa é a nossa situação. Contra as estatísticas não há ideologia que possa criar outra realidade. A violência dos discursos possui a finalidade de esconder a realidade. Não é possível esconder o número crescente das vítimas do feminicídio, do racismo, da violência policial, do tráfico de drogas e do crime organizado, das milícias e da corrupção sistêmica. Esta permanece avassaladora, na política e na sociedade. Essa realidade não é transitória nem acidental, mas permanente e, em muitos aspectos, integra projetos de poder pensados e implementados por gente criminosa, detentora do poder político e econômico. A situação do Brasil retrata fielmente o poder da elite econômica que controla a economia e a política.

            Mas a esperança permanece viva em muitos corações. Aos que professam a fé em Jesus, é preciso recordar esta palavra do apóstolo Paulo: “A esperança não decepciona, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Essa esperança nos impulsiona na caminhada da vida, e o amor de Deus nos sustenta. Assim, pacientes e perseverantes, praticando a justiça e o amor, somos capazes de suportar e vencer esse momento sombrio da história da humanidade. É necessário despertar.

            No amor somos fortes e vencedores. Livres da indiferença e firmes na solidariedade, tudo podemos superar. O Senhor permanece conosco e nos ajuda na travessia.

Feliz Ano Novo!

 

Tiago de França

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A Palavra se fez carne

 


                                         “A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14)

            Anualmente, celebra-se a solenidade do Natal do Senhor. Para aqueles que não vivem em comunhão com o mistério de Cristo, 25 de dezembro é feriado, dia de muita comida e bebida, e de trocar presentes. O mercado ofuscou o verdadeiro brilho do Natal. Apesar da pandemia do novo coronavírus, milhões de pessoas continuam enxergando o Natal como uma excelente oportunidade para comprar e vender. E assim acontece, anualmente.

            Entre os católicos, há os que raramente participam da liturgia da Igreja. Mas costumam aparecer para participarem da Missa de Natal. Muitos retornam na Missa de vésperas de Ano Novo, ou na do dia 1º de janeiro. Trata-se de um jeito esporádico de ser católico. Há uma consciência maior sobre o sentido do Natal entre os que celebram o mistério pascal de Cristo durante todo o ano litúrgico. Estes sabem que não se celebra o aniversário de Jesus, mas o mistério da Encarnação da Palavra, Jesus, o Messias.

            Jesus é a Palavra de Deus, que estava com Deus desde toda a eternidade; é a vida dos homens, luz que brilha nas trevas (cf. Jo 1,4-5). Em Cristo Jesus, temos a encarnação do próprio Deus, que veio armar sua tenda no meio do mundo. Não veio a passeio, mas para permanecer. Ele é o Emanuel, Deus conosco (cf. Mt 1,23). A vinda de Jesus é a prova incontestável do amor de Deus, que jamais abandona o seu povo. O Messias foi enviado para oferecer a salvação a toda a humanidade. Ele é a expressão viva do desejo de Deus: libertar o ser humano do pecado e do poder da morte, fazendo surgir uma humanidade nova. O Messias inaugura a nova e eterna Aliança.

            Jesus, Palavra de Deus, armou a sua tenda no meio dos pobres (cf. Lc 2,6-7). Nasceu pobre não por acaso, mas porque desde os tempos de Abraão, Deus escolheu um povo frágil e pobre. Do Gênesis ao Apocalipse, as Escrituras falam da predileção divina pelos pobres. Deus ama toda a humanidade, mas seu amor se dirige especialmente aos pobres e sofredores. Estes são mais vulneráveis e, por isso mesmo, carecem de mais atenção e cuidado. A pobreza do Messias é a riqueza de todo o povo de Deus. Contemplando o Messias na manjedoura, os pobres e sofredores compreendem o sentido do Natal. No presépio natalino, o Senhor nos diz: “Eis o Messias, vosso Salvador. Ele veio para vós”.

            Jesus nasce hoje entre os pobres e sofredores de todos os povos e nações. No Brasil, Ele permanece e sofre na vida dos mais de 14 milhões de desempregados; dos familiares das vítimas da Covid-19; dos que se encontram internados nos hospitais e os que estão desenganados pelos médicos; dos familiares das vítimas da violência, principalmente as vítimas de policiais criminosos; das crianças e idosos explorados; dos que estão doentes, psicologicamente, sofrendo com depressão, ansiedade, síndromes e traumas; dos injustiçados, vítimas da arbitrariedades dos poderosos (empresários, juízes, políticos, patrões desonestos etc.); dos que são explorados por líderes religiosos mercenários etc. Todos esses e tantos outros sofredores pertencem à tenda do Senhor. Todos estão sob o olhar misericordioso e amoroso de Deus. Ai daqueles que ferem a dignidade desses filhos e filhas de Deus!

            A Igreja tem consciência de que não pode celebrar o Natal de Jesus ignorando os pobres e sofredores. A liturgia solene do Natal nos fala de encarnação, ou seja, da participação na carne de Cristo, e de Cristo na carne humana. Os pobres e sofredores são a carne de Jesus Cristo. Sem comunhão com a carne de Cristo não há Natal, mas aparência de Natal. Essa comunhão vai além das cestas de Natal dadas aos pobres, que também são importantes, pois muitos passam fome. Esta exige alimento, imediatamente. Mas também exige geração de emprego e renda. A comunhão com a carne sofrida de Jesus não é experiência desligada do necessário encontro com os pobres. Não se adora a carne sofrida de Jesus somente na adoração eucarística, mas, sobretudo, nas feridas abertas dos que sofrem.

            O Espírito do Senhor, que fecundou o ventre da Virgem Maria, torna o cristão capaz de viver em comunhão com a carne sofrida de Jesus, o Messias. Esse mesmo Espírito liberta da indiferença, do obscurantismo e da desunião. A celebração da encarnação da Palavra deve levar o cristão a despertar para a construção de um mundo novo, no qual a justiça do Reino de Deus ocupe lugar central. Sem essa justiça, a paz não é possível. Que o Natal de Jesus desperte o coração de todo cristão para o compromisso com essa justiça, que exige o feliz encontro com os sofredores deste mundo!

Feliz Natal!

Tiago de França

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

A fé em Jesus e a vacina contra a Covid-19

 

(Foto: Istock foto)

       No seio de inúmeras Igrejas cristãs, muitas pessoas têm dito que não se vacinarão contra a Covid-19. Muitas são as fake news que circulam nas redes sociais, levando muita gente desinformada a crer que a vacina é um mal, não um bem à saúde humana. A desinformação causa tanto mal quanto o novo coronavírus.

            Pessoas desinformadas acreditam nas várias mentiras que se falam sobre a vacina, oriunda de vários laboratórios renomados. Dentre as mentiras se destacam as seguintes: afirmam que ela contém o vírus HIV; que causa paralisia em todo o corpo; que transforma a pessoa em um jacaré; que transforma a pessoa em homossexual; que causa impotência sexual; que faz cair o cabelo; que causa cegueira; que provoca alergia e problemas cardíacos; que é usada pelo governo para matar, em primeiro lugar, os aposentados; que a vacina chinesa é a mais perigosa, porque a China é comunista (a vacina chinesa contém o vírus do comunismo!) etc. Muitos outros absurdos sobre a vacina circulam nas redes sociais.

            É conhecida a posição do presidente da República, que nega a eficácia da vacina, principalmente a chinesa, e que já afirmou que não irá se vacinar. É algo inédito na história da República brasileira, porque nunca tivemos um presidente que tenha sido contrário a nenhum tipo de vacina. Essa posição do presidente também influencia muitos desinformados. É claro que qualquer pessoa, incluindo o presidente, pode se negar a se vacinar. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a vacinação contra a Covid-19 deve ser obrigatória, mas nenhum cidadão será forçado a se vacinar.

            Em tempos sombrios, marcados pelo obscurantismo, é preciso afirmar o óbvio: a finalidade da uma vacina não é provocar doenças, mas preveni-las. Desde a infância, todo brasileiro recebe inúmeras vacinas. Nunca houve um movimento tão forte, contrário à vacinação. Se o presidente da República fosse favorável à vacinação, e tivesse se empenhado para que a mesma se efetivasse da forma mais ágil e organizada possível, como ocorre em vários países do mundo, principalmente na Europa, certamente, no Brasil, a confusão em torno da vacina não existiria.

            O problema é que o presidente e o governador de São Paulo transformaram a vacinação numa questão política, visando as eleições de 2022. Como o governador aderiu à vacina chinesa, o presidente passou a se opor, principalmente, à “vacina comunista”. Essa situação é vergonhosa e lamentável, porque leva a crer que tanto o presidente quanto o governador não estão preocupados, em primeiro lugar, com a saúde das pessoas, mas se utilizam da vacina para se promover no cenário político nacional. Uma das evidências disso é o pedido que o governador fez ao país comunista, para que a vacina, no Brasil, seja denominada “vacina do Brasil”.

            Ninguém precisa ser oposição política ao presidente para constatar essa realidade. Não é novidade para ninguém que o presidente adota o negacionismo em questões científicas. Para o presidente e seus seguidores/admiradores, a palavra da ciência não tem muito valor. A existência da pandemia, a periculosidade do novo coronavírus, a produção e eficácia da vacina são evidências científicas. Contra tais evidências, o senso comum não tem nenhuma força, porque são realidades devidamente estudadas e comprovadas. O bom senso exige o reconhecimento daquilo que a ciência consegue comprovar, pois graças a esta a Covid-19 poderá ser controlada e erradicada.

            O que a fé em Jesus tem a dizer sobre a ciência e a confusão gerada pelo negacionismo? A Igreja Católica não se opõe à ciência; pelo contrário, inúmeros sacerdotes e leigos se dedicaram às pesquisas científicas. A história da Igreja comprova isso. Há um diálogo possível e fecundo entre fé e ciência, porque são realidades que não se excluem. Recentemente, a Congregação para a Doutrina da Fé manifestou-se por escrito, reconhecendo a possibilidade de se receber vacinas contra a Covid-19 que utilizem as linhagens celulares de fetos abortados na sua pesquisa e processo de produção.

            Considerando que a Igreja prega o Evangelho de Jesus Cristo, cujo núcleo fundamental é a promoção e defesa da vida e da dignidade da pessoa humana, o Papa Francisco recordou a necessidade de as vacinas serem acessíveis para todos, especialmente aos mais pobres e vulneráveis. Na audiência do dia 19 de agosto deste ano, disse o Papa: “Seria triste se a prioridade da vacina contra a Covid-19 fosse dada aos mais ricos. Seria triste se isso se transformasse na prioridade de uma nação e não fosse destinado a todos”. No início de 2021, toda a população do Estado do Vaticano será vacinada, incluindo, obviamente, o próprio Papa Francisco.

            A fé em Jesus não impede que uma pessoa seja vacinada. Afirmar o contrário seria um absurdo. Portanto, um cristão afirmar que não pode ser vacinado por causa da sua fé em Jesus, é algo sem sentido. Também é reprovável a atitude de todo e qualquer líder religioso que induz as pessoas a não se vacinarem. Tal atitude é passível de verificação criminal, porque coloca a vida das pessoas em risco. É gravemente ilícita a atitude de quem, disseminando mentiras, induz as pessoas a não se vacinarem. Quando um líder religioso se atreve a isso, também incorre em pecado grave. O cristão deve aderir à verdade, não à mentira, principalmente quando esta coloca em risco a vida das pessoas.

            Outra atitude reprovável ao cristão é não se vacinar pensando que, uma vez se contaminando, Jesus certamente realizará a cura da Covid-19. Jesus tem poder para curar uma pessoa? Claro que sim! Mas isso é justificativa para recusar a vacina? Claro que não! Os pais podem, em nome da fé em Jesus, deixar de vacinar seus filhos? De modo algum! Confiando na fé que tem em Jesus, pode o cristão se expor ao mal? Quando o diabo pediu para Jesus se lançar no precipício, argumentando que Deus enviaria seus anjos para protegê-lo, eis o que o Mestre respondeu: “Também está escrito: Não porás a prova o Senhor teu Deus” (Mt 4,7).

            Milhares de cristãos já morreram por Covid-19 em todo o mundo. Muitos eram ministros ordenados, homens ungidos por Deus para o apostolado na Igreja e no mundo. Por que a fé dessas pessoas não as livrou da morte? Os teimosos podem argumentar que a fé dessas pessoas não era suficientemente grande! Esse tipo de julgamento não convém fazer. Somente Deus pode julgar a fé das pessoas, porque somente Ele conhece o coração humano. Muitos desses teimosos hoje estão sepultados, porque não se preveniram: pensavam que a Covid-19 seria incapaz de tirar-lhes a vida.

            A fé cristã rima com bom senso, prevenção e cuidado. A vida humana é frágil e exige cuidado permanente. Toda pessoa precisa cuidar da saúde física e mental. A fé em Jesus não dispensa, nem substitui esse cuidado. Cuidar-se é ser responsável por si mesmo e pelos outros. Essa responsabilidade não pode ser transferida para Deus. O Senhor dotou o homem de inteligência, sensibilidade e disposição para a promoção e defesa da vida humana.

A vacina contra Covid-19 é fruto da inteligência humana, capaz de encontrar solução para os problemas que afligem toda a humanidade. Neste momento da história, crer e vacinar-se são imprescindíveis para a preservação da vida. A vida está em primeiro lugar. Toda crença que fere e ameaça a vida é incompatível com a mensagem do Evangelho de Jesus. Deus acredita no homem, e este deve aprender a confiar na capacidade que tem para colaborar com a ação salvífica de Deus.

Tiago de França

domingo, 20 de dezembro de 2020

Maria e o mistério do Natal

 


“Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)

            O personagem central do mistério da Encarnação é Jesus, o Messias. Mas Maria possui um lugar importante nesse mistério. O texto para nossa meditação (cf. Lc 1,26-38) traz alguns detalhes reveladores, já no momento da anunciação. O anúncio do Anjo é uma boa notícia para a vida de Maria, mulher que encontrou graça diante de Deus. As primeiras palavras do Anjo falam de alegria e de graça. A escolhida por Deus deve se alegrar, porque é cheia de graça para viver uma missão sublime: conceber e dar à luz a Jesus, o Santo de Deus.

            Antes da ação do Espírito que a fecunda, o Senhor já estava com ela. Maria é mulher do povo de Deus, conhecedora de promessas divinas. O Anjo fala de alegria, porque nela estava se realizando tais promessas. Os pobres do povo de Deus esperavam o Messias, e o anúncio de sua vinda revela bem isso: o Anjo foi enviado a Nazaré, uma cidade de pouca importância da Galileia. Maria, virgem prometida em casamento, não era uma mulher rica, nem ocupava posição importante na sociedade judaica da época. Aliás, a mulher não tinha papel importante numa sociedade de cultura patriarcal.

            Após ter falado da alegria, o Anjo fala do medo: Não tenhas medo, Maria... Ele a chama pelo nome. Na Bíblia, o nome identifica a pessoa e sua missão. Pelo nome, o Senhor se dirige diretamente, sem meias palavras. Ele explica o que vai acontecer, revelando o seu plano de amor. O Senhor a tornou digna de conhecer seus desígnios. Maria foi a primeira mulher que conheceu o significado da nova e eterna Aliança. O Senhor envia o seu Anjo com a missão de anunciar, e este anúncio contempla o necessário entendimento daquilo que Deus quer e planeja fazer.

            O Anjo fala do medo porque Maria, na sua simplicidade e pequenez, ficou perturbada com as suas palavras. E o texto segue dizendo que ela começou a pensar sobre o significado da saudação. As coisas do Senhor podem ser pensadas, porque a pessoa humana é dotada dessa capacidade. Pensar sobre o significado da missão que o Senhor propõe é ação imprescindível, porque ninguém pode responder ao chamado divino sem que tenha alcançado a necessária clareza do projeto de Deus. Maria alcançou o entendimento da sua bela missão.

            Quem é o filho de Maria? O Anjo responde que ele é Jesus, Filho do Altíssimo, Santo de Deus e aquele que reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim. Ela compreende bem quem é Jesus, porque conhecia a história do povo de Deus, que falava da promessa do Messias. A sua questão foi: Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum? Ela não convivia com José, seu futuro esposo. Era prometida em casamento. Maria esperava o Messias e vivia a promessa de casamento. Portanto, conhecia bem o significado da promessa. Maria é portadora da promessa divina e, simultaneamente, da sua realização.

            Com Maria, o cristão aprende a confiar nas promessas de Deus, porque sabe que Ele as cumpre. Ao aceitar e cumprir a missão que lhe foi confiada, Maria ensina a observar a vontade de Deus. Tendo compreendido a proposta divina, ela não resiste: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra! Ela é a serva do Senhor. Não é serva de nenhum poder opressor, nem dos caprichos dos homens, mas servidora do Altíssimo Senhor. Ela se tornou a mãe do Rei que reinará para sempre; Rei que passou a ser venerado e adorado por inúmeros povos, em todas as épocas e lugares.

            Eis aqui: expressão de quem se coloca à disposição, sem reservas e sem medo. A disponibilidade de Maria é exemplo para todos os que desejam seguir Jesus. A missão a exige, e faz o discípulo entrar na dinâmica do discipulado. Sem permanecer à disposição, o discípulo não aprende e, consequentemente, não é capaz de assumir os desafios da missão. Em tempos de pandemia do novo coronavírus, o que seria da humanidade sem esta disponibilidade que faz tanta gente se colocar a serviço dos outros?... A solidariedade somente existe quando as pessoas estão disponíveis para os outros.

            O texto também fala de Isabel, parenta de Maria, e mãe do profeta João Batista. Considerada estéril e de idade avançada, Isabel já estava grávida. O Anjo apareceu a Maria no sexto mês da gravidez de Isabel. Para fazer com que Maria compreendesse o poder de Deus, o Anjo faz questão de dizer que para Deus nada é impossível. Não há nada neste mundo que impeça a realização dos desígnios do Senhor. As pessoas são livres para aceitarem ou não o projeto de Deus, mas a sua realização acontece, independentemente da vontade e da ação humanas. Deus tem seus caminhos e, na liberdade, cumpre o que promete e realiza o seu Reino.

            Os que confiam no Senhor sabem que Ele é assim. Por isso, nele confiam e esperam. Por mais sombrios que sejam os dias atuais, o Senhor permanece presente, enviando seus anjos para anunciar a Boa Notícia da Libertação. Mais do que em outras épocas, as mulheres e homens de hoje precisam ser libertados, e precisam, também, aprender a trilhar o caminho da liberdade. Este é o caminho do Senhor, porque o Seu desejo é que surja uma nova humanidade, constituída por mulheres e homens livres, respeitados em sua dignidade, praticantes da justiça do Reino, única capaz de gerar a paz de que tanto precisam. Que o SIM de Maria inspire tantas outras pessoas a ousarem professar o mesmo SIM! Assim seja.

Tiago de França

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O itinerário da conversão

 


“Que é o homem, para que nele penses, e o ser humano, para que dele te ocupes?” (Sl 8,5)

            A conversão é uma exigência fundamental do seguimento de Jesus. Partindo dessa premissa, a presente reflexão visa oferecer algumas provocações sobre o tema da conversão na vida cristã e eclesial. Essa indagação do Salmo 8, transcrita acima, revela a porta de entrada do processo de conversão: o reconhecimento da fragilidade e da pequenez do ser humano.

Sem reconhecer-se pecador, não é possível iniciar o itinerário da conversão. Mas é preciso considerar um dado importante, que antecede a esse reconhecimento: o Senhor chama e, imediatamente, concede a graça do reconhecimento da fragilidade e da pequenez humanas. Na oração e na escuta dos sinais que vão se manifestando no cotidiano da vida é possível identificar a acolher essa graça.

            Isso significa que a iniciativa da conversão é de Deus. Sozinha e entregue às próprias forças, nenhuma pessoa consegue trilhar o caminho da conversão. Deus chama e concede a graça de iniciar e perseverar no caminho. Em outras palavras, a conversão de uma pessoa não é resultado de mérito pessoal, mas da abertura permanente à ação da graça de Deus. Esta graça não atua de forma mágica, nem está submetida aos caprichos humanos. A graça é dom do Espírito de Deus, que age no tempo marcado por Deus. É Deus quem conhece o momento de todas as coisas, quem direciona a pessoa para a verdadeira felicidade. Pe. Cícero de Juazeiro costumava dizer que “Deus conduz o homem por caminhos que somente Ele conhece”.

            Em muitos casos, o Espírito infunde na pessoa, de forma extraordinária, a graça. Essa efusão provoca um despertar para Deus. De repente, a pessoa passa a enxergar a vida de outra maneira. Não se trata de momento mágico, que possa ser experimentado mediante uma invocação voluntária da pessoa, como se esta tivesse o poder de controlar a ação do Espírito. Deus não pratica magia. O seu agir é discreto, silencioso e amoroso. A ação da sua graça faz a pessoa enxergar a si mesma, suas potencialidades e limites, luzes e sombras. Esse despertar é pura ação da graça de Deus, jamais obra humana.

            Mas Deus não age de forma forçada. Sem a cooperação da vontade humana ninguém muda de vida. O querer humano é importante, e Deus espera a manifestação do desejo de mudança. Santo Agostinho dirá, sabiamente: “Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Esse santo do séc. V é um exemplo de homem que soube acolher a graça divina para trilhar o árduo e feliz itinerário da conversão.

Santo Agostinho não nasceu santo. Aliás, ninguém nasce santo, mas todos recebem o chamado à santidade. Os que respondem, generosamente, a esse chamado, inevitavelmente, trilham o caminho da conversão. Os santos e santas de Deus são pessoas convertidas, que aceitam o desafio da santidade e se deixam lapidar pela ação da graça divina. Essa graça, que é dom do Espírito, é concedida na liberdade e para a liberdade. Deus não age de forma impositiva. A pedagogia divina, revelada nas Escrituras Sagradas, mostra que Ele seduz a pessoa, com a força da sua graça, e a conduz à vida plena.

No caminho da conversão, o cristão cai e se levanta. Não há cristão convertido que não volte a pecar, aqui e acolá. Isso ocorre porque ninguém é perfeito. O Espírito não anula, nem substitui a natureza humana, corrompida pelo pecado. O apóstolo Paulo explicita bem a condição humana ao afirmar o seguinte: “Sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não habita: querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero” (Rm 7,18-19). Não adianta aparentar perfeição, nem se manifestar superior aos outros, porque tais atitudes são, por si mesmas, pecaminosas.

No caminho de Jesus não se caminha sozinho. O itinerário da conversão é, essencialmente, comunitário. Jesus realizou a sua missão contando com a fraterna colaboração de seus discípulos. Sozinho e isolado ninguém muda de vida. A conversão acontece mediante o exercício da caridade: ajudando-se uns aos outros, o itinerário se torna menos pesado e mais suave. Saindo de si mesmo para viver em fraternidade, as potencialidades são ativadas e desenvolvidas; a transformação acontece, sem atropelos. É para viver em comunidade que o cristão se converte. Portanto, quem trilha o caminho da conversão se afastando dos outros, encontra-se numa profunda contradição.

Arrogância, espírito de superioridade, mania de grandeza, competitividade, mundanismo espiritual, e outras manias e males que caracterizam uma falsa espiritualidade cristã, não fazem parte do itinerário da conversão. Os que se encontram nesse itinerário se tornam mansos, alegres, generosos, disponíveis, íntegros, amigos, humildes, desapegados, abertos aos outros, capazes de amar. Trata-se de um processo gradativo, que exige paciência, perseverança, fé e entrega. Para avançar no itinerário da conversão, a pessoa precisa ser como o barro nas mãos do oleiro (cf. Jr 18,1-6). Nas mãos de Deus, o oleiro fiel, a pessoa está segura e poderá, deixando-se moldar, transformar-se naquilo que Deus quer: uma nova criatura, conformada a Cristo Jesus.

Atualmente, assiste-se a uma crescente desumanização da pessoa humana. Vive-se uma grave crise civilizacional. O individualismo, o relativismo e o materialismo destroem a dignidade da pessoa humana. O capitalismo selvagem não considera, nem respeita essa dignidade, mas coisifica as pessoas, instrumentalizando-as. Os bens materiais passam a ter mais importância que as pessoas.

A pandemia do novo coronavírus, apesar de ter ceifado a vida de milhares de pessoas, parece não ter sido suficiente para tornar inúmeras pessoas mais sensíveis e humanas. Muitas vezes, o sofrimento é incapaz de despertar a compaixão e a solidariedade. O itinerário da conversão gera nas pessoas sentimentos de compaixão e ternura, impulsionando-as à ação amorosa e transformadora. Para ser transformada, a sociedade precisa de pessoas mais justas e fraternas, mais cordiais e verdadeiramente humanas. O mundo carece, urgentemente, dessas pessoas.

Tiago de França

sábado, 28 de novembro de 2020

Advento: acolher o Cristo que vem

 


“Vós sabeis em que tempo estamos, pois já é hora de despertar” (Rm 13,11).

            Na Igreja Católica, o ano litúrgico se inicia com o Tempo do Advento: tempo de vigilância e esperança. Essas são as duas palavras que falam da teologia e espiritualidade deste importante tempo para a vida da Igreja. Dois grandes momentos do mistério pascal de Cristo são precedidos de um tempo de preparação: o Natal e a Páscoa. O Advento prepara o Natal e a Quaresma prepara a Páscoa. Muito sábia a Mãe Igreja ao conduzir seus filhos e filhas a um caminho claro e feliz de preparação para a celebração dos mistérios da encarnação do Filho de Deus e Senhor Nosso Jesus Cristo, e de sua Páscoa, festa sublime da Ressurreição.

            Das vésperas do 1º Domingo do Advento até o dia 16 de dezembro, as leituras apontam para o mistério da parusia do Senhor. Chama-nos à vigilância sincera e ativa, para uma espera fecunda do Cristo que virá. Este Cristo, Senhor da História e Filho do Homem, julgará a todos com justiça, segundo o amor (cf. Mt 25,31-46). A volta definitiva do Senhor é certa, mas de data desconhecida. A ninguém revelou o quando de sua volta para o julgamento definitivo. Por isso, a Igreja chama seus filhos e filhas à vigilância ativa. Não se trata de uma espera passiva e melancólica, mas marcada pelo agir missionário. Esperamos a vinda gloriosa do Senhor, observando o seu mandato missionário.

            A espera do Cristo que vem precisa ser dessa forma, porque o Senhor quer nos encontrar em ação, jamais parados, “olhando o tempo passar”. Batizados e enviados, os cristãos são continuadores da missão do Senhor. Ungidos pelo Espírito, são incansáveis nessa missão. Destemidos e confiantes, esperam o Senhor com os pés na estrada e as mãos abertas e estendidas na direção do próximo, servindo gratuita e generosamente. Segundo a teologia do Papa Francisco, é preciso esperar o Senhor sendo Igreja em saída missionária, manifestando a misericórdia de Deus ao mundo.

            Quando escreve aos romanos, Paulo nos recorda o sentido dessa vigilância (cf. Rm 13,11): “... já é hora de despertar”. Este despertar indica-nos a necessidade da conversão. Advento também é tempo de conversão. É no caminho de Jesus que o discípulo missionário de Jesus se converte. Não há possibilidade de conversão fora desse caminho, porque com Jesus é que se aprende a ser santo. Ele é a fonte de toda santidade; esta “é o rosto mais belo da Igreja”, nos ensina o Papa Francisco na sua exortação apostólica Gaudete et Exsultate, n. 9. Na presença do Senhor e guiado por seu Espírito, o cristão caminha rumo à plenitude da vida, manifestada em Jesus, o Verbo de Deus.

            Do dia 17 a 24 de dezembro, a Igreja convida a uma preparação fecunda para a celebração do mistério do Nascimento do Senhor. Nesses dias, as leituras falam da esperança do povo de Deus. A leitura do profeta Isaías revela, assim como outros profetas, a promessa do Messias. Em Isaías 40,3 aparece a referência a uma voz que clama e convida para que se prepare um caminho para o Senhor.

No Novo Testamento, os evangelistas falam de João Batista, que é esta voz forte, chamando à conversão e à acolhida do Messias. Na voz do profeta João Batista encontramos uma orientação fundamental para a justa e necessária preparação da solene festa do Natal do Senhor: despertos, trilhando um caminho de justiça e santidade, preparamos o coração para a acolher aquele que vem “...para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz” (Lc 1,79). Quão belo e profundo é o mistério d’Aquele que jamais abandona o seu povo!

O profeta João Batista evidencia a esperança do povo de Deus, alicerçada na confiança que esse povo tinha na realização das promessas divinas, recordadas ao longo do tempo; e os profetas eram os responsáveis por essa recordação. Em sua vida, “Jesus assumiu em si mesmo a totalidade da esperança excepcional do seu povo. Nele ressoa essa esperança. Ele é um arauto dessa esperança de Israel” (Comblin, José. Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 2010, p. 85). Portanto, o Pai de Jesus é o Deus da consolação, que fiel às suas promessas, enviou o seu único Filho para salvar “...o seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21).

Consciente de sua missão no mundo, a Igreja é depositária dessa mesma esperança, e procura, apesar de suas fraquezas, colocar-se a serviço de todos os empobrecidos deste mundo, que vivem essa esperança em suas dores e sofrimentos, porque “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n.1). A Igreja prepara a celebração do Natal do Senhor vivendo a esperança do povo de Deus, porque a Igreja é povo de Deus.

Para que a celebração do Natal não seja reduzida a uma data festiva, com muita comida e bebida, e troca de presentes, cada cristão é chamado a refletir sobre a encarnação de Jesus na sua vida e na vida do mundo. Neste sentido, algumas questões podem nos ajudar a refletir sobre esse divino mistério de amor: Tenho acolhido o Cristo pobre e sofredor que sempre aparece em minha vida? Tenho buscado conhecer esse Cristo mais de perto, para crescer na fé e no amor? Minha vida é reflexo do infinito amor de Deus, ou tenho vivido distante de Deus? Estou disposto a acolher Jesus e seu projeto de amor para a vida do mundo? Integro o número daqueles que acreditam e trabalham por um mundo mais justo ou fraterno, ou reforço as forças do mal que destroem a vida humana e a natureza? Motivados por essas questões somos chamados a examinar a nossa consciência, para vivermos uma sincera conversão, “pois já é hora de despertar” (Rm 13,11).

Feliz itinerário rumo ao Natal do Senhor!

Tiago de França

sábado, 21 de novembro de 2020

Jesus: rei compassivo

 


“Vinde, benditos do meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,34).

            Jesus, o Filho do Homem, virá em sua glória para exercer o julgamento. Mas ninguém precisa sentir medo, porque o julgamento será nos termos da lei do amor (cf. Mt 5,31-46). Longe de qualquer espírito de vingança e crueldade, Jesus é um juiz justo e compassivo, conhecedor da condição humana, porque a viveu, intensa e plenamente. Portanto, seremos julgados por alguém que participou da nossa condição. Jesus sabe do que somos feitos.

            É verdade que não se pode tomar o texto de Mateus, acima referenciado, ao pé da letra, no sentido de pensar que o juízo final será tal como o texto apresenta. O mais importante é prestar atenção às exigências que Jesus, o rei compassivo, faz ao acolher as ovelhas do rebanho do Senhor, que ficarão à direita do trono. Os benditos do Pai de Jesus são todos aqueles que praticam a lei do amor: os que dão comida aos famintos, que matam a sede dos sedentos, que recebem o estrangeiro, que vestem os nus, que cuidam dos doentes e os que visitam os encarcerados. Os que vivem nessas e em tantas outras situações de necessidade são chamados de meus irmãos mais pequeninos.

            Aqui já é possível uma séria avaliação da consciência para saber se estamos ou não servindo a esses irmãos mais pequeninos de Jesus. No texto, ele fala que tudo o que fazemos a estes irmãos é a ele que fazemos. Ou seja, o rei compassivo é um desses irmãos. Ninguém pode mudar isso. Não adianta o líder religioso pregar na Igreja que Jesus é todo-poderoso, um rei triunfante, como os reis humanos. Tal imagem de Jesus é incompatível com o Evangelho, porque ele é um irmão pequenino. Quer aceitemos, quer não, ele é assim.

            Também é possível que cada cristão cuide em rever, se for o caso, a imagem que tem de Jesus. Se ele é rei compassivo, identificado nos irmãos menores, desprovidos de poder humano, então é necessário aceitá-lo e acolhê-lo nesses irmãos menores. Do contrário, no julgamento, ouviremos a seguinte sentença: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Todo aquele que se fecha em si mesmo, permitindo-se dominar pelo egoísmo, buscando somente a satisfação dos próprios interesses, não será acolhido no Reino, preparado desde a fundação do mundo para aqueles que viveram neste mundo a lei do amor.

            Olhando para o mundo atual, encontramos tanto individualismo e indiferença. Com a máxima urgência, o discípulo de Jesus precisa livrar-se desses males que podem ser a causa de sua perdição eterna. Os egoístas não entrarão no Reino de Deus. Por mais religiosa que seja uma pessoa, mas se não se libertar do egoísmo, não entrará no Reino de Deus. Jesus, o rei compassivo, no juízo final, não perguntará sobre o grau de religiosidade das pessoas, mas acolherá aquelas que viveram conforme o amor. Mas não um amor de palavras, mas de gestos concretos. Os que fecham os olhos para a necessidade dos outros não poderão participar do Reino de Deus.

            Alguém poderia perguntar: se é o amor que salva, para que serve, então, religião? Certamente, não é Deus que precisa de religião, mas nós, humanos. As doutrinas, ritos, normas etc., servem para manter o discípulo de Jesus no caminho do serviço aos irmãos. A religião tem a missão de congregar as pessoas, de reuni-las para celebrar o mistério do amor. Também é missão da religião ajudar a mantê-las unidas no propósito de viver conforme o amor.

Por meio dela, o cristão aprende que ninguém é salvo afastado dos outros, mas vivendo o amor em comunidade, porque é da natureza desse amor promover o encontro entre as pessoas; encontro permanente, nunca ocasional. As pessoas devem se encontrar para permanecerem no amor. Se a religião não servir a este propósito, então não passa de uma pedra de tropeço na caminha dos discípulos de Cristo, rei compassivo. É na comunidade cristã que o discípulo do rei compassivo aprende o significado da compaixão, vivendo uma vida cheia de sentido e alegria, porque descobriu, na prática, os sentimentos que conduziam Jesus na direção dos famintos, sedentos, nus, enfermos, migrantes, pecadores etc.

Por fim, cabe-nos citar a exortação do apóstolo Tiago, que diz: Com efeito, a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo. Esses órfãos e viúvas representam todos os irmãos menores de Jesus, e o discípulo sabe onde eles se encontram. A religião precisa tornar as pessoas sensíveis às causas que promovem e cuidam desses irmãos; do contrário, por mais belas que sejam as nossas liturgias, nenhuma delas agradarão ao Pai celestial se não forem acompanhadas do testemunho do amor fraterno. Nestes tempos de pandemia do novo coronavírus, onde estão os irmãos mais pequeninos de Jesus? Procuramos viver em comunhão com eles, ou lhes fechamos os olhos?...

Tiago de França

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre a polêmica em torno da fala do Papa Francisco em relação aos homossexuais



            Muitas das reações negativas sobre a fala do Papa Francisco em relação aos homossexuais são um tanto sintomáticas. No seio da Igreja Católica encontramos um grupo significativo de pessoas que, sempre que tem oportunidade, polemiza as falas do Papa Francisco. Quem tem apreço pela verdade também não pode perder a oportunidade para desmascarar essa gente.

A fala do Papa, veiculada em inúmeros jornais, aponta para duas necessidades: deve-se acolher o homossexual, e tal acolhimento, na sociedade civil, deve ser promovido por leis que o protejam dos ataques dos homofóbicos. Discute-se se o Papa apoia ou não a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Todos conhecem a doutrina tradicional da Igreja no que se refere ao matrimônio. O Papa mudou essa doutrina? Não! Então, por que a polêmica?

A Igreja Católica regula a sociedade, com sua doutrina e com a lei canônica? Não! Essa não é a sua missão. As sociedades têm suas constituições, leis e costumes. No Brasil, o Estado é laico. A laicidade do Estado promove a liberdade religiosa e a tolerância, mas não confere a nenhuma denominação religiosa o poder de regular a vida social. No passado, a Igreja participava de muitos acordos que regulavam a ordem social, mas hoje não existe mais isso. Os Poderes da República são livres para organizar a vida social. Pode a Igreja opinar, criticar, denunciar e se opor a tudo aquilo que contraria a Lei de Deus? Claro que pode!

Se o Papa concordar com a necessária criação de leis que protejam os homossexuais, estaria ele contradizendo a doutrina da Igreja? Claro que não! Há um princípio evangélico que rege a vida cristã: da igual dignidade dos filhos de Deus. O heterossexual é superior ao homossexual? Quem responde positivamente a essa questão, nega o princípio da igual dignidade dos filhos de Deus, bem como o princípio da igualdade que consta no art. 5º, caput, Constituição da República. O homossexual é menos pessoa que as demais pessoas? Claro que não! Fazer tais afirmações é promover o que chamam de "cultura gay"? Claro que não! O Papa não está promovendo a "cultura gay", mas está preocupado com a dignidade das pessoas. São coisas diferentes.

A nossa época é marcada pela necessidade da explicação do óbvio. Mas por que nos encontramos nessa vergonhosa situação? Porque faltam estudo, leitura e interpretação de texto. Faltam também respeito, compreensão, acolhimento, tolerância e alteridade. O que uma pessoa ganha ao distorcer a fala de um Papa, ou de qualquer outra pessoa, com o intuito de prejudicar e diminuir? Absolutamente, nada! Dentro e fora da Igreja, precisamos crescer em maturidade e conhecimento. A ignorância gera conflitos desnecessários. Os críticos do Papa poderiam se dar o trabalho de, pelo menos, ler todos os seus textos, para descobrir que o Papa tem procurado, insistentemente, defender e promover a dignidade dos pobres e das demais categorias de pessoas excluídas.

Por fim, é preciso considerar que o cristão pode e deve denunciar as injustiças que se cometem neste mundo. E esta é a razão que me levou a escrever esse texto. Uma pessoa até pode não se identificar com o fato de alguém ser homossexual, mas jamais pode se utilizar disso para julgar e condenar. É possível que se reprove determinados excessos e desvios cometidos por heterossexuais e homossexuais, em todos os âmbitos, mas é inaceitável que se utilize da doutrina da Igreja para julgar e condenar os homossexuais. Não foi para isso que a doutrina foi criada. A doutrina condena erros, não pessoas. Somente Deus tem o poder de julgar uma pessoa, e este poder não foi conferido a ninguém (cf. Mt 7,1-2).

Tiago de França

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Maria: modelo dos servidores do Evangelho

 


      Neste dia em que a Igreja católica no Brasil celebra a solenidade de Nossa Senhora Aparecida, a liturgia nos oferece o texto de Jo 2,1-11, que narra a festa de casamento em Caná da Galiléia. Para essa festa foram convidados Jesus, seus discípulos e sua mãe.

O texto conta que o vinho da festa acabou, e Maria logo percebeu. Ela sabia que Jesus poderia fazer alguma coisa, pois conhecia o seu filho. Interessante essa percepção de Maria, prova de sua sensibilidade. Aqui já podemos pensar sobre o valor da sensibilidade para a vida cristã.

Nossos dias são marcados pela insensibilidade, que manifesta o terrível pecado da indiferença. Quem tem fé em Jesus não pode ser insensível à dor do outro, porque o encontro com Jesus é encontro com o outro, que existe em determinado contexto. A falta do vinho simboliza a ausência de amor, perdão, solidariedade, justiça, mansidão, paz, e de tudo o que é necessário para vivermos dignamente.

O discípulo de Jesus, guiado pelo Espírito do Senhor, consegue identificar a falta do vinho, e não fica parado, esperando que alguém faça alguma coisa. Maria não ficou parada, mas foi até Jesus. Ela sabia que Jesus não iria ficar indiferente.

Olhando para os discípulos de Jesus, Maria diz: "Fazei o que ele vos disser". É como se dissesse: "Fiquem atentos, porque Jesus vai fazer alguma coisa para que a festa possa continuar". Então, Jesus age, providenciando vinho novo para a festa: 600 litros de vinho! O responsável pela organização da festa ficou admirado, porque experimentou do vinho novo, de boa qualidade. E a festa continuou, sem que o noivo soubesse de onde tinha saído tanto vinho.

O vinho novo é símbolo da renovação e da abundância. O desejo de Deus é que seus filhos possam se renovar sempre, mudando a mentalidade, aceitando o novo que transforma. Em Cristo, nasce o novo homem, porque "as coisas antigas já se passaram". Esse novo homem é o vinho novo presente no mundo, que causa alegria e festa. O cristianismo não é a religião da tristeza, mas da alegria e da festa.

Jesus realiza o seu primeiro sinal em uma festa de casamento. Isso é muito significativo, porque se distancia do formalismo que muitas vezes muitos cristãos querem imprimir no cristianismo. Os sinais de Deus se manifestam no cotidiano da vida comunitária. Jesus sinaliza para uma presença divina marcada pela simplicidade e pelo amor que não deixa nada faltar.

O evangelista faz questão de afirmar que diante da manifestação do sinal operado por Jesus, os "discípulos creram nele". É para crer em Jesus que os sinais são realizados. O mais importante não é o sinal, mas a fé em Jesus. Os sinais de Jesus não possuem um fim em si mesmos, mas apontam para a necessidade da fé. Pela fé, muitos outros sinais são realizados; pela fé, a comunidade cristã entra em comunhão com a Trindade, e a festa do Reino se torna realidade já neste mundo, e de forma definitiva no mundo futuro.

Tiago de França

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A missão e o desapego

 


“Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. No entanto, vosso Pai celeste os alimenta. Será que vós não valeis mais do que eles?”
(Mt 6,26)

            Muitas são as características e as exigências da missão, porque esta não se realiza de qualquer jeito, mas requer preparação, discernimento, coragem e desapego. Nestas breves linhas, trataremos do significado e importância do desapego em vista da missão do cristão. Desapego é caminho para a liberdade. O missionário precisa ser livre para, de fato, ser presença do Deus da liberdade neste mundo. Trata-se de um desafio imenso, porque neste mundo capitalista as pessoas são induzidas ao apego, principalmente no que se refere aos bens materiais.

            Para relacionar-se bem com Deus e, assim, viver uma intensa experiência com Ele, é necessário desapegar-se de tudo aquilo que prende e aliena. Desapegar-se de si mesmo parece ser uma das formas de desapego mais exigente. Há ideias e modo de ser que, muitas vezes, não correspondem à vontade de Deus. Os pensamentos de Deus são diferentes dos nossos (cf. Is 55,8); por isso, é necessário analisar e discernir os pensamentos que povoam a mente, para saber se há sintonia com o que Deus espera e exige. O missionário é alguém que projeta a sua vida considerando o projeto de Deus, pois não é Deus que deve se submeter ao que o missionário planejou para a sua vida.

            Há modos de ser que dificultam a vida do missionário, tornando-o indiferente em relação às pessoas, especialmente os pobres e esquecidos. O ideal de vida do missionário deve ser o de Jesus. Ou seja, é necessário adotar o estilo de Jesus, marcado pela simplicidade, humildade, disponibilidade, despojamento, abertura, solidariedade, compreensão, ternura e amor. Desapegar-se de um estilo de vida egoísta e medíocre é fundamental para viver uma vida autenticamente missionária. O egoísmo é incompatível com a missão, porque uma pessoa egoísta somente pensa em si mesma, e corre o risco de transformar a missão em um instrumento de satisfação de seus próprios interesses.

            A missão do cristão nasce com a experiência de Jesus e é continuada por seus discípulos. Quem se dispõe a seguir Jesus se torna missionário e participa da sua missão. Isso significa que a missão nasce com Jesus, deve ser vivida com Jesus, aponta para Jesus, e tem como razão de ser o próprio Jesus. Falar de Jesus é falar do Reino de Deus, porque a sua missão está em função do Reino. Foi para inaugurar o Reino que foi enviado. Portanto, pelo batismo cada cristão participa da missão de Jesus. Assim, não pode o cristão realizar a missão de acordo com seus pensamentos e anseios, mas deve partir do Evangelho, observando a pedagogia de Jesus.

            O desenvolvimento da missão exige proximidade e deslocamentos, porque a missão é movimento. Jesus não realizou a sua missão somente pregando no Templo e nas sinagogas. A sua forma de ser missionário era dinâmica, marcada pelo contato com as pessoas: vivia caminhando com elas e as visitando. Seus primeiros seguidores não o conheceram no Templo ou na sinagoga, mas nos caminhos que conduziam aos mais simples do povo. Por isso, o missionário deve desapegar-se do comodismo. Certamente, é mais cômodo esperar que as pessoas procurem o missionário, mas Jesus ensinou que este deve procurá-las, indo ao encontro delas. É necessário enfrentar as resistências que aparecem, capazes de impedir o missionário de sair ao encontro das pessoas.

            Muitas vezes, a missão exige que o missionário se distancie de sua própria família, para viver distante, próximo daqueles para os quais foi enviado. Esta saída para conhecer e viver em outros lugares, com outras culturas, exige desapego. É verdade que o missionário não deve esquecer, nem perder o vínculo com a sua família biológica, mas é verdade também que a missão lhe oferece uma família mais ampla, para cuidar e deixar-se cuidar. É necessário cortar o cordão umbilical e partir, confiando no chamado de Deus e na Providência divina, que a todos assiste, misteriosamente.

            Outro tipo de apego a ser superado para o cristão ser verdadeiramente missionário é o apego aos cargos. No seio da Igreja, algumas pessoas exercem a liderança, ocupando alguns cargos: coordenam grupos e comunidades (párocos, administradores, vigários, coordenações diocesanas e paroquiais etc.); outros são chamados a exercer os inúmeros ministérios presentes na vida da Igreja. Todos os cargos e ministérios devem estar em função da missão; do contrário, transformam-se em instrumentos de envaidecimento e autoritarismo.

A teologia dos ministérios é clara ao ensinar que, na vida eclesial, os que ocupam cargos e ministérios são chamados a servir. Infelizmente, os desvios aparecem quando as pessoas se servem dos cargos e ministérios para serem vistas como influentes, bem como para gozar de possíveis privilégios. Quando isso ocorre, perde-se o sentido da missão, e o “mundanismo espiritual” (expressão muito utilizada pelo Papa Francisco) passa a dominar a vida eclesial. Desapegar-se das ambições e/ou pretensões contrárias ao espírito de serviço é fundamental para o fiel cumprimento da missão.

Por fim, e não menos importante, é preciso desapegar-se de lugares e pessoas. A missão faz com que o missionário se relacione com muitas pessoas, e com elas estabeleça vínculos de amizade. Isso é bom, justo e necessário. Sem amizade a missão não se realiza, porque o missionário não é um despachante, mas alguém que se envolve com os dilemas das pessoas, disponibilizando-se a ajudá-las. O apego às pessoas está no fato de não conseguir se libertar delas, criando uma espécie de dependência. Aí já não temos amizade, mas prisão. O missionário não pode perder a liberdade; do contrário, não consegue evangelizar. Permanecer preso às pessoas e grupos é prejudicial à missão, porque prejudica o anúncio do Evangelho. Quem se prende a pessoas e grupos corre o risco de falar somente o que lhes agrada, ocultando a verdade do Evangelho.

A disponibilidade é uma das regras da missão. Quem assume a missão se coloca à disposição da missão, sendo nomeado e enviado para os lugares nos quais a necessidade exige determinado perfil de missionário. Havendo missionário suficiente para atender à demanda da missão, o ideal é atender às exigências de determinados ofícios e lugares, no sentido de escolher o missionário “certo” para determinado lugar, ou ofício. Isso evita que determinado lugar, ou cargo tenha um missionário totalmente incompatível com as respectivas exigências. Quando isso ocorre, o povo de Deus sofre as consequências.

As obras e ofícios pertencem à Igreja, instrumento a serviço da missão de Jesus, e exigem pessoas capazes e disponíveis para servir. Este é o ideal a ser buscado e vivido. Fora deste ideal, a Igreja pode ser transformada em uma empresa, cujos cargos e ministérios são disputados, gerando conflitos e escândalos. Desapegar-se de lugares e não cair na tentação de exigir determinados lugares, cargos e ministérios são virtudes que revelam liberdade e consciência da missão. Trata-se de um processo de discernimento e um caminho que pode ser trilhado com o auxílio da graça de Deus, sem a qual não existe missão.

Tiago de França

domingo, 27 de setembro de 2020

São Vicente de Paulo: amigo dos pobres

 


       Sacerdote francês, nasceu em 1581, e morreu em 27 de setembro de 1660. Inicialmente, pensava numa carreira promissora, para ajudar a família, que era pobre. Naquele tempo, para muitos, o sacerdócio era como um "meio de vida", ou seja, caminho certo para ganhar dinheiro, prestígio e poder na Igreja e na sociedade.

         Mas o Pe. Vicente de Paulo, após inúmeros insucessos, percebeu que Deus o chamava para ser aquilo que todo padre é chamado a ser: Servidor. Diante do estado humilhante e deplorável em que se encontravam os pobres na França daquela época, o Pe. Vicente de Paulo logo se deu conta de que Deus o chamava para servir aos pobres.

Em 1625, fundou a Congregação da Missão (Padres e Irmãos Lazaristas), com a missão de evangelizar os pobres. Esta é a destinação especial e exclusiva da Congregação. Com a valiosa colaboração de Santa Luísa de Marillac, em 1633, fundou a Companhia das Filhas da Caridade, com a mesma finalidade: Evangelizar os pobres.

O Pe. Vicente de Paulo foi canonizado em 1737, pelo Papa Clemente XII. Posteriormente, em 1885, foi declarado Patrono universal de toda as obras de caridade. São Vicente passou toda a sua vida fazendo o que Jesus fez: Com palavras e obras, evangelizou os pobres. Pela primeira vez na história da Igreja, uma Congregação religiosa de padres e irmãos nasceu para evangelizar, somente, os pobres. O mesmo se diga da Companhia das Filhas da Caridade, formada por mulheres simples, inicialmente camponesas, para o cuidado dos pobres.

O carisma vicentino tem na pessoa de Jesus o seu centro. São Vicente era profundamente cristológico. Muito preocupado em formar padres que cuidassem dos pobres, incluiu no carisma da Congregação o empenho na formação do clero. Desde a sua época até os dias atuais, especialmente no período que vai da fundação da Congregação até a realização do Concílio Vaticano II, os Padres e Irmãos Lazaristas atenderam ao apelo de São Vicente, e contribuíram com a formação de milhares de padres diocesanos em muitas partes do mundo.

A celebração da memória de São Vicente é uma feliz oportunidade para recordar o lugar dos pobres na vida e missão da Igreja. Infelizmente, no seio da Igreja tem surgido inúmeros grupos e comunidades que se ocupam muito com a oração e pouco com a ação. A caridade exige serviço organizado e proximidade com os pobres. Não se trata de oferecer esmolas aos pobres, mas de se envolver com seus dilemas, ajudando-os a resolvê-los. Não se trata, também, de substituir os pobres em suas lutas por uma vida digna, mas de oferecer apoio, orientação, formação; ajudá-los a serem sujeitos da própria libertação. Foi isso que São Vicente ensinou a fazer.

Que o Espírito do Senhor nos torne sensíveis ao sofrimento dos mais pobres, pois, dizia São Vicente: "Os pobres são nossos mestres e senhores". Precisamos unir oração e ação, sendo, desse modo, contemplativos na ação. Do contrário, seremos uma Igreja de muita reza e pouca caridade.

São Vicente de Paulo, rogai por nós!

Tiago de França

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A experiência libertadora do perdão


“Não existe cristianismo sem misericórdia” (Papa Francisco).
            A ninguém se deve negar o perdão. Esta regra da vida cristã enche de alegria o coração de Deus. Na oração do Pai nosso, o discípulo de Jesus pede ao Pai: “... e perdoa-nos a nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12). É preciso não esquecer do pedido completo: Pedir perdão a Deus e perdoar o próximo. Não é correto somente pedir perdão a Deus e negar o perdão aos outros. O próprio Jesus diz isso, ao afirmar que se deve perdoar “de coração” aqueles que nos ofendem (cf. Mt 18,35).
            Perdoar de coração significa perdoar de verdade, sem falsificar o ato de perdoar; sem guardar rancor, nem ressentimento; sem ficar lembrando, nem resmungando. O perdão verdadeiro parte do coração. Este, sim, liberta a pessoa. Negar o perdão é uma experiência escravizadora. Quem assim procede não é livre, porque demonstra incapacidade de perdoar. Portanto, trata-se de uma experiência que não é possível sem o auxílio da graça de Deus.
            Para perdoar é necessário, também, superar o espírito de vingança presente no mundo. Pagar o mal com o mal não é atitude do seguidor de Jesus. Essa forma nociva de agir faz com que a violência cresça e domine as pessoas, os grupos e a toda a sociedade. O que seria do mundo se todas as pessoas pagassem o mal com o mal?... Não há nenhuma vantagem na vingança. No lugar desta deve existir a compaixão, porque “se não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados?” (Eclo 28,4).
            A realidade tem mostrado que vivemos numa sociedade enferma, escandalosamente marcada pela cultura do ódio. Os discursos de ódio se multiplicam e enfraquecem as relações interpessoais, fragmentando e contaminando o tecido social. Esta cultura é marcada pela intolerância, desrespeito, preconceito, julgamento e condenação, demonização e perseguição. Cresce o clima de hostilidade e confusão. Estas formas de violência passam a ser consideradas como “normais”, e as pessoas vão se acostumando com as múltiplas formas de agressão que se cometem em praticamente todos os lugares.
            Também no seio do cristianismo, vergonhosamente, assistimos a esse estado de coisas. Pessoas e grupos, que se intitulam “religiosos”, alimentam a cultura do ódio em nome de Deus e da fé cristã. Não conseguem enxergar a contradição que há entre os discursos de ódio e a fé em Jesus. Praticam a violência usando a Palavra de Deus! Fazem o que a Palavra reprova: julgam, condenam, excluem, marginalizam, desprezam e agridem pessoas, grupos e instituições. Perdem facilmente o senso do ridículo, com palavras e gestos incompatíveis com a fé cristã.
            O perdão é uma necessidade do ser humano, e a comunidade cristã deve ser lugar de reconciliação. O cristianismo não deve ser sinal de discórdia no mundo, mas instrumento da misericórdia de Deus. Para isso, os cristãos precisam dar testemunho desta misericórdia, sendo misericordiosos uns com os outros.
O perdão é prático, simples e libertador. Não é uma teoria, um discurso ou uma ideia, mas um instrumento de aproximação, congregação e de unidade. A paz também é fruto do perdão. Na discórdia não há paz, mas consciência pesada, espírito abatido e desassossego. Quando verdadeiro, o perdão é capaz de tranquilizar o coração e silenciar o espírito, libertando da perturbação.
            Deus não se cansa de perdoar, e pede que façamos o mesmo. Não há limites, nem condições para o perdão. Deve-se perdoar os outros não porque estes merecem, mas porque Deus exige. A experiência de Jesus é exemplar para todo cristão: Na cruz, pediu ao Pai que perdoasse os seus algozes (cf. Lc 23,34).
O perdão é fruto do amor. Jesus muito perdoou, porque muito amou. O amor exige e gera o perdão: Quem muito ama recebe de Deus o perdão dos pecados (cf. Lc 7,47). Deus não olha, em primeiro lugar, os muitos pecados dos pecadores, mas espera o arrependimento sincero, de coração, e a disponibilidade para a conversão.
            Para fazer a experiência do perdão é necessário ter a humildade de reconhecer os próprios pecados, porque sem este reconhecimento ninguém pede, verdadeiramente, perdão a Deus. O orgulhoso e prepotente não recebe o perdão de Deus. É necessário se despojar de todo orgulho e espírito de superioridade e, batendo no peito, inclinar-se diante de Deus e pedir perdão.
É assim que o pecador inicia o seu processo de conversão. Sem o reconhecimento das próprias fraquezas não é possível agradar a Deus. O cristão é salvo por pura graça de Deus, sem mérito pessoal algum. Por isso, o caminho que conduz à vida passa, necessariamente, pela prática da misericórdia. Fora da misericórdia não existe salvação, porque Deus é misericórdia. Uma pessoa pode ser muito religiosa, mas se não for misericordiosa, vã é a sua religiosidade. Sejamos, pois, misericordiosos.

Tiago de França