terça-feira, 27 de setembro de 2011

São Vicente de Paulo: um místico a serviço dos pobres


“Lembre-se, padre, de que vivemos em Jesus Cristo pela morte em Jesus Cristo, e que temos de morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que nossa vida tem que estar oculta em Jesus Cristo e cheia de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo, tem que se viver como Jesus Cristo”. (P. Coste I, 295, 320).

Os místicos são pessoas que vivem mergulhadas em Deus. A Igreja da época de São Vicente era marcada pela vida monástica, pois o Concílio de Trento tinha enclausurado os religiosos. A meta era alcançar a perfeição na vida puramente contemplativa, separada do mundo. A reflexão teológica e a piedade ajudavam a cultivar uma vida santa. A leitura das Regras Comuns deixadas por São Vicente mostra claramente o rigor disciplinar e ascético a que estavam submetidos os religiosos.

São Vicente percebeu que a vida de clausura não levava à verdadeira santidade, que tal estilo de vida não tinha fundamentação evangélica, pois lendo o Evangelho descobriu que Jesus foi enviado para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18); descobriu que Jesus não viveu uma vida enclausurada, distante das pessoas. A meditação evangélica e a triste situação da vida dos pobres de seu tempo levaram-no a concluir que Jesus é o missionário Pai, o evangelizador dos pobres.

Neste sentido, São Vicente percebeu que o ministério presbiteral na Igreja só tem sentido se o presbítero se colocar a serviço dos pobres, porque este foi o ofício do Filho de Deus. Aqui está a centralidade do carisma e da espiritualidade vicentina. Fora deste ofício divino não há missão verdadeiramente cristã e vicentina. Na Igreja, a Família Vicentina tem a missão profética de desempenhar este ofício divino. Certa vez, Karl Rahner, um dos maiores teólogos da Igreja do séc. XX afirmou que no séc. XXI não haveria separação entre ser cristão e ser místico.

Para entender o jesuíta Karl Rahner seria necessário discorrer a história dos grandes místicos nos diversos períodos da história do Cristianismo. Aqui não é lugar para isto, mas, a partir do testemunho de São Vicente podemos ousar algumas afirmações, pois graças ao Espírito do Senhor, no séc. XVII, fora da vida monástica ele conseguiu ser um místico no serviço dos pobres.

Anthony de Mello, SJ, um místico cristão de espiritualidade oriental falecido em junho de 1987, aos 56 anos de idade, em sua obra Apelo ao amor, falando da santidade afirma: “O segundo atributo da santidade é a ausência de esforço” (p. 50). Ser místico é ser santo a partir do amor, no amor e para o amor. Segundo A. de Mello, a santidade não é fruto do esforço humano, não pode ser desejada, não é fruto da consciência da pessoa nem pode existir juntamente com os apegos.

O místico é uma pessoa livre dos apegos. Ele só precisa do amor para viver. O apego às pessoas, às coisas e a si mesmo é causa de impedimento para que exista o místico. Este não se preocupa com nada, a não ser com o amor; amor que não é posse do outro, mas abertura permanente para o outro. Abertura não para a dependência do outro, mas para o amor para com o outro. O místico não depende de ninguém para ser feliz. Ele não é especial para ninguém nem pessoa alguma lhe é especial.

Para o místico, o outro é simplesmente pessoa. Esta não lhe representa superioridade nem inferioridade. Neste sentido, o medo deixa de existir em sua vida. As ameaças, os condicionamentos, constrangimentos, perseguições, incompreensões e até a morte não significam nada para o místico: nada disso tira a sua vida. Elogios, aplausos, críticas, premiações, honras e tantas outras coisas tidas como boas e que são oferecidas aos homens também não significam nada para o místico: ele não depende destas coisas para viver. A isto chamamos liberdade.

No interior da Paraíba aprendi com um místico a seguinte verdade: “Tu não dependes do louvor nem da crítica para viver, mas somente do amor. Ama e serás verdadeiramente livre. O que importa é Jesus e a força de Deus, o Espírito. Quando estiveres convicto disto nada mais te interessará, mas somente o amor, pois é o amor que permanece para sempre, o resto é apego e passa”. Viver segundo esta verdade é ser místico. O Evangelho mostra que Jesus foi assim: livre. Por isso que sua mensagem pode ser chamada Evangelho da liberdade.

Para viver num estado místico de vida é preciso cultivar a atenção ao essencial, deixando de lado tudo aquilo que tenta desviar e/ou desvirtuar. Há muitas coisas neste mundo que não levam à verdadeira felicidade, o místico se despoja de todas estas coisas. Neste sentido, o místico é uma pessoa livre das ilusões, da alienação e da agonia provocada pela pressa e pela busca desgastante de ser feliz. Quando percebeu que a verdadeira felicidade se encontra na fonte da vida, que é Deus, o místico não perde o seu tempo com coisas supérfluas e/ou futilidades.

Assim foi São Vicente, não fez outra coisa na vida senão amar o próximo, preferencialmente os pequenos e sofredores. Nestes encontrou a felicidade, encontrou Deus. As autoridades religiosas e civis, assim como as mulheres e homens ricos da época ficavam admirados ao vê-lo e escutá-lo; assim como as multidões ficavam admiradas diante de Jesus de Nazaré. Quem viu São Vicente esteve diante de homem entregue a Deus e aos irmãos. A isto chamamos santidade.

Infelizmente, o barulho e as coisas produzidas pelo homem têm levado à perturbação e ao consumismo. As pessoas perdem a paz de espírito consumindo, incansavelmente. A doutrina mercadológica é: consuma e seja feliz! Esta doutrina invadiu as Igrejas cristãs e estas manejam grandes somas de dinheiro. O mercado religioso oferece todas as bênçãos e milagres que as pessoas precisam para serem escravas e perturbadas da cabeça. É uma verdadeira maldição! No fundo, as pessoas nunca se libertam, e não se libertam porque foram buscar a libertação no lugar errado.

Felizmente, no silêncio da vida das Igrejas e do mundo há mulheres e homens místicos. Eles não aparecem porque o aparecer lhes é incompatível. São tão simples que, na maioria das vezes, morrem sem ser percebidos. Isto lhes é motivo de alegria, sinal de foram fiéis ao princípio evangélico da humildade, que exige discrição e simplicidade. Os místicos são pessoas de ações singelas e palavras profundas, quando discursam incomodam bastante, porque aproveitam para proclamar Jesus, Boa Nova do Pai para a vida e a liberdade do gênero humano.

São Vicente permite-nos dizer, finalmente, que a mística vicentina se dá numa vida que se encerra no amor aos pobres, numa vida que é pleno estado de caridade. Ele nos ensina que deixar-se conduzir pelo Espírito nos leva irresistivelmente ao encontro rosto do outro. E como dizia o filósofo francês E. Lévinas, o rosto do outro me fala, me interpela, me incomoda, clama por socorro, liberta-me. A isto chamamos alteridade. Não há prática do amor sem a alteridade. Que São Vicente interceda a Deus por nós!


Tiago de França

sábado, 24 de setembro de 2011

A religião e a humanização do ser humano


“Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21, 31).

Houve uma época em que se dizia que a religião era o único caminho que levava a Deus: fora da religião não existia salvação. O tempo passou e descobriram que continuar afirmando isso não daria certo, pois se constatou que muitas pessoas estavam fora da religião e a cada dia que se passa acentua-se cada vez mais a secularização e o abandono da religião tem se tornado claro e evidente. Ninguém ousa negar tal fato histórico.

O papa Bento XVI está na Alemanha, sua terra natal. Alguns católicos entusiasmados estão felizes ao reencontrá-lo e pedem socorro. Na Alemanha como em outros tantos lugares, os próprios católicos, em sua maioria, não acreditam mais a religião: estão cansados dos escândalos de pedofilia, querem a aprovação do casamento gay, a ordenação de mulheres, o fim do celibato obrigatório, a legalização do aborto e exigem uma Igreja mais humana e aberta às questões da vida pós-moderna.

Diante de tantos anseios, a Igreja se encontra sem saber muito o que dizer, simplesmente recorre ao seu sistema doutrinal tradicional. As pessoas param para escutar já sabendo o conteúdo do discurso papal. Elas sabem da dificuldade da Igreja no diálogo com questões pós-modernas, sabem que a Igreja mal assimilou o Concílio Vaticano II e que este precisa ser lido e atualizado, pois o mesmo não possui respostas para os problemas surgidos posteriormente à sua realização.

Neste sentido, o texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XXVI Domingo Comum ousa nos apontar um caminho alternativo para a resolução desse impasse histórico que está levando à morte da religião. No texto (cf. Mt 21, 28 – 32), Jesus entra em conflito com as autoridades religiosas de seu tempo, autoridades que tinham os mesmos defeitos de muitas da religião atual: fechadas em si mesmas, puritanas, legalistas, autoritárias, prepotentes e inimigas da verdade e da liberdade.

Os religiosos do tempo de Jesus não o acolheram porque se decepcionaram com seu jeito de ser: livre e libertador. Todas as palavras e ações de Jesus de Nazaré entravam em contradição com aquilo que eles viviam. Assim, jamais poderiam chegar a um consenso nem viver unidos, pois Jesus não aceitava a hipocrisia e a exploração dos pequenos que se davam através das práticas religiosas. Estas práticas julgavam, condenavam e excluíam os pequenos e pecadores.

Os pequenos e pecadores viviam à margem da religião judaica. Para os religiosos, o problema de Jesus foi ter se enturmado com essa gente, se colocado definitivamente ao lado deles, vivido entre eles. Os religiosos queriam um Messias fiel à lei e que vivesse no Templo de Jerusalém, morada do Deus santo e puro, lugar dos sacrifícios de expiação pelos pecados. Apesar disso, era também lugar de humilhação, suborno e exploração. Jesus não era sacerdote nem levita, logo não se identificou com o Templo. O lugar de Jesus era no meio da raça pecadora, pois veio primeiro para as ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15, 24).

Fica evidente, então, que Jesus aponta para os últimos. Estes são os seus prediletos. Para sobreviver no mundo, a religião precisa não somente estudar e olhar para os últimos, mas assumir seus clamores e lutas. Imediatamente após o Concílio Vaticano II houve certa efervescência na Igreja. Na América Latina, apareceu a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, a Igreja se identificou com as lutas do povo contra as ditaduras, contra o neoliberalismo e contra todas as formas de opressão. Muitas pessoas foram martirizadas. As pessoas ficavam admiradas com muitos Bispos, Padres e leigos profetas. Nesta época, a Igreja era não somente respeitada, mas temida pelos poderosos.

E hoje, como estamos? O que aconteceu? Acabaram-se as lutas e a opressão? Basta assistirmos aos noticiários e olharmos à nossa volta para percebermos que a vida dos pequenos continua sendo massacrada. O que se questiona é a ausência da Igreja nas lutas dos pobres. É verdade que há Bispos, Padres, Religiosos e Religiosas, leigas e leigos inseridos nas lutas por libertação; mas, infelizmente, é verdade também que o número destas pessoas é pequeno.

Esta é uma constatação feita no Documento de Aparecida. Os Bispos sentiram a necessidade de alertar a Igreja para um maior compromisso com os empobrecidos (DA, 397 – 399). Desde a Conferência de Medellín se fala deste compromisso e o que assistimos é a crise deste mesmo compromisso. Assistimos a uma profunda crise de responsabilidade em todos os segmentos da sociedade, inclusive na Igreja. A maioria das pessoas só aceita uma religião de satisfação dos desejos na qual Deus não passa de uma mera fonte de milagres.

A situação do clero não é diferente, pois, infelizmente, há inúmeros “presbíteros mais preocupados com seu caráter e poder sagrados do que com uma presença significativa no mundo, com o diálogo com a sociedade, com serviço competente ao homem de hoje. No meio de tudo isso há presbíteros high-tech, uma espécie de sacralização pós-moderna: combinação de um discurso mágico-fundamentalista (apologético) com os recursos mercadológicos da comunicação de massa” (L. R. Benedetti, O “novo clero”: arcaico ou moderno?, in REB 49 [1999], p.89).

Eis o desafio atual: ou a Igreja se coloca definitiva e integralmente a serviço da humanização do ser humano, ou não irá sobreviver à crise interna que a definha aos poucos. Os cobradores de impostos e prostitutas estão aí, no mundo, à espera da Igreja. Lançar as redes para as águas mais profundas é mais do que uma necessidade, é uma urgência eclesial. Neste sentido, cultivar o diálogo, a abertura, a honestidade e acolher o novo que o Espírito faz surgir são atitudes fundamentais para que tenhamos uma Igreja mais humana e solidária.


Tiago de França

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Evangelho: Boa Notícia para quem?


“Deus amou tanto nosso mundo que nos deu o seu Filho. Ele anuncia a boa nova do Reino aos pobres e pecadores. Por isso, nós, como discípulos e missionários de Jesus Cristo, queremos e devemos proclamar o Evangelho, que é o próprio Cristo”. (Documento de Aparecida, n. 30)

O Evangelho em si é uma Boa Notícia para a libertação integral do homem e do mundo. Não é uma mensagem criada pela inteligência humana, não é uma ideologia, não é um tratado teológico, não é doutrina da Igreja, o Evangelho é Jesus Cristo, Filho de Deus Pai enviado por amor a este mundo. Toda pessoa que aceitar o chamado divino para o anúncio deve ter a plena convicção disso: deve-se anunciar Jesus Cristo tendo em vista a vida e a liberdade integrais do gênero humano.

Há um gravíssimo pecado no processo de evangelização: misturar Evangelho com discursos humanos. Estes possuem suas finalidades, que são sempre humanas, finalidades alicerçadas no interesse pessoal e grupal. Quando isto acontece, infelizmente, há certa deturpação da mensagem cristã. Esta deturpação consiste na manipulação da mensagem evangélica tendo em vista a alienação das pessoas. Apesar disso, o importante é que o acobertamento da verdade dura pouco, pois quando esta vem à tona, não há alienação que resista.

Quando a verdade contida no Evangelho, que é o próprio Cristo, é proclamada ao mundo, o Evangelho torna-se uma má notícia para muitas pessoas. Todos escutam a Boa Notícia do Reino, mas são poucos que a aderem com convicção e alegria: são os cristãos da beira do caminho, que ficam contentes ao escutar, acham bonita a proclamação da verdade que liberta, mas recusam-se a se libertar. As Igrejas estão lotadas destas pessoas e, de modo geral, elas só querem milagres e/ou escutar uma mensagem que reconforte o espírito.

Certo dia, parei para assistir a uma Missa em uma das TVs católicas: fiquei profundamente decepcionado! Até então, nunca tinha escutado tamanha deturpação da Palavra de Deus numa ação litúrgica. Admirou-me a capacidade do padre ocultar a verdade da mensagem cristã utilizando-se de historinhas infantis para, simplesmente, fazer os fiéis rirem e sentirem-se bem na Celebração. No fim daquilo que chamou de homilia, disse o padre: “Gosto de brincar na homilia porque sinto que as pessoas querem mesmo é se sentir bem!”

A Conferência de Aparecida constatou a necessidade de acolhermos melhor os fiéis na Igreja, uma vez que os cristãos não católicos sabem acolher melhor, mas isto não significa que devamos infantilizar nossas liturgias com recursos apelativos que chegam ao ridículo. O cristão praticante sério e comprometido sente-se, certa e profundamente ofendido, e com muita facilidade e razão se recusa a se fazer presente em atos litúrgicos como este. Coisas como estas acontecem porque fazem de tudo para ocultar Jesus Cristo e sua proposta.

A falta de formação cristã leva as pessoas a aceitarem certos absurdos. A maioria, além de aceitar, participa ativamente! Cai por terra todo projeto que visa construir uma Igreja missionária comprometida com as grandes causas do Reino de Deus. Acolher bem as pessoas e negar-lhes a Boa Notícia é um pecado que compromete seriamente a edificação do Reino de Deus. O chamado divino não está para o sentir-se bem, mas para o compromisso efetivo e afetivo com o amor e a justiça.

Jesus Cristo, o Nazareno, e o Reino de seu Pai devem ser o centro do processo de evangelização da Igreja; do contrário, não há missão. Quando se tira Jesus e o Reino do centro, todas as formas de infidelidade e pecado acontecem no seio eclesial.

A busca dos interesses pessoais e institucionais é uma gravíssima traição ao Evangelho. A Igreja nunca se deu bem quando marginalizou a Boa Notícia de Jesus de Nazaré, os resultados sempre foram confusão, perseguição não por causa do Reino, e morte de inocentes e de profetas. Muitos destes últimos chegaram a ser perseguidos e mortos pela própria Igreja. Esta sempre teve dificuldades para aceitar o Evangelho a que é chamada a anunciar, incessantemente.

A história não nos deixa mentir. Um exemplo disso foi o caso de santa Joana d’Arc (França, 1412 – 1431), acusada injustamente de ser assassina, embusteira e herege; foi queimada viva em praça pública. Mais de 500 anos depois, reconhecendo o grave erro e interessada em estreitar os laços políticos com o governo francês, a Igreja canonizou Joana d’Arc e a declarou padroeira da França. Ela foi elevada às honras dos altares pelo papa Bento XV, em 1920.

De fato, os poderosos deste mundo, as instituições descomprometidas com a vida e com a liberdade, e as pessoas que almejam o poder não conseguem aceitar o Evangelho de Jesus de Nazaré. Isto acontece porque a missão de Cristo estava centrada na promoção e defesa da vida dos pequenos e oprimidos. Os cristãos realmente comprometidos com esta missão de Cristo passam pelo mesmo Calvário que ele passou: experimentam o desprezo, o escárnio, a perseguição, a incompreensão e a morte.

A mensagem cristã é uma Boa Notícia para os pobres e oprimidos, que tem em Deus sua esperança e alegria. Em sua infinita bondade e misericórdia, Deus enviou Jesus Cristo ao mundo para evangelizar os pobres (cf. Lc 4, 18). Jesus é o Cristo, missionário do Pai e evangelizador dos pobres: esta é a Boa Notícia que incomoda os poderosos e opressores deste mundo. Todo cristão, discípulo e missionário do Reino, é chamado a anunciar esta Boa Notícia ao mundo. Este anúncio é a missão fundamental da Igreja. Fora deste anúncio não há seguimento de Cristo e não havendo seguimento não há missão.


Tiago de França

sábado, 17 de setembro de 2011

Reino de Deus: liberdade e gratuidade


“Buscai o Senhor, enquanto pode ser achado; invocai-o, enquanto ele está perto” (Is 55, 6).

É muito difícil para o ser humano compreender e aceitar o projeto de Deus, principalmente no mundo atual, marcado pelo jogo de interesses pessoais e corporativistas. Os espaços da liberdade e da gratuidade quase não existem, pois a escravidão e a indiferença dominam as relações interpessoais. Diante disso, Jesus nos apresenta Deus como um Pai bom e misericordioso, que age na liberdade e na gratuidade; um Pai que não impõe condições, que ama incondicionalmente o ser humano e neste amor liberta-o da escravidão e da indiferença. Vamos pensar a liberdade e a gratuidade a partir de Mt 20, 1 – 16, texto evangélico da Liturgia da Palavra deste XXV Domingo Comum.

Deus é o dono da vinha e chama para trabalhar. Há um campo vasto para a ação. O mundo é o lugar do encontro com Deus e da construção do seu Reino. Assim, Deus chama para trabalhar na edificação do seu Reino a partir das realidades mundanas. Este é o desejo divino. Por isso, a religião não pode se refugiar noutro mundo a não ser este, no qual habita conflituosamente o gênero humano. Quem fugir deste mundo, pensando e esperando a salvação num outro, vai perder-se eternamente. A vocação cristã é para o trabalho.

Há pessoas que não param de trabalhar, mas trabalham para si mesmas, em função de si mesmas. Os capitalistas de plantão não pensam em outra coisa a não ser o enriquecimento que, na maioria dos casos, acontece de forma desonesta e, portanto, ilícita. Estas pessoas passam pela vida e se perdem. Elas nunca param para pensar que tal vida não é vida, mas pura ilusão. O mundo está cheio dessa gente corrompida e alienada. Elas vivem iludindo-se pensando que são felizes. Não são trabalhadoras da vinha do Senhor.

Há pessoas que trabalham na vinha do Senhor, trabalham em função do Reino de Deus: são pessoas livres e generosas. São livres não porque não sofrem os condicionamentos da condição humana, mas o são porque depositam toda a confiança no Deus que as chamou para trabalhar. Quem se coloca a serviço de Deus tem nele a sua riqueza, segurança, alegria, proteção, salvação. Deus é a felicidade de seus operários. Ele não tem nada para recompensá-los, porque ele próprio é a recompensa. O ofício divino tem em Deus a sua plenitude.

Os que não trabalham na vinha do Senhor agem conforme a lógica humana e mundana, conforme a política das recompensas e das promoções. O mercado capitalista é marcado pela competição, onde o mais fraco não tem vez. A competência, a agilidade, a qualificação, a atualização são alguns dos valores que regem as relações trabalhistas. Assim, é visível que não há lugar para todos: são excluídos todos aqueles e aquelas que não conseguem acompanhar as exigências tidas como legais e fundamentais para o pleno funcionamento do sistema. Desse modo, como ficam os empobrecidos, que não têm condições para corresponder a tais exigências? São, impiedosamente, excluídos.

Há pessoas que aceitam o convite, comparecem na vinha, mas se recusam a trabalhar, só atrapalham porque querem levar vida fácil: não opinam, não participam, não se interessam com nada, gostam da crítica pela crítica, fechadas em si mesmas, são acomodadas e alienadas. Infelizmente, na vinha do Senhor não é pequeno o número desse tipo de gente. O trabalho não progride por conta da ociosidade destas pessoas. E como o estado ocioso de vida costuma levar a uma vida desonesta e corrompida, elas costumam ser motivo de escândalo e confusão.

Deus é livre, chama na liberdade e propõe a igualdade entre as pessoas. Enquanto o homem explorar seu semelhante não haverá liberdade nem igualdade. Por isso, liberdade e igualdade plenas somente no Reino de Deus, mas isto não significa que não se deva lutar pela dignidade do gênero humano promovida por estes dois valores fundamentais. O que Deus quer é o contrário daquilo que homem pensa, prega e tenta tornar legítimo: “Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e vossos caminhos não são os meus caminhos, diz o Senhor” (Is 55, 8).

A vontade divina é a liberdade do ser humano, pois somente na liberdade há verdadeira felicidade. Portanto, sem equívoco algum podemos afirmar que o homem pós-moderno está com sua liberdade totalmente comprometida pela ambição do ter, do poder, do prestígio e do saber. Há excessos em tudo, há gente desequilibrada em toda parte, principalmente dentro da religião. No saber, costuma ser vaidoso; no poder, quer dominar o próximo; no prestígio, sente-se superior aos demais; no ter, não se contenta com o necessário. O ser humano está gravemente enfermo e juntamente com todas as instituições por ele criadas e mantidas.

Assim como o patrão da parábola, que se mostra condescendente com os que chegaram por último, igualando-os com os que chegaram primeiro à vinha, o cristão deve aprender e cultivar o espírito da igualdade. Esta é dom da liberdade. O homem livre busca se conhecer e nunca se julga superior nem se impõe sobre os demais. As idéias, as palavras e as atitudes do homem livre são sempre propostas; somente assim a acolhida do outro é livre.

Deus é livre e libertador. Diante dele ninguém tem o direito de exigir tratamento diferenciado. Para Deus não há hierarquia nem titulação, todos são iguais porque ama a todos, incondicionalmente. Quem não aceitá-lo dessa forma corre o risco de construir um falso deus a partir das próprias projeções. Quer aceite, quer não, o ser humano é imagem e semelhança da bondade, da misericórdia e da liberdade divinas. Assim Deus o quis para a felicidade de todos.

Segundo o apóstolo Paulo, procurar viver a vida a partir destes valores é viver “à altura do Evangelho de Cristo” (Fl 1, 27). A Igreja precisa, urgentemente, de leigos e ordenados que cultivem um estilo de vida livre, generoso e misericordioso, a fim de que o mundo veja e creia na Boa Notícia de Jesus de Nazaré; do contrário, a crise na qual vivemos agravar-se-á sem esperanças de recuperação.


Tiago de França

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A cruz de Jesus


“Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é preciso que o Filho do Homem seja levantado. Assim, todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna”. (Jo 3, 14 – 15)

No dia 14 de setembro de cada ano, a Igreja celebra a festa da exaltação da Cruz de Cristo. Qual o significado desta festa? Ainda tem sentido falar de cruz após as Cruzadas realizadas pela Igreja? Por que falar de cruz após a presença de tal símbolo religioso ter sido questionada nas repartições públicas da Europa secularizada? Quem são hoje os crucificados da história? Vamos pensar a respeito do sentido da cruz na vida cristã.

Sem Jesus, a cruz perde seu sentido. Ela era sinal de maldição, mas Cristo a tornou sinal de liberdade, de vida, de salvação. O Crucificado é a expressão máxima do amor de Deus. Na cruz, Jesus assumiu sua missão até as últimas conseqüências. A cruz é também sinal da obediência de Jesus à vontade de seu Pai: entendeu e viveu sua vocação.

A vocação de Jesus se expressa no amor, amor que se manifesta na doação da própria vida; doação plena, livre e libertadora. Na cruz, Jesus participou misericordiosamente da sorte dos injustiçados deste mundo, a sorte dos pecadores públicos e das vítimas do Império Romano. Os judeus ficaram escandalizados diante do Crucificado, não o aceitaram como o Messias prometido. Eles pensavam: Como pode o Messias ser um fracassado na cruz, um maldito, motivo de vergonha pública?...

Na cruz, quis Deus entregar-se pela vida do mundo. Para entrar em comunhão com o sofrimento dos empobrecidos, Jesus entregou-se à morte na cruz. Assim, o Crucificado é também expressão da opção de Deus pelos empobrecidos e sofredores. Durante toda a história, os poderosos deste mundo crucificaram e crucificam muitas pessoas do povo de Deus. Por isso, o Crucificado entrou não somente em comunhão com estas pessoas, como também foi solidário.

Numa passagem do seu Evangelho, Jesus afirma que toda pessoa que quiser segui-lo terá que tomar a cruz. Não há seguimento sem cruz. A participação na cruz é exigência fundamental no seguimento de Cristo Jesus. Tal participação passa pela comunhão com os empobrecidos e sofridos, ou seja, somente quando estamos em comunhão de amor com toda pessoa atribulada pelo sofrimento é que estamos, de fato, em comunhão com a cruz de Cristo Jesus.

Na história da Igreja encontramos os profetas e os mártires, mulheres e homens que participaram dos sofrimentos de Cristo através da comunhão com os injustiçados deste mundo. O Espírito continua soprando e inspirando muitas pessoas dentro e fora da Igreja. No silêncio do anonimato há muitas testemunhas da cruz de Cristo: pessoas que lutam incansavelmente para que haja mais liberdade e vida no mundo. Estas pessoas não querem nem podem aparecer. Elas sabem que a profecia é ação, nunca estrelismo.

Essas testemunhas da cruz de Cristo não são bem vistas pela mídia, pelos governantes, por religiosos fariseus, pelas corporações que exploram e matam, por quem gosta da mentira e da falsidade e por tantos outros agentes das forças do anti-Reino que atuam neste mundo. São sal e luz do mundo, por isso, perseguidas, odiadas e, muitas vezes, assassinadas. Essas testemunhas anunciam a Palavra de Deus, nunca ideologia humana. A Palavra dói na consciência dos que se entregam à iniqüidade.

Anunciar esta Palavra pressupõe arrancar e destruir as forças do anti-Reino, sem medo, sem recuos, sem hipocrisia, com mansidão, com perseverança e com verdade. Esta Palavra é a única riqueza, é o sentido da vida, é o bem maior, é a última palavra sobre a vida terrena das testemunhas. Os inimigos da cruz de Cristo riem dos corpos ensangüentados das testemunhas que tombaram na luta incansável pela vida sem entender que elas ressuscitam com Cristo porque foram fiéis a ele até o fim, até as últimas conseqüências.

A pessoa que se recusa a assumir a cruz de Cristo não pode dizer que segue Jesus, não pode dizer que é cristã. Os que não são testemunhas da morte e da ressurreição de Jesus costumam se aproveitar do nome de cristão e da condição religiosa para ser alguma coisa neste mundo: são pessoas que querem ganhar a própria vida, vivendo no conforto, numa vida tranqüila, sem a mínima preocupação com a vida sofrida do próximo. Infelizmente, não é pequeno o número destas pessoas, tanto na Igreja quanto fora dela. Muito facilmente estas pessoas também se tornam inimigas da cruz de Cristo.


Tiago de França

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O anúncio da Palavra de Deus


Estamos no Mês da Bíblia. Anualmente, a Igreja recorda a necessidade do anúncio da Palavra de Deus. Na verdade, durante todo o ano anuncia-se a Palavra. Há três indagações que nos ajudam a pensar e/ou repensar o anúncio da Palavra: O que é a Palavra? Quem deve anunciar a Palavra? Por que anunciar a Palavra? Vamos pensar estas questões.

O que é a Palavra de Deus?

A Palavra é de Deus. Por isso, quem deseja anunciá-la não pode anunciar idéias ou uma ideologia, mas a Palavra. A Palavra de Deus é Jesus de Nazaré. Toda a Escritura Sagrada converge para ele. Jesus de Nazaré é a manifestação humana do amor de Deus para a salvação da humanidade. Esta Boa Notícia tem a força de libertar o ser humano da opressão do pecado e da morte. Quando a Palavra é anunciada, dissipam-se as forças que destroem o mundo e o homem.

Na Bíblia, algumas pessoas escreveram, por inspiração divina, a mensagem da salvação. É o livro sagrado dos cristãos e contém a revelação divina que se completa na pessoa de Jesus de Nazaré. Todo o livro sagrado foi escrito para comunicar a vida e a liberdade ao gênero humano. Não há outra finalidade senão essa. Este é o conteúdo verdadeiro da Bíblia: escrita para a liberdade.

Seus autores eram pessoas pecadoras, situadas em vários lugares e em diversas culturas. Por isso, não se pode exigir perfeição da redação bíblica. A mensagem da salvação está presente no conjunto elaborado por mãos e mentes humanas. Foi Deus que quis assim, não adianta sermos contra. A perfeição da vontade divina manifesta-se nas obras oriundas das mãos humanas. Assim, a Bíblia não conta histórias, não contém biografias, não tem cientificidade, não foi escrita para normatizar a conduta humana.

Quem deve anunciar a Palavra de Deus?

Quem nunca parou para escutar, entender e acolher a Palavra de Deus não pode anunciá-la. Como posso anunciar o que desconheço? Como levarei outras pessoas a crer naquilo que não creio? O anúncio é precedido pela experiência da escuta, do entendimento e da acolhida da Palavra. Não se trata de mera leitura, interpretação, conhecimento científico, que pode ser transmitido sem ser vivido. Trata-se do anúncio da Palavra de um Deus que nos ama e com seu amor quer nos salvar.

A consagração batismal autoriza e confirma o cristão para que anuncie a Palavra. O batismo é o sinal da acolhida da Palavra. Portanto, todo batizado é chamado a ser missionário da Palavra. Esta só chega à humanidade quando proclamada por aqueles que a acolheram. Acolher a Palavra significa não somente lê-la e entendê-la, mas esforçar-se em vivê-la, pois foi escrita para a vida. Quem verdadeiramente a acolhe não se contenta em guardá-la para si, mas anuncia-a com convicção e alegria ao mundo.

Quem não se dispõe a anunciar a Palavra ao mundo não pode afirmar que crê e vive a Palavra. Quando se busca vivê-la, isto já é anúncio. É possível viver a Palavra? Sem o auxílio da graça divina não se pode nem escutá-la, com o mesmo auxílio é possível vivenciá-la. O que é viver a Palavra? É, antes de tudo, compreendê-la; do contrário, tornar-se-á fariseu aquele que fizer uma leitura fundamentalista (ao pé da letra). O fariseu entende a Bíblia como um conjunto de leis e proibições e busca observá-las. A Bíblia não foi escrita com esta finalidade.

Por que anunciar a Palavra?

O mundo de hoje está ameaçado por diversas forças de morte que se manifestam de forma cada vez mais cruéis: guerras, miséria, fome, prostituição, preconceito, violência, intolerância, indiferença, ódio etc. A vida e a liberdade estão ameaçadas. O capitalismo agonizante continua ceifando vidas e, como a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, então os pobres são os que mais sofrem em todos os lugares do mundo, principalmente em muitos países do continente africano. Somente na Somália são 12 milhões de pessoas ameaçadas, que poderão morrer de fome nos próximos meses se ninguém as socorrer. Aquele país está sofrendo a pior seca dos últimos 60 anos.

O homem pós-moderno é um sujeito iludido, que não pensa no próximo, é egoísta. Afetado pela competitividade e pela indiferença cria um mundo para si e exclui seu semelhante. A cegueira é tão grave que mesmo ameaçado não se dá conta de que está vivendo numa constante autodestruição. Tal insensibilidade manifesta-se nas diversas formas de violência, na omissão dos países ricos em relação à situação calamitosa dos países pobres. Enquanto os EUA e a União Européia gastam bilhões de dólares mantendo guerras no Oriente Médio, milhares de pessoas morrem de fome na África e em diversas partes do mundo.

O anúncio da Palavra é anúncio da vida e denúncia das forças da morte. O missionário da Palavra é toda pessoa que se arrisca a revelar ao mundo a vontade divina através da pregação e do testemunho da própria vida. O martírio é a experiência de quem realmente corre tal risco. A realidade de nossas Igrejas tem mostrado que a omissão da verdade tornou-se prática comum. Fala-se de muitas coisas, mas foge-se daquilo que é essencial: a verdade que liberta. Mesmo dentro das Igrejas, a verdade continua sendo rejeitada. Há pessoas que anunciam a verdade, mas a maioria não aceita nem sequer escutá-la.

“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Vivemos num mundo quase que dominado pela mentira e pela confusão. A conseqüência disso é a crescente alienação e escravidão do ser humano. Jesus de Nazaré, verdade divina enviada ao mundo, inaugurou o Reino da vida, da verdade e da liberdade. Portanto, toda pessoa que aceitar anunciá-lo ao mundo, necessariamente, está aderindo à vida, à verdade e à liberdade. O Espírito Santo, força amorosa de Deus que age em nós, nunca nos abandona e nos coloca no caminho da fidelidade a este anúncio tão necessário para a vida do mundo e do gênero humano.


Tiago de França