sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O mal da mediocridade intelectual


         Precisamos falar deste tema. O que seria uma pessoa que sofre do mal da mediocridade intelectual? Vamos pensar um pouco. Este convite já nos mostra uma primeira característica de uma pessoa que sofre deste mal: ausência do pensar. Quem não pensa, não evolui, e quem não evolui padece na mediocridade. Certamente, quem sofre deste mal, também padece de outro: o da vida medíocre.

Mas queremos nos deter sobre a mediocridade que afeta o cérebro humano. Isto mesmo. Queremos falar daquela situação que nos assusta, a saber: olhar para uma pessoa que não se concebe pessoa, portadora de uma capacidade de crescimento humano e intelectual. Toda pessoa tem este potencial, mas o medíocre não liga para a maravilha que é a capacidade humana de pensar, criar e intuir as coisas.

            Pensar a vida, naquilo que ocorre ao seu redor, analisar as razões de ser das coisas e dos fatos, enfim, dar-se conta de que viver é mais do que comer, dormir, trabalhar etc. A vida está para além do meramente biológico. Quem se deixa afetar pelo mal da mediocridade intelectual é incapaz de perceber isso.

Intelecto medíocre é aquele tomado pela ferrugem, que somente é ativado para o desenvolvimento das funções básicas e fisiológicas do humano. Isto é muito pouco. Isto integra tão somente a nossa animalidade. Os animais não sabem que sabem, apenas sentem, desejam, imitam e sofrem. O animal não se ocupa com o próprio pensamento, porque é irracional. Há humanos que levam uma vida semelhante: passam pela vida sem se ocupar com o próprio pensamento. O que enxergam em si mesmo costuma ser a cópia dos outros.

            A pessoa medíocre, intelectualmente falando, desconhece a evolução da vida e de tudo o que nela ocorre. Entre outros motivos, isto ocorre porque se encontra acomodada em um mundo criado para si mesma. Em outros termos, o medíocre não enxerga com criticidade o que acontece ao redor, porque se encontra ocupado com a mesmice de suas ideias, repetidas e sem conexão com o mundo exterior, e com os afetos mesquinhos que daí decorrem.

Afetos mesquinhos geralmente são egoísticos, pois não são construídos a partir do encontro com o que é diferente. O diferente aparece praticamente como inimigo do medíocre, graças à ausência de esforço intelectual, necessário à realização de uma correta compreensão das diferenças. Esta dificuldade também é ocasionada pela mania de imitação que domina a vida do medíocre. Quem nada cria, termina por imitar, caindo na mesmice que marca a rotina.

             A mera imitação é própria de quem sofre de outro mal terrível, muito comum em nossos dias: o da preguiça mental. Como criar o novo sem fazer o mínimo esforço mental? Como repensar ideias e comportamentos, sem colocar em prática a arte de pensar? A preguiça mental gera uma sociedade bestializada. Parece ser isto que estamos enxergando hoje no Brasil: o domínio da ignorância, que leva o ser humano a comportar-se como animal. Esta bestialização multiplica o número dos imbecis, também denominados tolos ou idiotas, que são aqueles de curta inteligência, facilmente entregues às mãos dos espertos e aproveitadores.

            É importante salientar outra característica dos que são afetados pela mediocridade intelectual: apresentam incapacidade para o diálogo. Isto decorre da falta de abertura para o novo, ocasionada pelo desinteresse e pelo mínimo de estrutura mental para dialogar. O diálogo obriga o pensar. Portanto, não é próprio dos que são dominados pela preguiça mental. No diálogo há sempre uma necessidade de esforço e disposição para compreender, analisar, ponderar, escutar, propor, pensar e repensar, rever, ceder e acolher, ensinar e aprender. Um medíocre é incapaz de entrar e permanecer na dinâmica do diálogo, pois é intolerante e autoritário.

            Assim, o medíocre é alguém muito limitado, que se encontra na superfície. Nunca se arrisca a mergulhar para as águas mais profundas da razão que tudo verifica e aprofunda. Aprofundamento é uma palavra que causa tédio no medíocre, pois está habituado à superfície daquilo que é concebido. Geralmente, costuma repetir o que os outros dizem, sem analisar. Muitas vezes, chega a brigar por pontos de vista que não são seus, mas de outros considerados “autoridades no assunto”.

Os que ousam pensar defendem a tese de que estas “autoridades” são passíveis de equívocos e aperfeiçoamentos. Não há dúvidas de que os especialistas no assunto são apreciados pelos que ousam pensar, mas estes nunca aceitam, literalmente, o que aqueles afirmam de forma sempre transitória. Para quem ousa pensar, tudo pode ser repensado e analisado.

            Quando a maioria dos que constituem determinado grupo ou sociedade repete, sem cessar, sem análise criteriosa, aquilo que uma minoria pensou e elaborou para a maioria, então temos um grupo ou sociedade medíocre. Neste tipo de sociedade, todo mundo repete as mesmas coisas.

Praticamente não há conflitos inteligentes e saudáveis de ideias, com o objetivo de possíveis aperfeiçoamentos do que está estabelecido. O que está estabelecido é facilmente aceito como certo, como verdade inquestionável, como caminho único. Parece não existir outras possibilidades, porque estas não podem ser pensadas. No universo religioso, isto aparece com mais força, devido à tendência preponderante ao dogmatismo e à sacralização do argumento de autoridade.

            Parece não existir outro caminho de libertação da mediocridade intelectual senão o empenho na arte de pensar e repensar todas as coisas e realidades. É preciso estudar muito; gastar tempo com análises e reflexões. É necessário, como dizia o filósofo Immanuel Kant: “ousar saber!” Quem não ousa saber, torna-se escravo da ignorância, e quem ignora termina por ser dominado por quem conhece, pois o conhecimento confere poder.

O medíocre é um sofredor, porque não existe liberdade sem o pensar. Há um ditado popular que diz: “quando a cabeça não pensa, o corpo padece!” Não há luz sem conhecimento. Também na religião cristã se afirma a necessidade do conhecimento de Deus. Há muita gente sofrendo por causa da mediocridade intelectual; sofrendo porque prefere permanecer na zona de conforto da ignorância (zona nada confortável aos de espírito inquieto!), dedicando boa parte do precioso tempo da vida em conflitos com aqueles que vivem buscando a sabedoria. Esta é o passo imediatamente posterior que integra o caminho dos que buscam conhecer.

Tiago de França

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes e Dom José Maria Pires: profetas do Reino de Deus.


         
         Há vinte anos, no dia 27 de agosto de 1999, faleceu Dom Helder Câmara. Também no dia 27 de agosto, mas do ano de 2006, faleceu Dom Luciano Mendes de Almeida; e na mesma data do ano 2017, faleceu Dom José Maria Pires. O primeiro, cearense, um profeta de Deus. O segundo, jesuíta erudito, nasceu no Rio de Janeiro, outro grande profeta. O terceiro, primeiro bispo negro da Igreja Católica no Brasil, era de Minas Gerais. A memória destes três grandes bispos profetas da Igreja não pode passar despercebida. Entre muitas características, queremos elencar apenas três, que nos interpelam hoje a sermos fieis a Jesus Cristo.

            Antes de apresentarmos as três características, queremos falar, muito brevemente, da missão do profeta. Isto certamente nos ajudará a compreender a importância e o alcance do testemunho destes três profetas da Igreja Católica no Brasil. O profeta é um mensageiro de Deus. Um mensageiro é portador de uma mensagem, de uma palavra que não é sua. Aquele que envia o encarregou da missão de anunciar esta mensagem. Portanto, o profeta é um mensageiro da palavra de Deus (cf. Jr 1, 4-10).

            Não cabe ao profeta decidir se vai ou não anunciar a mensagem divina, bem como se anunciará plenamente ou pela metade. Deus confia ao profeta uma palavra plena, cortante e penetrante como espada de dois gumes (cf. Hb 4, 12). Esta palavra dura para a vida eterna e é a única capaz de salvar (cf. Jo 6, 68). Esta palavra é como a chuva que cai sobre a terra, gerando frutos abundantes de vida e santidade (cf. Is 55, 10-11). Não há palavra humana que seja capaz de revogar a palavra divina, pois o que esta promete, realiza. Deus envia o profeta para proclamar esta palavra, a fim de que haja vida no mundo.

            O profeta é um homem do gesto. Deus concede ao gesto do profeta um poder de atração e de transformação. O gesto profético não tem a finalidade de promover o profeta, mas de apontar para Deus; pois é Deus quem confere ao gesto a força capaz de atrair, transformar, persuadir, santificar e glorificar. O gesto profético possui um caráter de anúncio e de denúncia. Não são gestos grandiosos nem espetaculares, mas simples e cotidianos. A pedagogia divina revela que Deus se manifesta a partir das pequenas coisas, a partir daquilo que as pessoas julgam insignificante e sem força.

            A tradição bíblica revela que o profeta é uma pessoa escolhida por Deus; é sempre alguém do povo. Deus o suscita entre os pobres. Na história da Igreja encontramos profetas oriundos de famílias ricas, mas ao receberem o chamado de Deus, abandonaram tudo para assumir a missão profética. Exemplo disso é São Francisco de Assis, que abraçou a pobreza, assemelhando-se a Jesus, e se transformou em um grande profeta para a Igreja de sua época e dos tempos posteriores. O profeta sabe que precisa se fazer pequeno e humanamente frágil, para que a força e a grandeza de Deus se manifestem. Esta é a dinâmica do chamado à profecia.

            O profeta é um homem da palavra, do gesto e da pequenez. Não é alguém que procura o prestígio, a riqueza e o poder. Pelo contrário, é chamado a denunciar aqueles que se encontram apegados a estas coisas, que concentradas nas mãos de poucos, constituem a desgraça da humanidade. Dom Helder, Dom Luciano e Dom José tinham plena consciência disso. Tinham consciência também do chamado que receberam de Deus. A prova disso é a total entrega de suas vidas nas grandes causas do Reino de Deus. Eram homens doados, cheios do Espírito Santo.

            A opção preferencial pelos pobres é uma das marcas da vida episcopal dos três bispos. Eram homens de vida simples, que atraía os mais simples. Quem os conhecia de perto enxergava a humildade e a simplicidade presentes em suas vidas. Colocaram em prática as orientações do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, bem como os apelos do denominado “Pacto das Catacumbas”, assinado por vários bispos da América Latina: momentos eclesiais que apontavam para um novo modelo de bispo na Igreja Católica: a passagem do bispo “príncipe” para o bispo pobre e servidor. A opção pelos pobres, traduzida pela participação na vida sofrida dos pobres, em suas lutas por justiça e paz, pode ser considerada a grande marca da vida episcopal de Dom Helder, Dom Luciano e Dom José.

            Outra característica da vida desses homens de Deus é a profunda fé em Deus. Os profetas são homens de fé. Para enfrentar os horrores da ditadura, da fome, da violência, da perseguição, da calúnia e difamação, da ameaça e tantas injustiças que afligiam a vida dos pobres, nos contextos em que eles atuaram, somente uma profunda fé em Deus foi capaz de sustentá-los. A fé alimentada na oração e na comunhão eucarística transformou estes homens em profetas do Reino de Deus. Quem se aproximava deles, logo sentia que eram homens que viviam mergulhados em Deus. Dom Helder, por exemplo, dormia muito pouco, para ficar em vigília, rezando, lendo, meditando, escrevendo, conversando com Deus. Era homem de grande densidade espiritual.

            Dom Luciano Mendes era doutor em Filosofia. Tinha um poder de síntese, assimilação e uma facilidade de traduzir em simples palavras aquilo que era considerado complexo, que causavam admiração. Suas análises eram precisas e proféticas. Falava com muita humildade. Como um bom jesuíta, sabia discernir as coisas, e denunciava as injustiças com firmeza. Quem o via de longe, nunca imaginava que se tratava de um homem de tamanha inteligência, profecia e bondade. Servia aos pobres, sem medo e com ousadia. Ensinava mais com os gestos que com as palavras.

            Dom José Maria Pires era negro, mineiro do sorriso largo, homem simples e dado ao povo. Teve a graça de participar do Concílio Vaticano II, como Padre conciliar. Tinha uma viva memória de tudo o que aconteceu no Concílio. Quando convidado para falar sobre o assunto, fazia questão de contar os bastidores do Concílio que abriu as portas da Igreja para a necessária renovação. Dom José também era chamado de “Dom Pelé”, porque integrava, com alegria e valentia, a luta dos negros no Brasil, contra o racismo e a exclusão social. Signatário do “Pacto das Catacumbas”, viveu um estilo de vida simples e próximo ao povo.

            Por fim, cabe-nos falar do profundo amor que estes homens tinham à Igreja. Eles não amavam uma Igreja meramente institucional, mas a Igreja concebida pelo Vaticano II: Igreja-Povo de Deus, peregrina neste mundo. Seus escritos, gestos e palavras, que podem ser acessados nos livros e pesquisas biográficas, traduzem bem este amor à Igreja-Povo de Deus. O testemunho profético destes bispos constitui um apelo à Igreja atual, para que abrace, de uma vez por todas, a opção preferencial pelos pobres, nestes tempos difíceis.

            Assim como fizeram em seus contextos, também na realidade atual, os bispos, padres, religiosos/as, leigos e leigas, enfim, toda a Igreja, precisa escutar os apelos do Espírito, para que ressurja, no Brasil e no mundo, o espírito de profecia. Precisamos urgentemente de profetas: mulheres e homens que anunciem o Reino e denunciem as injustiças, que defendam a vida plena para todos. O Brasil está dominado por um projeto de poder que engana, ameaça e mata a vida, tanto a vida humana quanto a vida da natureza. Dom Helder, Dom Luciano e Dom José nos ensinam que a Igreja não pode se calar diante de tantas injustiças, de tantos desvios e tanto deboche.

            O Espírito do Senhor, que conduziu estes profetas na missão, é o mesmo que continua presente na vida Igreja. É necessário escutar o que o Espírito está dizendo. Ele renova a missão de Jesus no mundo, e transforma todo discípulo em missionário de Jesus. Para isso, é preciso entrega sem medo, generosidade e alegria, muito amor e disposição para servir. Os pobres clamam por justiça, e o seu clamor chega aos céus. A profecia não pode ser rejeitada. O amor vencerá. Deus é infinitamente bom. Que o testemunho destes santos homens nos inspire na missão!

Tiago de França

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O discurso de Bolsonaro na TV


Diante da repercussão internacional das queimadas criminosas na Amazônia, ligadas ao desmatamento que ocorre na região, Bolsonaro resolveu falar em cadeia nacional.

Quem assistiu às suas falas anteriores, logo percebeu a falsidade do discurso, que alguém deve ter escrito para ele ler. Todos sabemos a real posição dele, a saber: 1) É favorável à exploração da Amazônia; 2) É contrário à rigidez na fiscalização para combater crimes ambientais; 3) É o grande apoiador do agronegócio, que o ajudou a chegar ao poder; 4) Não está preocupado com a vida dos povos indígenas que vivem na Amazônia; 5) É contrário a todos os acordos internacionais que visam proteger o meio ambiente e mitigar o aquecimento global.

Assim, mente o presidente quando apresenta a imagem de um governo preocupado em preservar a Amazônia. Basta pesquisar seus discursos anteriores para chegar à conclusão de que, em matéria ambiental, o Brasil está praticamente perdido. O ministro do meio ambiente falou mais cedo que "a solução para a Amazônia é monetizá-la", ou seja, transformar a Amazônia em dinheiro.

Somente uma pessoa mal informada e alienada acredita no discurso do Bolsonaro. Um presidente que, pela primeira vez na história republicana brasileira, questiona dados científicos emitidos por órgãos nacionais e internacionais sérios, induzindo as pessoas a trocar a ciência pelo achismo, visando esconder suas reais intenções, totalmente contrárias ao bem comum. Estamos no século XXI, portanto, passou a época em que a mentira prevalecia e ficava por isso mesmo.

A realidade está aí, estampada, nua e crua, não enxerga quem não quer. É possível conhecê-la. Basta querer. Os instrumentos para o conhecimento são acessíveis. Não nos deixemos enganar. A situação é grave e exige conhecimento e posicionamento. Somos cidadãos e, consequentemente, responsáveis pelo país. Este presidente não caiu do céu. Em um curto espaço de tempo poderemos mudar esta situação. Para isto, é preciso ter consciência política. É isto que falta ao nosso povo. Quem sabe esta situação vergonhosa e vexatória nos ajude a despertar.

Tiago de França

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

A identidade e a missão do presbítero nas circunstâncias atuais


“Vinde em meu seguimento e eu farei de vós pescadores de homens” (Mc 1, 17).

1. Introdução

            O Senhor nos chama para servir. Este é o significado da vocação específica do presbítero (padre) na Igreja, vocação que nasce da vocação batismal, que é comum a todo o povo de Deus. O presbítero integra o povo de Deus, investido da responsabilidade de servir. Este serviço se manifesta no ensino, na santificação e na condução do povo de Deus. Colocando-se como servidor e não como senhor, o presbítero é chamado a ser como Jesus, Senhor e Salvador, que se apresentou como servidor, cumpridor da vontade de Deus Pai, fiel até a morte de cruz.

            Por ocasião do mês vocacional (agosto), queremos discorrer, muito brevemente, sobre alguns aspectos da identidade e da missão do presbítero nas circunstâncias atuais. O tema é vasto e complexo, mas pode ser apresentado de forma sintética, a partir de seus elementos essenciais. Identidade e missão constituem matéria de reflexão permanente, pois não são realidades estáticas que perduram no tempo; mas realidades dinâmicas e abertas a desdobramentos exigidos pela evolução dos tempos.

            Tomaremos como referência o documento 93 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que trata das Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil, aprovadas na 48ª Assembleia Geral, realizada em maio de 2010. Faremos um comentário breve sobre as dez exigências que aparecem no número 73 do mencionado documento, número que se encontra na primeira parte deste, cujo título é “Coordenadas da Formação Presbiteral”.

            A leitura destas exigências, comentadas à luz da realidade vivida pela Igreja no Brasil hoje, certamente nos ajudará a pensar e conhecer mais um pouco a importância do presbítero para a vida eclesial, bem como para o fecundo desenvolvimento da missão da Igreja no mundo. O presbítero não é ordenado para servir aos anjos e arcanjos, mas ao povo santo de Deus, profundamente marcado pelo sofrimento oriundo de tantas injustiças que assolam hoje o mundo inteiro. O povo de Deus está no mundo, e o presbítero é chamado a servir a Deus também no mundo.

2. Exigências

            O número 73 do documento 93 da CNBB, acima referido, traz algumas exigências que falam da identidade e da missão do presbítero hoje.

“1. O testemunho pessoal de fé e de caridade, de profunda espiritualidade vivida, de renúncia e despojamento de si”. O presbítero é chamado a ser um homem de Deus. Para isso, é preciso ser um homem de fé e caridade. Não há homem de Deus sem fé e caridade. Para cuidar do povo de Deus é necessário ter uma caridade operosa, não meramente discursiva. Deve-se pregar e viver a caridade evangélica. Portanto, não é possível que um presbítero seja uma pessoa egoísta, mesquinha, indisponível e preocupada somente com o seu bem-estar.

A caridade chama a atenção para o risco de o presbítero se colocar como um senhor a ser servido. Presbítero não é senhor, pois um só é o Senhor: Jesus, o Filho de Deus (Jo 13,13). Assim, o presbítero deve evitar posturas e falas que fazem o povo enxergá-lo como alguém superior, digno de bajulação e subserviência.

            Ter uma profunda espiritualidade significa ser homem de oração. Não pode existir bons presbíteros que não sejam homens de oração. Um presbítero que não reza é alguém vazio, desprovido de conteúdo espiritual. Sem a intimidade com Jesus na oração, não há sacerdócio ministerial que resista. Sem oração não há seguimento de Jesus. O presbítero deve ser, na comunidade cristã, o primeiro exemplo de pessoa de oração. A comunhão com Jesus por meio da oração imprimirá na sua pessoa o amor e a ternura de Jesus. O evangelho nos fala de Jesus como homem de oração (cf. Mc 1,35). A este Jesus orante o presbítero é chamado a seguir e a se configurar.

            Um presbítero apegado aos bens materiais, lugares e pessoas, prejudica a si mesmo e à missão da Igreja. É preocupante a situação daqueles que se recusam a sair de paróquias e outras realidades eclesiais, quando solicitados pelos seus bispos. Cria-se uma falsa consciência de que se pertence, permanentemente, a determinada comunidade ou a determinado ofício. O presbítero é ordenado para servir à Igreja (assembleia dos batizados e enviados). A colocação em uma determinada função não confere o direito à posse permanente da função. Por isso, a renúncia e o despojamento constituem exigências do seguimento de Jesus (cf. Mt 16, 24).

            Em várias ocasiões, o Papa Francisco tem criticado o que passou a denominar “mundanismo espiritual”, que consiste na estética religiosa que esconde desvios de toda ordem. Em outras palavras, presbíteros que aparentam muita piedade e devoção, mas que são mundanos em suas vidas privadas.

No livro “A força da vocação. A vida consagrada hoje”, o Papa afirma: “Há padres, e também bispos, que usam batina e, apesar disso, vivem numa grande hipocrisia, porque, no fundo, têm um coração mundano”. A falsa piedade para esconder o apego aos bens materiais e outros males é um perigo presente na vida da Igreja. O presbítero despojado de si é um homem livre para a missão.

“2. A prioridade da tarefa da evangelização, o que acentua o caráter missionário do ministério presbiteral”. O Documento de Aparecida, praticamente esquecido nos dias atuais, fala de um dos desafios que se apresentam à missão do presbítero: a sua inserção na cultura atual (cf. DAp., n.194). Para que haja verdadeiro anúncio do Evangelho, é necessário o conhecimento desta cultura, para que nela se possa semear a semente do Evangelho; e para que haja conhecimento é necessário estudar. A tarefa da evangelização deve ser prioritária, ou seja, o presbítero não pode se ocupar com atividades que não evangelizam, porque é um ministro do Evangelho de Jesus.

            Quando a tarefa da evangelização é abandonada, o presbítero perde o foco, se desvia da sua missão e se transforma em outra coisa, desconfigurando-se. Assim como a Igreja nasceu para evangelizar, o presbítero também é ordenado para ser um servidor do Evangelho. O anúncio deste e a denúncia de toda as realidades contrárias ao projeto de Deus (Reino de Deus) constituem a sua missão. O abandono da tarefa evangelizadora é caminho certo para desvios de toda ordem, o que tem maculado a imagem da Igreja perante o mundo inteiro. O presbítero é chamado a ser um discípulo missionário de Jesus.

“3. A capacidade de acolhida a exemplo de Cristo Pastor, que une a firmeza à ternura, sem ceder à tentação de um serviço burocrático e rotineiro”. Acolher é uma das palavras-chave do processo de evangelização da Igreja. Não há comunhão na Igreja sem a acolhida alegre e generosa das pessoas. Acolher o diferente, o que nos é estranho, o que nos interpela... Acolher o rosto sofrido de Jesus, estampado no rosto dos que sofrem: enfermos, prisioneiros, injustiçados, os que são condenados pela sociedade... Acolher sem fazer distinção de pessoas... Acolher como Jesus acolheu: com ternura e misericórdia, com alegria e prontidão, com generosidade e verdade (cf. Jo 8, 1-11).

            O presbítero é chamado a se configurar ao Cristo Pastor. Jesus não deu a seus discípulos o poder de julgar e condenar. Também a Igreja não conferiu, e nem poderia conferir, este mesmo poder aos presbíteros. Estes não são ministros do julgamento e da condenação, pois não podem ocupar o lugar de Deus. Nenhum presbítero é ordenado para julgar a conduta e a consciência das pessoas, pois não foi constituído juiz. Por isso, é chamado a ser um ministro da acolhida dos pecadores, usando da firmeza e da ternura, sem se tornar uma pedra de tropeço na vida das pessoas e das comunidades.

            Durante o Sínodo dos Bispos de 2014, que tratou do tema da família, o Papa Francisco afirmou, dirigindo-se aos bispos, categoricamente: “A Igreja não é uma alfândega, é uma casa paterna e, portanto, deve acompanhar pacientemente todas as pessoas, inclusive aquelas que se encontram em situações pastorais difíceis”. O papel da alfândega é realizar o controle e o tráfego de mercadorias. Uma Igreja-alfândega é aquela que se preocupa, em primeiro lugar, com o fiel cumprimento da lei (prescrições religiosas), em detrimento da vida das pessoas. No Evangelho, Jesus reprovou esse tipo de postura (cf. Mt 23,4).

            O serviço burocrático e rotineiro é aquele desenvolvido pelas empresas, que visam ao lucro. Numa empresa, tudo é rotineiro e burocrático. Visa-se alcançar as metas estabelecidas. Na Igreja não deve ser assim. A Igreja não é uma empresa, mas uma assembleia de chamados e enviados. A rotina, geradora da mesmice, e a burocracia, que exige o cumprimento rigoroso da lei, impede a manifestação amorosa do Espírito Santo. A organização é necessária, mas não há necessidade de uma rígida burocracia que mais afasta que aproxima as pessoas do caminho de Jesus.

“4. A solidariedade efetiva com a vida do povo, a opção preferencial pelos pobres, com especial sensibilidade para com os oprimidos, os sofredores, em fidelidade à caminhada da Igreja na América Latina, ratificada pela Conferência de Aparecida (DAp 396)”. A opção preferencial pelos pobres nasceu da releitura que a Igreja fez do Evangelho de Jesus e da sua caminhada na história, especialmente a partir do Concílio Vaticano II (1962 – 1965). Os oprimidos e sofredores não são meros destinatários da evangelização, mas sujeitos desta. Por isso, o presbítero precisa aprender a caminhar com os oprimidos e sofredores.

            Em todas as épocas da história do cristianismo, o Espírito de Deus suscitou dentro e fora da Igreja católica, belíssimos testemunhos de mulheres e homens dedicados à evangelização, fazendo opção pelos pobres. Trata-se de uma opção evangélica e radical, que está em plena sintonia com a missão de Jesus. Jesus nasceu, viveu, morreu e ressuscitou entre os pobres. O Deus e Pai de Jesus, desde Moisés, se revelou no meio dos pobres. Deus é o grande Libertador, que desceu para libertar o povo da escravidão (cf. Ex 3, 7-9).

            O presbítero não pode ser alguém desligado da vida do povo, separado somente para presidir o culto divino. A missão presbiteral acontece dentro e fora do templo religioso. Assim como Deus enviou Jesus para anunciar a Boa Notícia do seu Reino, o presbítero também é enviado para fazer a mesma experiência. Jesus não vivia somente prestando culto a Deus no Templo e nas sinagogas. O Evangelho fala que ele também pregou nestes lugares. Mas Jesus vivia caminhando, no meio do povo, anunciando o Reino de Deus: palavras e gestos proclamados no meio do povo, onde este se encontrava.

            A Igreja católica na América Latina, principalmente a partir do Concílio, passando por Medellín até Aparecida, fez uma clara opção preferencial pelos pobres. Muitos na Igreja viveram radicalmente esta opção. Os testemunhos são profeticamente eloquentes e jamais podem ser esquecidos, pois recordam a opção fundamental de Jesus: mulheres e homens que encarnaram a Boa Nova do Reino de Deus. Muitos derramaram seu sangue, alcançando a coroa do martírio, como o santo bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador. A solidariedade ativa com a vida do povo é parte essencial do ser presbítero. Para ser um bom presbítero, esta solidariedade deve estar presente.

“5. A maturidade para enfrentar os conflitos existenciais que surgem do contato com um mundo consumista, secularizado e até hostil aos valores do Evangelho”. A dimensão humana da formação trabalha, entre outros aspectos, a maturidade do presbítero. Entre as coisas desastrosas que se pode encontrar na Igreja está o presbítero imaturo, incapaz de enfrentar os conflitos existenciais que surgem no mundo. É verdade que não há quem seja plenamente maduro, pois a maturidade se adquire ao longo da vida; é um processo permanente.

            Certo grau de maturidade, necessário ao exercício do ministério, evita que o presbítero se exponha a situações vexatórias. No cotidiano das comunidades é comum encontrar presbíteros que não sabem lidar com os desequilíbrios emocionais dos outros, permitindo-se afetar por eles e, em muitos casos, caem na mesma situação. Em outras palavras, presbíteros desequilibrados não são capazes de ajudar as pessoas em seus dilemas existenciais, pois também eles precisam de ajuda.

            O consumismo, a secularização e a hostilidade aos valores do Evangelho são marcas do nosso tempo, que provocam inúmeros conflitos. Sem certo grau de maturidade é impossível lidar com tais realidades. O presbítero, para muitas pessoas, representa uma importante referência, um ponto de apoio onde é possível encontrar alívio para os conflitos existenciais que tais realidades provocam. Não é condenando as pessoas e o mundo que o presbítero dará uma resposta convincente e capaz de ajudar na solução dos conflitos. Presbíteros imaturos afastam as pessoas e provocam conflitos nas comunidades. Assim, a formação humana deve ser exigente para ajudá-los no desempenho da sua missão.

“6. O cultivo da dimensão ecumênica, o diálogo inter-religioso, no respeito à pluralidade de expressar a fé em Deus e nos valores do Evangelho”. A eclesiologia pós-Vaticano II é uma eclesiologia de comunhão, e a relação com os irmãos de outras Igrejas cristãs “é um caminho irrenunciável para o discípulo e missionário” (DAp., 227). A falta de unidade entre os cristãos é um escândalo e um pecado gravíssimo. Portanto, é inconcebível que tenhamos presbíteros que se dediquem a insultar e ridicularizar a fé dos irmãos de outras Igrejas e comunidades eclesiais. Prezar pelo respeito e o diálogo entre os cristãos de diferentes Igrejas é participar, efetivamente, da comunhão da Igreja.

            A fé cristã é única, mas as manifestações desta fé são plurais. Somente há um Cristo, uma só fé e um só batismo (cf. Ef 4, 5); mas há uma pluralidade de expressões desta mesma fé. O Espírito faz surgir uma diversidade de carismas, que torna o cristianismo plural e belo. Somente um presbítero que não tenha estudado absolutamente nada e seja bastante insensível, seria capaz de ignorar a urgente necessidade do ecumenismo.

            Aparecida também se pronunciou sobre o diálogo interreligioso: “O diálogo interreligioso, em especial com as religiões monoteístas, fundamenta-se justamente na missão que Cristo nos confiou, solicitando a sábia articulação entre o anúncio e o diálogo como elementos constitutivos da evangelização [...] (DAp., 237). Considerando que o presbítero participa da missão de Cristo, o diálogo interreligioso deve integrar a sua missão.

Neste sentido, é muito importante o conhecimento das demais religiões, para que este diálogo se torne efetivo e, assim, contribua com a paz no mundo. Sem conhecimento da riqueza e complexidade da diversidade religiosa, bem como sem a vontade de dialogar, o ecumenismo e o diálogo interreligioso continuarão sendo dois problemas espinhosos na vida da Igreja católica.

“7. A participação comprometida nos movimentos sociais, nas lutas do povo, com consciência política diante da corrupção e da decepção política, conservando, entretanto, sua identidade presbiteral, mantendo-se fiel ao que é específico do ministério ordenado e observando as orientações do Magistério da Igreja”. Durante o período imediatamente posterior ao Vaticano II, muitos presbíteros compreenderam a necessidade de participarem, efetivamente e de forma comprometida, das lutas empreendidas pelos movimentos sociais. Compreendia-se que as lutas do povo e a conscientização política deste também integrava o ministério dos bispos e dos presbíteros, principalmente. Não era possível optar pelos pobres sem participar de suas lutas.

            Ainda no tempo do pontificado de São João Paulo II, as ditaduras na América Latina encontraram a resistência de inúmeros bispos, presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, que ajudaram na conscientização e organização do povo. Atento aos excessos que surgiram na inserção de alguns presbíteros e bispos nas lutas populares, o então Papa João Paulo II não mediu esforços para alertar e até punir aqueles que se desviavam de sua função de ministros ordenados. Trata-se de um período muito intenso de conflitos entre conservadores e progressistas, dentro e fora da Igreja católica.

            A firme atuação do Papa João Paulo II fez ressurgir no seio da Igreja uma séria preocupação com a ortodoxia da fé. Durante este mesmo período surgiram na Igreja experiências neopentecostais, que permanecem até hoje. Trata-se de uma corrente eclesial que vive a fé a partir de experiências de oração e liturgias que acentuam mais o Cristo da fé, muitas vezes, em detrimento do Jesus histórico. Em Teologia falamos de uma “Cristologia do alto”.

Também nesta corrente eclesial, que congrega milhões de pessoas ao redor do mundo, encontramos alguns excessos. A ênfase no cristianismo de massa não favorece a vivência do seguimento de Jesus Cristo, tal como o Evangelho apresenta. Seguir Jesus é unir fé e vida, oração e ação, liturgia e caridade evangélica, tendo em vista a salvação integral da pessoa humana.

O presbítero é um homem do altar e do encontro com os que mais sofrem. Não é alguém que foi escolhido por Deus para, somente, presidir o culto divino e, nas “horas vagas”, permanece em sua casa, comportando-se de forma contrária às exigências do Evangelho de Jesus.  

“8. A capacidade de respeitar, de discernir e de suscitar serviços e ministérios para a ação comunitária e a partilha”. O presbítero não é o único ministro da comunidade paroquial nem da Igreja. Uma comunidade paroquial é constituída por diferentes ministérios. Párocos, vigários e administradores recebem do bispo o ofício de presidir a comunidade. Não se trata de se apoderar da comunidade, como se esta fosse mero objeto de controle e posse.

            O Código de Direito Canônico dispõe de um conjunto normativo que reconhece os direitos e deveres dos fieis leigos na vida da Igreja (cf. cânones 208 a 231). O presbítero, que estudou o Código no curso de Teologia, deve respeitar e promover os direitos dos leigos na Igreja. Quando se fala em serviço e ministério para a ação comunitária e a partilha, assim dispõe o Código: “Os leigos que são destinados permanente ou temporariamente a um serviço especial na Igreja tem a obrigação de adquirir a formação adequada, requerida para o cumprimento do próprio encargo e para exercê-lo consciente, dedicada e diligentemente” (CDC, cân. 231, §1).

            Para atender a esta obrigação, os leigos precisam do auxílio dos presbíteros. Os serviços e ministérios dos leigos na Igreja não constituem atividades remuneradas, pastoralmente falando. Ao participar das atividades pastorais da Igreja, os leigos têm a oportunidade de participar da missão da Igreja. Para que isto ocorra, o presbítero deve respeitar, discernir e suscitar serviços e ministérios.

Deve-se evitar posturas autoritárias que causam afastamentos, constrangimentos e humilhações. A comunidade eclesial não é uma empresa. Os leigos não são obrigados a servir em uma comunidade cujo presbítero os trata como se fossem empregados.

            Harmonia, respeito, cordialidade e espírito de cooperação devem nortear a relação entre leigos e presbíteros. Este é o ideal. Nada justifica posturas que causam divisão e escândalos. Os leigos são colaboradores, sem os quais a Igreja não poderia existir nem desempenhar, frutuosamente, a sua missão no mundo. Diante de Deus, os presbíteros não estão acima dos leigos, pois todos formam o povo de Deus, a assembleia dos que são chamados e enviados. Os leigos não são servidores dos presbíteros, mas com estes o são do Evangelho de Jesus.

“9. A promoção e a manutenção da paz e da concórdia fundamentada na justiça” (CIC 287, §1º). Todo presbítero precisa ser um homem que trabalha para promover e manter a paz e a concórdia fundamentada na justiça. Muito prejudica a Igreja a conduta de um presbítero que se dedica à confusão, provocando conflitos em confrontos com leigos e instituições. Um presbítero que possui o mínimo de maturidade e sólida formação não perde tempo com fofocas e provocações. Estas somente destroem a vida comunitária, e o presbítero não pode colaborar para isso.

            O presbítero é chamado a ser um ministro da reconciliação e da paz; deve ser uma referência para as pessoas. Estas devem enxergá-lo como homem pacífico, conciliador, empenhado na construção de um mundo de justiça e paz. Não pode se transformar em um agente da violência e da discórdia, mas precisa combater a cultura da violência que assola a humanidade.

Jogar as pessoas umas contra as outras e fazer apologia à violência que agride e mata não são atitudes de um presbítero consciente da sua missão no mundo. Por isso, não convém ao presbítero ser favorável à pena de morte, à prisão perpétua, à tortura e a todas as demais formas de agressão ao ser humano que se praticam no mundo.

“10. A configuração de homem de esperança e do seguimento de Jesus na cruz”. O Evangelho de Jesus é o Evangelho da esperança; uma esperança ativa. O Pai de Jesus é o Deus da esperança (cf. Rm 15, 13), Pai dos que confiam e esperam. Em um mundo marcado pelo desespero e pelo vazio existencial, entre outros males, o presbítero deve ser um homem de esperança, portador da esperança que jamais decepciona (cf. Rm 5, 5).

Na comunidade cristã encontramos pessoas desesperadas e decepcionadas, frustradas e desanimadas... Para elas, o presbítero deve ser o pastor que desperta a esperança em Deus. Sem esperança, não há como anunciar Jesus às pessoas, pois aquela se encontra no centro da mensagem cristã. Anunciando a esperança, o presbítero exerce o ministério da consolação dos aflitos, ajudando a aliviar as suas dores e angústias. Sem esperança, as pessoas se perdem no caminho da vida... Perdem o gosto de viver.

O presbítero deve ser homem do seguimento de Jesus na cruz. É no seguimento que se conhece Jesus e se aprende a amá-lo nos outros. Quem são esses outros? Na vida presbiteral, são todas as pessoas com as quais o presbítero se encontra, especialmente os que mais sofrem. No seguimento acontece o encontro com a face sofrida de Cristo. O presbítero deve se configurar a esta face sofrida, vivendo em comunhão de vida e oração com os sofredores deste mundo. Seguir Jesus na cruz significa se colocar a serviço dos crucificados da história, que sofrem, diuturnamente, nas periferias do mundo, periferias geográficas e existenciais.

Há uma tendência muito forte no cristianismo atual: apresentar um Cristo sem cruz. Consequentemente, surge um cristianismo desvinculado do sofrimento das vítimas da opressão. Isto explica a existência de celebrações litúrgicas sem vínculo com o seguimento do caminho percorrido por Jesus. O presbítero deve resistir a este tipo de tentação. A liturgia celebra a vida, e esta se traduz no cotidiano sofrido do povo de Deus. Sem a participação neste cotidiano marcado pela cruz de Cristo, a liturgia se resume a ritual e rubrica, sem vida e, portanto, sem razão de ser.

3. Conclusão

            Em seu livro “Identidade e espiritualidade do padre diocesano”, Dom Aloísio Lorscheider afirma que o presbítero deve estar atento a quatro atitudes: pureza de coração; domínio de si mesmo, docilidade ao Espírito Santo, e exercício da presença de Deus. Segundo o mesmo autor, “para manter vivo o desejo de aperfeiçoamento dentro das quatro atitudes, ora lembradas, ajuda muito um profundo conhecimento e amor de Deus Pai, de Jesus Cristo, do Espírito Santo, de Maria Santíssima, de nós mesmos”.

            De fato, estamos vivendo tempos difíceis no exercício do ministério ordenado. A sociedade pós-moderna cria modismos, ideologias e práticas nada cristãs e que terminam influenciando e envolvendo os cristãos pouco atentos e frágeis na fé. A malícia, o descontrole, a autossuficiência e a aversão aos valores cristãos são algumas das marcas do nosso tempo. Sem prudência, discernimento e espírito ascético, facilmente o presbítero pode se deixar envolver por ideias e práticas contrárias ao Evangelho de Jesus, levando-o a conhecer graves crises em seu ministério.

            O ministério presbiteral é belo e exigente. Continua sendo muito necessário à Igreja. Após o Vaticano II, passou por algumas modificações na sua compreensão e vivência. Certamente não é um ministério estático, mas deve permanecer aberto às exigências de cada época. Hoje, o jeito de ser presbítero é diferente do jeito vivido em épocas passadas. A identidade e a missão do presbítero precisam ser sempre repensadas.

É possível que a evolução dos tempos vá exigindo da Igreja católica novas formas de ser presbítero. É preciso escutar o que o Espírito diz. Há uma clara certeza que não pode ser negada: Precisa-se cada vez mais de presbíteros santos e comprometidos com o povo de Deus; homens de Deus, profundamente humanos. Trata-se de uma necessidade urgente. Abertura, ousadia, conteúdo, experiência de Deus, sensibilidade, liberdade, testemunho e profecia: são algumas características de um presbítero santo para nossos dias.

Tiago de França

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A transferência do ex-presidente Lula para um presídio de São Paulo

Merece nota o assunto, que se tornou o principal do dia. Não quero defender o ex-presidente Lula, pois para isto já tem seus advogados. Quero apenas levantar alguns questionamentos e/ou provocações. Numa época em que as pessoas engolem as coisas secamente, sem nenhuma reflexão, provocar é um ato saudável.

Sem entrar no mérito da condenação imposta pelo ex-juiz Sérgio Moro, que está sendo questionada nos Tribunais Superiores (STJ e STF), a transferência do ex-presidente para um presídio no qual se encontram criminosos que cometeram, dentre outros crimes, brutais assassinatos, nos parece fora de proporção. Alguém poderia perguntar: Mas o que o ex-presidente tem, que não pode ser encarcerado num presídio comum?

Há três fatores a serem considerados, para uma compreensão minimamente racional do caso: Primeiro, o ex-presidente foi submetido a uma execução antecipada da pena. Está em discussão no Brasil a validade do princípio constitucional da presunção de inocência. O Supremo Tribunal Federal vai rediscutir o assunto, que é de suma importância; pois, se está pendendo recursos nos Tribunais Superiores, como uma pessoa já pode ter a sua pena executada? A condenação não transitou em julgado. A Constituição da República já deu uma resposta, que, ocasionalmente, o Supremo resolveu modificar.

Segundo, o ex-presidente Lula não é um preso comum, nem um preso de alta periculosidade. Aqui não cabe juízo subjetivo desses termos. Juridicamente falando, há um entendimento objetivo desses termos. Não entra aqui o achismo de quem quer que seja. A lei é clara na exposição desses termos, e a jurisprudência dos Tribunais acompanha o entendimento. Lula é ex-presidente da República. Independentemente de gosto ou preferência política, e afastando-nos de qualquer preconceito, reconhecemos ser ele um dos maiores presidentes da história do Brasil; pois se olharmos para o que de positivo foi feito em seus 8 anos de governo, em seus dois mandatos consecutivos, veremos que o Brasil estava bem melhor do que está na atual conjuntura.

Portanto, é um disparate mandar um ex-presidente da República, que está tendo a sua condenação questionada, principalmente agora, após as mensagens vazadas pelo site The Intercept Brasil, que levantam suspeitas sobre o juiz que o condenou, cumprir pena em um presídio comum, no qual se encontram pessoas que, comprovadamente, cometeram crimes terríveis, como é o caso da Suzana von Richthopen, nacionalmente conhecido. O Judiciário deve ter o mínimo de respeito por um ex-presidente que muito fez pelo País. O mínimo que se pode fazer a um homem do porte do ex-presidente Lula, mundialmente conhecido e respeitado, e que já ultrapassou seus 70 anos de idade, é que a execução provisória de sua pena seja efetivada em estabelecimento prisional digno da dignidade de alguém que ocupou o cargo de Presidente da República. Não estamos defendendo privilégio, mas ressaltando a dignidade que cada pessoa goza diante da lei e da Constituição.

Terceiro, o Ministério Público Federal, órgão acusador que pediu a condenação do ex-presidente, se manifestou contrário à transferência do ex-presidente. Veja que até quem o acusou injustamente é contra a transferência do ex-presidente para um presídio comum! Até políticos opositores ao ex-presidente reconhecem a falta de razoabilidade da transferência, confirmando, assim, uma nítida perseguição política, iniciada desde o momento da apresentação midiática da denúncia contra o ex-presidente. Somente quem é desprovido do mínimo de bom senso não enxerga a nítida perseguição ao ex-presidente. Está tudo muito claro.

Cabe ao STF, que é chamado a ser o guardião da Constituição, interferir no caso e fazer valer o que manda a lei e o princípio da dignidade da pessoa humana: assegurar que a pena imposta, que está sendo questionada, seja cumprida dentro dos limites da lei, pois esta transferência visa satisfazer o ódio e o espírito de vingança que dominam alguns indivíduos que desconhecem a lei, achando que justiça é sinônimo de humilhação dos que lhes são considerados inimigos. A condenação do ex-presidente Lula já queimou o Brasil perante os organismos, instituições e pessoas sérias, na ordem internacional. Não é possível que o Supremo Tribunal queira expor o Brasil a outro vexame, permitindo que o ex-presidente seja exposto a tamanha injustiça.

Tiago de França