Há vinte anos, no dia 27 de
agosto de 1999, faleceu Dom Helder Câmara. Também no dia 27 de agosto, mas do
ano de 2006, faleceu Dom Luciano Mendes de Almeida; e na mesma data do ano
2017, faleceu Dom José Maria Pires. O primeiro, cearense, um profeta de Deus. O
segundo, jesuíta erudito, nasceu no Rio de Janeiro, outro grande profeta. O terceiro,
primeiro bispo negro da Igreja Católica no Brasil, era de Minas Gerais. A memória
destes três grandes bispos profetas da Igreja não pode passar despercebida. Entre
muitas características, queremos elencar apenas três, que nos interpelam hoje a
sermos fieis a Jesus Cristo.
Antes de apresentarmos as três características, queremos
falar, muito brevemente, da missão do profeta. Isto certamente nos ajudará a
compreender a importância e o alcance do testemunho destes três profetas da
Igreja Católica no Brasil. O profeta é um mensageiro de Deus. Um mensageiro é
portador de uma mensagem, de uma palavra que não é sua. Aquele que envia o
encarregou da missão de anunciar esta mensagem. Portanto, o profeta é um mensageiro
da palavra de Deus (cf. Jr 1, 4-10).
Não cabe ao profeta decidir se vai ou não anunciar a mensagem
divina, bem como se anunciará plenamente ou pela metade. Deus confia ao profeta
uma palavra plena, cortante e penetrante como espada de dois gumes (cf. Hb 4,
12). Esta palavra dura para a vida eterna e é a única capaz de salvar (cf. Jo
6, 68). Esta palavra é como a chuva que cai sobre a terra, gerando frutos
abundantes de vida e santidade (cf. Is 55, 10-11). Não há palavra humana que
seja capaz de revogar a palavra divina, pois o que esta promete, realiza. Deus envia
o profeta para proclamar esta palavra, a fim de que haja vida no mundo.
O profeta é um homem do gesto. Deus concede ao gesto do
profeta um poder de atração e de transformação. O gesto profético não tem a
finalidade de promover o profeta, mas de apontar para Deus; pois é Deus quem
confere ao gesto a força capaz de atrair, transformar, persuadir, santificar e
glorificar. O gesto profético possui um caráter de anúncio e de denúncia. Não são
gestos grandiosos nem espetaculares, mas simples e cotidianos. A pedagogia
divina revela que Deus se manifesta a partir das pequenas coisas, a partir
daquilo que as pessoas julgam insignificante e sem força.
A tradição bíblica revela que o profeta é uma pessoa
escolhida por Deus; é sempre alguém do povo. Deus o suscita entre os pobres. Na
história da Igreja encontramos profetas oriundos de famílias ricas, mas ao
receberem o chamado de Deus, abandonaram tudo para assumir a missão profética. Exemplo
disso é São Francisco de Assis, que abraçou a pobreza, assemelhando-se a Jesus,
e se transformou em um grande profeta para a Igreja de sua época e dos tempos
posteriores. O profeta sabe que precisa se fazer pequeno e humanamente frágil,
para que a força e a grandeza de Deus se manifestem. Esta é a dinâmica do
chamado à profecia.
O profeta é um homem da palavra, do gesto e da pequenez. Não
é alguém que procura o prestígio, a riqueza e o poder. Pelo contrário, é
chamado a denunciar aqueles que se encontram apegados a estas coisas, que
concentradas nas mãos de poucos, constituem a desgraça da humanidade. Dom Helder,
Dom Luciano e Dom José tinham plena consciência disso. Tinham consciência também
do chamado que receberam de Deus. A prova disso é a total entrega de suas vidas
nas grandes causas do Reino de Deus. Eram homens doados, cheios do Espírito
Santo.
A opção
preferencial pelos pobres é uma das marcas da vida episcopal dos três
bispos. Eram homens de vida simples, que atraía os mais simples. Quem os
conhecia de perto enxergava a humildade e a simplicidade presentes em suas
vidas. Colocaram em prática as orientações do Concílio Vaticano II e da
Conferência de Medellín, bem como os apelos do denominado “Pacto das Catacumbas”,
assinado por vários bispos da América Latina: momentos eclesiais que apontavam
para um novo modelo de bispo na Igreja Católica: a passagem do bispo “príncipe”
para o bispo pobre e servidor. A opção pelos pobres, traduzida pela participação
na vida sofrida dos pobres, em suas lutas por justiça e paz, pode ser
considerada a grande marca da vida episcopal de Dom Helder, Dom Luciano e Dom
José.
Outra característica da vida desses homens de Deus é a profunda fé em Deus. Os profetas são
homens de fé. Para enfrentar os horrores da ditadura, da fome, da violência, da
perseguição, da calúnia e difamação, da ameaça e tantas injustiças que afligiam
a vida dos pobres, nos contextos em que eles atuaram, somente uma profunda fé
em Deus foi capaz de sustentá-los. A fé alimentada na oração e na comunhão
eucarística transformou estes homens em profetas do Reino de Deus. Quem se
aproximava deles, logo sentia que eram homens que viviam mergulhados em Deus. Dom
Helder, por exemplo, dormia muito pouco, para ficar em vigília, rezando, lendo,
meditando, escrevendo, conversando com Deus. Era homem de grande densidade
espiritual.
Dom Luciano Mendes era doutor em Filosofia. Tinha um
poder de síntese, assimilação e uma facilidade de traduzir em simples palavras
aquilo que era considerado complexo, que causavam admiração. Suas análises eram
precisas e proféticas. Falava com muita humildade. Como um bom jesuíta, sabia
discernir as coisas, e denunciava as injustiças com firmeza. Quem o via de
longe, nunca imaginava que se tratava de um homem de tamanha inteligência,
profecia e bondade. Servia aos pobres, sem medo e com ousadia. Ensinava mais
com os gestos que com as palavras.
Dom José Maria Pires era negro, mineiro do sorriso largo,
homem simples e dado ao povo. Teve a graça de participar do Concílio Vaticano
II, como Padre conciliar. Tinha uma viva memória de tudo o que aconteceu no
Concílio. Quando convidado para falar sobre o assunto, fazia questão de contar
os bastidores do Concílio que abriu as portas da Igreja para a necessária
renovação. Dom José também era chamado de “Dom Pelé”, porque integrava, com
alegria e valentia, a luta dos negros no Brasil, contra o racismo e a exclusão
social. Signatário do “Pacto das Catacumbas”, viveu um estilo de vida simples e
próximo ao povo.
Por fim, cabe-nos falar do profundo amor que estes homens tinham à Igreja. Eles não amavam uma Igreja meramente institucional, mas a
Igreja concebida pelo Vaticano II: Igreja-Povo de Deus, peregrina neste mundo.
Seus escritos, gestos e palavras, que podem ser acessados nos livros e
pesquisas biográficas, traduzem bem este amor à Igreja-Povo de Deus. O testemunho
profético destes bispos constitui um apelo à Igreja atual, para que abrace, de
uma vez por todas, a opção preferencial pelos pobres, nestes tempos difíceis.
Assim como fizeram em seus contextos, também na realidade
atual, os bispos, padres, religiosos/as, leigos e leigas, enfim, toda a Igreja,
precisa escutar os apelos do Espírito, para que ressurja, no Brasil e no mundo,
o espírito de profecia. Precisamos urgentemente de profetas: mulheres e homens
que anunciem o Reino e denunciem as injustiças, que defendam a vida plena para
todos. O Brasil está dominado por um projeto de poder que engana, ameaça e mata
a vida, tanto a vida humana quanto a vida da natureza. Dom Helder, Dom Luciano
e Dom José nos ensinam que a Igreja não pode se calar diante de tantas
injustiças, de tantos desvios e tanto deboche.
O Espírito do Senhor, que conduziu estes profetas na
missão, é o mesmo que continua presente na vida Igreja. É necessário escutar o
que o Espírito está dizendo. Ele renova a missão de Jesus no mundo, e
transforma todo discípulo em missionário de Jesus. Para isso, é preciso entrega
sem medo, generosidade e alegria, muito amor e disposição para servir. Os pobres
clamam por justiça, e o seu clamor chega aos céus. A profecia não pode ser
rejeitada. O amor vencerá. Deus é infinitamente bom. Que o testemunho destes
santos homens nos inspire na missão!
Tiago de França
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