terça-feira, 27 de agosto de 2019

Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes e Dom José Maria Pires: profetas do Reino de Deus.


         
         Há vinte anos, no dia 27 de agosto de 1999, faleceu Dom Helder Câmara. Também no dia 27 de agosto, mas do ano de 2006, faleceu Dom Luciano Mendes de Almeida; e na mesma data do ano 2017, faleceu Dom José Maria Pires. O primeiro, cearense, um profeta de Deus. O segundo, jesuíta erudito, nasceu no Rio de Janeiro, outro grande profeta. O terceiro, primeiro bispo negro da Igreja Católica no Brasil, era de Minas Gerais. A memória destes três grandes bispos profetas da Igreja não pode passar despercebida. Entre muitas características, queremos elencar apenas três, que nos interpelam hoje a sermos fieis a Jesus Cristo.

            Antes de apresentarmos as três características, queremos falar, muito brevemente, da missão do profeta. Isto certamente nos ajudará a compreender a importância e o alcance do testemunho destes três profetas da Igreja Católica no Brasil. O profeta é um mensageiro de Deus. Um mensageiro é portador de uma mensagem, de uma palavra que não é sua. Aquele que envia o encarregou da missão de anunciar esta mensagem. Portanto, o profeta é um mensageiro da palavra de Deus (cf. Jr 1, 4-10).

            Não cabe ao profeta decidir se vai ou não anunciar a mensagem divina, bem como se anunciará plenamente ou pela metade. Deus confia ao profeta uma palavra plena, cortante e penetrante como espada de dois gumes (cf. Hb 4, 12). Esta palavra dura para a vida eterna e é a única capaz de salvar (cf. Jo 6, 68). Esta palavra é como a chuva que cai sobre a terra, gerando frutos abundantes de vida e santidade (cf. Is 55, 10-11). Não há palavra humana que seja capaz de revogar a palavra divina, pois o que esta promete, realiza. Deus envia o profeta para proclamar esta palavra, a fim de que haja vida no mundo.

            O profeta é um homem do gesto. Deus concede ao gesto do profeta um poder de atração e de transformação. O gesto profético não tem a finalidade de promover o profeta, mas de apontar para Deus; pois é Deus quem confere ao gesto a força capaz de atrair, transformar, persuadir, santificar e glorificar. O gesto profético possui um caráter de anúncio e de denúncia. Não são gestos grandiosos nem espetaculares, mas simples e cotidianos. A pedagogia divina revela que Deus se manifesta a partir das pequenas coisas, a partir daquilo que as pessoas julgam insignificante e sem força.

            A tradição bíblica revela que o profeta é uma pessoa escolhida por Deus; é sempre alguém do povo. Deus o suscita entre os pobres. Na história da Igreja encontramos profetas oriundos de famílias ricas, mas ao receberem o chamado de Deus, abandonaram tudo para assumir a missão profética. Exemplo disso é São Francisco de Assis, que abraçou a pobreza, assemelhando-se a Jesus, e se transformou em um grande profeta para a Igreja de sua época e dos tempos posteriores. O profeta sabe que precisa se fazer pequeno e humanamente frágil, para que a força e a grandeza de Deus se manifestem. Esta é a dinâmica do chamado à profecia.

            O profeta é um homem da palavra, do gesto e da pequenez. Não é alguém que procura o prestígio, a riqueza e o poder. Pelo contrário, é chamado a denunciar aqueles que se encontram apegados a estas coisas, que concentradas nas mãos de poucos, constituem a desgraça da humanidade. Dom Helder, Dom Luciano e Dom José tinham plena consciência disso. Tinham consciência também do chamado que receberam de Deus. A prova disso é a total entrega de suas vidas nas grandes causas do Reino de Deus. Eram homens doados, cheios do Espírito Santo.

            A opção preferencial pelos pobres é uma das marcas da vida episcopal dos três bispos. Eram homens de vida simples, que atraía os mais simples. Quem os conhecia de perto enxergava a humildade e a simplicidade presentes em suas vidas. Colocaram em prática as orientações do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, bem como os apelos do denominado “Pacto das Catacumbas”, assinado por vários bispos da América Latina: momentos eclesiais que apontavam para um novo modelo de bispo na Igreja Católica: a passagem do bispo “príncipe” para o bispo pobre e servidor. A opção pelos pobres, traduzida pela participação na vida sofrida dos pobres, em suas lutas por justiça e paz, pode ser considerada a grande marca da vida episcopal de Dom Helder, Dom Luciano e Dom José.

            Outra característica da vida desses homens de Deus é a profunda fé em Deus. Os profetas são homens de fé. Para enfrentar os horrores da ditadura, da fome, da violência, da perseguição, da calúnia e difamação, da ameaça e tantas injustiças que afligiam a vida dos pobres, nos contextos em que eles atuaram, somente uma profunda fé em Deus foi capaz de sustentá-los. A fé alimentada na oração e na comunhão eucarística transformou estes homens em profetas do Reino de Deus. Quem se aproximava deles, logo sentia que eram homens que viviam mergulhados em Deus. Dom Helder, por exemplo, dormia muito pouco, para ficar em vigília, rezando, lendo, meditando, escrevendo, conversando com Deus. Era homem de grande densidade espiritual.

            Dom Luciano Mendes era doutor em Filosofia. Tinha um poder de síntese, assimilação e uma facilidade de traduzir em simples palavras aquilo que era considerado complexo, que causavam admiração. Suas análises eram precisas e proféticas. Falava com muita humildade. Como um bom jesuíta, sabia discernir as coisas, e denunciava as injustiças com firmeza. Quem o via de longe, nunca imaginava que se tratava de um homem de tamanha inteligência, profecia e bondade. Servia aos pobres, sem medo e com ousadia. Ensinava mais com os gestos que com as palavras.

            Dom José Maria Pires era negro, mineiro do sorriso largo, homem simples e dado ao povo. Teve a graça de participar do Concílio Vaticano II, como Padre conciliar. Tinha uma viva memória de tudo o que aconteceu no Concílio. Quando convidado para falar sobre o assunto, fazia questão de contar os bastidores do Concílio que abriu as portas da Igreja para a necessária renovação. Dom José também era chamado de “Dom Pelé”, porque integrava, com alegria e valentia, a luta dos negros no Brasil, contra o racismo e a exclusão social. Signatário do “Pacto das Catacumbas”, viveu um estilo de vida simples e próximo ao povo.

            Por fim, cabe-nos falar do profundo amor que estes homens tinham à Igreja. Eles não amavam uma Igreja meramente institucional, mas a Igreja concebida pelo Vaticano II: Igreja-Povo de Deus, peregrina neste mundo. Seus escritos, gestos e palavras, que podem ser acessados nos livros e pesquisas biográficas, traduzem bem este amor à Igreja-Povo de Deus. O testemunho profético destes bispos constitui um apelo à Igreja atual, para que abrace, de uma vez por todas, a opção preferencial pelos pobres, nestes tempos difíceis.

            Assim como fizeram em seus contextos, também na realidade atual, os bispos, padres, religiosos/as, leigos e leigas, enfim, toda a Igreja, precisa escutar os apelos do Espírito, para que ressurja, no Brasil e no mundo, o espírito de profecia. Precisamos urgentemente de profetas: mulheres e homens que anunciem o Reino e denunciem as injustiças, que defendam a vida plena para todos. O Brasil está dominado por um projeto de poder que engana, ameaça e mata a vida, tanto a vida humana quanto a vida da natureza. Dom Helder, Dom Luciano e Dom José nos ensinam que a Igreja não pode se calar diante de tantas injustiças, de tantos desvios e tanto deboche.

            O Espírito do Senhor, que conduziu estes profetas na missão, é o mesmo que continua presente na vida Igreja. É necessário escutar o que o Espírito está dizendo. Ele renova a missão de Jesus no mundo, e transforma todo discípulo em missionário de Jesus. Para isso, é preciso entrega sem medo, generosidade e alegria, muito amor e disposição para servir. Os pobres clamam por justiça, e o seu clamor chega aos céus. A profecia não pode ser rejeitada. O amor vencerá. Deus é infinitamente bom. Que o testemunho destes santos homens nos inspire na missão!

Tiago de França

Nenhum comentário: