quarta-feira, 30 de abril de 2014

Filosofia e mediocridade

         
         Na era do facebook e do Whatsapp, a arte de pensar se torna cada vez mais dolorosa. Esta afirmação orientará esta breve reflexão. Pensar dói e esta dor tem sido insistentemente evitada. Para quem está habituado à reflexão sobre si mesmo e sobre a vida, ficar sem pensar parece coisa absurda e até desastrosa. De fato, uma análise não muito profunda do mundo atual nos leva, inevitavelmente, à afirmação de que os desastres humanos e naturais decorrem dessa ausência de pensamento, dessa fuga desesperada do ser humano quanto ao pensar. Foge-se deste como foge o diabo da cruz.

            O facebook é um exemplo eficaz da atual situação do pensamento humano. É o retrato da vida superficial e banalizada. Nele, as pessoas expressam seus gostos e sentimentos, suas angústias e alegrias. Algumas postagens são um verdadeiro escândalo! As pessoas, sem pudor algum, externam seus preconceitos, seus medos, suas fobias, suas frustrações e também suas preocupações. A regra é curtir e ser curtido. Cria-se uma necessidade doentia de ser visto e de chamar a atenção. É a carência virtual da atenção, mas esta tem um grave problema.

            Antes que o leitor se estresse e se recuse a continuar lendo e curtindo o presente texto, queremos dizer que não somos contrários à necessária comunicação entre as pessoas e culturas. O ser humano é epifania no mundo, ou seja, manifestação evolutiva e irresistível. O desejo de sair de si e ir ao encontro, expor-se e aparecer, parece ser coisa comum e inevitável. Somos seres que aparecemos à percepção recíproca. Quer queiramos, quer não, não estamos estagnados, fomos criados para fora, para a ida, a partida, para o mundo; mesmo que este mundo seja nosso próprio interior, mas a vida é uma constante saída, por mais dolorosa que seja. Somos seres inquietos.

            Pois bem, tendo confortado o leitor que possa ter se deixado tomar pelo vício do uso das redes sociais, voltemos ao problema da atenção. Por mais que tais redes nos convençam de que estamos na moda, de que somos curtidos e apreciados, não nos enganemos. Isso parece ser ilusão. A melhor curtida continua sendo aquela que acontece na contemplação real dos rostos, dos quais surge o apelo da permanência com o outro. No facebook, as pessoas se curtem, superficial e virtualmente, sem contato físico, sem cheiro, sem a devida e necessária aproximação dos corpos. Tudo parece muito frio, fragmentado, liquidamente colorido. Nunca se sabe o sentimento do outro, sabe-se de suas expressões nas imagens e nas palavras que, muitas vezes, são reproduzidas e compartilhadas sem reflexão nenhuma.

            Com isto tratamos muito mal e conceituamos equivocadamente a atenção. Esta continua sendo o lugar da percepção física que instiga o encontro com o outro e neste encontro acontece o maravilhoso fenômeno do autoconhecimento e do autêntico progresso humano. Por fim, é preciso sintetizar na seguinte ideia: atenção, a necessária atenção, carece de presença real do outro; presença que questiona, que atrai, que gera o que há de mais humano nas pessoas. A atenção das redes sociais é um mero curtir entre conhecidos e desconhecidos. No fundo, quase ninguém está sendo percebido, pois a qualquer momento pode ser, rápida e friamente, deletado.

            Até aqui estamos querendo falar da importância da filosofia para a vida. No senso comum se afirma que os pensadores são uns desocupados que se ocupam com o que não existe, com ideias puramente abstratas que não levam a nada. Outros ainda acham que os filósofos são uns loucos, que encontram e criam questões que não deveriam existir, pois mais perturbam do que orientam. Estas pessoas, que não sabem o que é filosofia nem o que vem a ser um filósofo, cometem um equívoco simples, do qual não tem a mínima consciência e que pode ser entendido da seguinte forma: dominadas pelo medo de si mesmas, esforçam-se a todo o momento para evitar o pensar a respeito de si mesmas.

            Filosoficamente, a maior virtude da filosofia é levar o homem a pensar sobre si mesmo, pois somente assim passa a compreender-se e a compreender o outro. Os filósofos sabem que o mal do homem é esta ausência de autocompreensão. As perguntas levantadas pela filosofia conduzem à libertação da vida medíocre. O que seria a mediocridade? Muito se tem a dizer sobre ela, mas aqui nos interessa afirmar que a mediocridade se refere ao estado de vida da pessoa que visa somente atender suas necessidades vitais e instintivas: comer, caminhar, dormir, cantar, rir, chorar, fazer sexo etc., um mero caminhar para a morte. Para os filósofos, uma vida sem reflexão perde seu sentido, pois o homem não é um mero animal, preso aos seus instintos. O homem cria arte e por desta se constrói, e toda forma de arte é essencialmente filosófica.

            Assim, uma simples pergunta como esta: O que ando fazendo da minha vida? é capaz de mudar totalmente o rumo da existência, “obrigando” a pessoa a pensar sobre os motivos de seus pensamentos, de suas palavras e de suas ações. A vida se torna verdadeiramente apaixonante quando o ser humano se envereda pelo caminho mais certo e incerto de todos: o do pensar sobre si mesmo. Certo porque aponta para o sentido de todas as coisas e incerto porque não garante uma verdade absoluta.

Olhamos para as pessoas e logo vem à mente a seguinte expressão: Parece que fulano não se enxerga! Esse não enxergar-se é sintoma latente de falta de autorreflexão. Outros, porém, também podem olhar para nós e dizer: Sicrano parece que não se enxerga! O que o impede de ver a realidade? Só há visão com reflexão. O olhar humano está inevitavelmente condicionado pela reflexão. O mesmo se pode dizer a respeito de nosso jeito de ser e de sentir: está condicionado pela nossa maneira de ver a nós mesmos e ao mundo.  

            Por fim, consideremos a mediocridade expressa no comportamento humano atual. São filhas da mediocridade: a imaturidade e a cegueira. É uma filiação lógica. Se a pessoa não pensa sobre vida e a respeito de seu próprio modo de ser, está fadada ao fracasso de si mesma. Não há crescimento algum. A pessoa não evolui para melhor. A imaturidade consiste nisso: ela pensa que já alcançou o cume da maturidade e passa a achar que o problema está sempre no outro. Este é que deve suportá-la. Aqui está a origem de muitos conflitos interpessoais. Quando não pensa dessa forma, a pessoa sabe da necessidade de progredir, mas a preguiça mental a impede de crescer. Há uma acomodação total. Todos caminham, o movimento do mundo não para e a pessoa insiste em permanecer no mesmo lugar. Como diz a música: “Eu nasci assim, eu sou bem assim e vou ser sempre assim”...

            A cegueira da consciência é coisa extremamente perigosa na vida humana. Tal cegueira ocasiona o caos na sociedade. Por causa dela, a corrupção aumenta e o mundo não progride para melhor. Um cego de consciência se transforma em massa de manobra: não sabe onde se encontra nem para onde vai. Vive segundo os modismos de época: resume-se a ser igual a todo mundo, fazendo o que os outros fazem. Dessa forma, a manipulação se torna absoluta e a pessoa não consegue ser ela mesma. Uma vez tendo se recusado a pensar por si mesma, não consegue enxergar que está sendo manipulada.

            Por fim, é preciso considerar que toda pessoa é livre para levar uma vida autêntica ou inautêntica. A primeira opção, marcada pela reflexão, é uma via mais dolorosa, cheia de aventuras e de novidades. A segunda, marcada pela superficialidade e pela ilusão, é uma via fácil e de consequências trágicas.

Um dia, visitando um enfermo idoso em um hospital, escutava seu lamento: “Seu moço, estou profundamente angustiado, pois sei que vou morrer e não vejo sentido nesses anos todos que passei neste mundo. Minha vida não passou de uma ilusão. Agora estou diante da morte e se eu tivesse parado para pensar em muitas coisas que eu fiz, não as teria feito. Sempre tive tudo na vida, mas não conheci a tal da felicidade...” O auge do sofrimento desperta a muitos do sono da mediocridade e da cegueira. Outros, porém, possuem um sono demasiadamente pesado: mesmo sofrendo não acordam. Passam a vida dormindo e morrem quase do mesmo jeito que nasceram.

            Tiago de França

terça-feira, 29 de abril de 2014

Desarmar-se

O canto dos pássaros
O sorriso das crianças
A beleza das flores
Pedem:
Desarmem-se!

Maria que perdeu José 
O companheiro de janta e de cama
José que perdeu Joaquim
Filho único e querido. Pedem:
Desarmem-se!

Maria que perdeu Pedro
Seu querido namorado
A Amazônia que perdeu Dorothy
Sua escudeira e amiga. Pedem:
Desarmem-se!

Tu que não me compreendeste
Por egoísmo e por interesses
Eu que por intransigência
Fechando-me, perdi a ocasião. Pedimos:
Desarmemo-nos!

Desarmar-se. Que significa?
Significa reticência, jamais ponto final
Quer dizer portas e janelas abertas, jamais isolamento
Convence-nos de que o hoje é verdade e liberdade
Jamais fingimento. Desamar-se é olhar para o amanhã, permitindo-se

Olha as vozes dos ensanguinados
Escuta o vermelho e o buraco da bala
As lágrimas, os gritos, o desespero
Portanto e acima de tudo, imploramos:
Desarmemo-nos!

Amemos!

(Tiago de França)

sábado, 26 de abril de 2014

Os projetos de Igreja de João XXIII e João Paulo II

A modo de introdução

            É incontável o número de manifestações em todo o mundo, por ocasião das canonizações dos papas João XXIII e João Paulo II. Sobre o primeiro não há opiniões contrárias significativas, mas em relação ao papa oriundo da Polônia, as vozes contrárias à sua canonização são muitas e causam certa preocupação naqueles que ainda sonham com uma Igreja mais humana e fraterna.

Não queremos traçar perfis biográficos sobre os mencionados papas, pois teríamos muito a dizer, mas nos debruçaremos sobre alguns pontos dos projetos de Igreja que ambos defenderam e procuraram viver. No final, tentaremos responder a uma pergunta um tanto oportuna: Por que o papa Francisco teve a iniciativa de canonizar João XXIII e João Paulo II no mesmo dia, neste domingo, 27 de abril? Geralmente, as pessoas não param para pensar em questões como estas, deixando-se levar somente pela beleza da cerimônia e sua repercussão na mídia.  

O projeto de Igreja do papa João XXIII

            As biografias que falam do papa João XXIII são unânimes ao afirmar que ele era um homem amável, humilde, discreto e profundo conhecedor da história da Igreja. Estas três primeiras qualidades fizeram-no entrar para a história com o título de “papa bom”. De fato, os relatos transmitem a imagem de um homem despojado, aberto e próximo. Era um autêntico homem de Igreja, profundamente marcado pelo zelo apostólico e aberto ao que o Espírito do Senhor estava falando naquela ocasião.

Tratava-se de um papa que não estava preso à Cúria Romana, mas atento aos clamores do povo de Deus, escutava-o com ternura e preocupação. Seus escritos espirituais revelam que era homem de oração e de escuta amorosa, piedoso e fervoroso. Não gozava da eloquência e inteligência de seu predecessor, o papa Pio XII, mas soube demonstrar com palavras e gestos a essência do evangelho de Jesus: o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.  

            Quais as marcas fundamentais do projeto de Igreja do papa João XXIII? Elas se encontram nos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, profeticamente convocado por ele, especialmente nos textos da Gaudium et spes (Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual) e Lumen gentium (Constituição dogmática sobre a Igreja). O papa João XXIII sonhava com uma Igreja aberta ao mundo e essencialmente missionária.

Uma Igreja aberta não anuncia a si mesma, mas o evangelho de Jesus para a libertação integral da humanidade. Sua dimensão essencialmente missionária a conduz para fora, para o mundo, para o encontro com as pessoas, servindo-as no amor e na misericórdia. O “papa bom” não queria uma Igreja acostumada a condenar o mundo, mas sonhava com a ressurreição da verdadeira Igreja, servidora dos pobres e marginalizados da sociedade.  

            Neste sentido, a Igreja pensada pelo papa italiano deve renunciar à sede de poder, prestígio e riqueza para recolocar o evangelho de Jesus no centro de sua vida e missão. Ele tinha plena consciência da missão fundamental da Igreja: evangelizar. Para isto, o caminho do despojamento é imprescindível, sem o qual o anúncio não é possível. Uma Igreja centralizada em si mesma não pensa no próximo, mas somente em si mesma, transforma-se facilmente em uma erva daninha, excessivamente nociva à humanidade, motivadora de discórdia e confusão.

 Quando ensimesmada, a Igreja abandona Jesus e seu evangelho, e se torna aliada dos poderes opressores deste mundo, prestando um desserviço ao autêntico progresso da humanidade. Foi pensando nesta abertura ao mundo que o papa João XXIII teve a ousadia de convocar o Vaticano II, concílio marcadamente pastoral, que obrigou a Igreja a rever sua vida e missão no mundo.  

            A maioria dos membros da Igreja Católica, infelizmente, não tem noção da importância do Vaticano II. Não há uma visão histórica cultivada pelas pessoas e isto é demasiadamente perigoso para a vida eclesial. Um povo sem memória não confere  devida importância para a evolução dos acontecimentos e não tem perspectivas de futuro. Como pensar no futuro se não há memória histórica do passado e reflexão aberta do tempo presente? Uma Igreja que não sabe de onde veio, não sabe onde se encontra, consequentemente, não sabe para onde vai.

A desorientação causa sensação de vazio e angústia. É a imagem das ovelhas sem pastor, do evangelho segundo João, totalmente expostas aos ataques dos lobos ferozes que não perdem tempo, aproveitando-se da cegueira e da insensatez do rebanho. Mesmo após o Vaticano II, especialmente no longo e conflituoso pontificado do papa João Paulo II, os católicos que meditam mais o evangelho do que a lei canônica, sentiam-se angustiados e sem perspectivas de futuro, dada a letargia que tomou conta da Igreja.

            A geração jovem, inimiga da história e marcada pela preguiça mental, mergulhada no mundo fragmentado das redes sociais, deixa-se levar por pensamentos soltos, por ideologias infundadas e pelo saudosismo doentio. Não há coragem para ir às fontes históricas, para uma leitura e reflexão dos acontecimentos. O resultado é terrivelmente nocivo: o aparecimento desenfreado de pessoas alienadas e fanáticas, que falam sobre Jesus sem nunca terem lido o evangelho e se o leram, nada compreenderam. É isto que começou a existir a partir do pontificado do papa polonês, João Paulo II.

O projeto de Igreja do italiano João XXIII é, portanto, marcado por estas três palavras: fé, esperança e caridade. Uma fé experimentada na vida cotidiana, provada no fogo da existência dolorosa; uma esperança que lança o crente para o futuro, para o encontro definitivo com o Pai das misericórdias; e uma caridade incansável e humilde, capaz de gerar a fraternidade universal, alicerce do Reino definitivo.

O “papa bom” não foi aclamado “santo súbito”, pois na época a mídia não tinha a eficácia que hoje tem. Suas palavras e gestos não tiveram a popularidade gozada pelo papa João Paulo II, que soube como nenhum outro pontífice beneficiar-se do poder manipulador da mídia.  

O projeto de Igreja do papa João Paulo II

            As biografias que falam do grande papa João Paulo II não escondem seu carisma, sua disposição e sua incansável vontade de se encontrar com as pessoas. Suas inúmeras viagens o tornaram conhecido. Sabia realizar gestos que causavam comoção nas pessoas: beijava o chão dos lugares por onde andava, beijava crianças, abraçava os jovens, sorria, cantava, dançava e se identificava com a multidão. Era o papa das multidões.  

As jornadas mundiais da juventude levavam muitos jovens a viajarem pelo mundo, a escutá-lo em suas homilias e discursos, profundamente marcados pela tradição e pela ortodoxia. O “Papa é pop!”, cantavam as multidões! Utilizando-se de paramentos litúrgicos caríssimos e de cerimônias grandiosas, o papa João Paulo II impressionava a todos, até pessoas pouco ou nada religiosas.

Conhecia muito bem como funcionava a mentalidade das multidões. Justamente por isso, ao chegar de uma viagem já marcava a próxima, pois tinha êxito no encontro com as pessoas. Estas o admiravam sem compreendê-lo em seus discursos. Na verdade, queriam mesmo era vê-lo e tocá-lo, pois a proximidade de sua pessoa transmitia paz e serenidade, ânimo e alegria.

Suas exortações eram firmes e claras, caracterizadas pela moral e disciplina, pouco observadas pelos católicos em tempos de pós-modernidade. Combateu a pós-modernidade até a morte agonizante, sendo dolorosamente visto nas janelas do palácio apostólico, pouco antes de morrer; imagem que entrou para a história e que provocou o grito das multidões: “Santo súbito!”

            Devoto de Maria, mãe de Jesus, o papa João Paulo II era homem de oração, muito piedoso e de virtudes pessoais reconhecidas. Disciplinado e rigoroso, era venerado pela maioria dos bispos e padres da Igreja. Até certo ponto tinha pleno controle sobre a Cúria Romana, pois era constituída de clérigos de sua confiança, que mantinham tudo em pleno funcionamento e eficácia.  

Tinha muita facilidade para o diálogo, especialmente para convencer o interlocutor a aceitar suas prerrogativas e as da Igreja. Era um exímio defensor dos interesses da Igreja junto aos poderes constituídos do mundo. A Cúria o mantinha informado de tudo e isto facilitava seu controle sobre as Igrejas particulares em todo o mundo católico. Nada escapava desse controle e as sanções sobre os considerados subversivos não tardavam.

Com o povo era muito exortativo e sorridente, mas com o clero era, muitas vezes, rigoroso e sem misericórdia. Não tolerava quem apoiasse a pós-modernidade, os movimentos e lutas dos empobrecidos porque, segundo ele, isso era comunismo e não evangelho. Era inimigo dos clérigos que enfrentavam os poderosos, principalmente se estes fossem católicos de missa dominical, amigos dos padres e dos bispos. Neste sentido, se parecia muito com um de seus predecessores, o papa Pio XII, que se comportava como um autêntico monarca: culto, prudente e firme no zelo pela Casa do Senhor.

            Quais as marcas do projeto de Igreja de João Paulo II? Este era homem marcado pelas perseguições do comunismo à Igreja da Polônia. No exercício do poder papal se uniu as forças contrárias ao comunismo, nos anos pós-guerra fria até a queda do comunismo na segunda metade do séc. XX. Isto explica a amizade do papa João Paulo II com muitos presidentes dos EUA.

Quanto ao Vaticano II, o papa polonês fez uma leitura seletiva dos textos, aproveitando-se principalmente daqueles fragmentos pastorais e doutrinários que legitimavam a existência e a permanência de uma Igreja voltada para si mesma, preservando seus interesses e privilégios. Neste sentido, os teólogos mais abertos ao diálogo com o mundo pós-moderno enxergam no seu pontificado um obstáculo aos avanços propostos pelo Concílio.

Não se trata de moderação, mas de freio. Em nome da prudência e da ortodoxia, muitas ações foram feitas que conduziram a Igreja ao estado de doente agonizante. Sobre esta situação, vale a leitura da lúcida e oportuna análise do renomado teólogo e filósofo suíço Hans Küng, explicitada com precisão e riqueza de detalhes em seu livro A Igreja tem salvação?, editado pela Paulus, em 2012. Trata-se de um livro que precisa ser lido e relido por quem leva a sério a situação da Igreja no mundo.   

            O projeto de Igreja de João Paulo II é, em grande medida, oposto ao que o Vaticano II propôs em seus documentos fundamentais acima mencionados. Um leitor atento não vai encontrar dificuldade ao fazer uma leitura do pontificado do papa João Paulo II à luz destes documentos. A incompatibilidade é visível.  

O papa polonês procurou colocar em prática sua visão de Igreja a partir do poder de que dispunha como autoridade civil (Chefe de Estado) e autoridade religiosa (Sumo Pontífice). Foi eleito bem jovem e teve tempo para realizar suas ideias, apesar da resistência de muitos. Contou com a valiosa colaboração de seu sucessor, o então cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, um dos maiores teólogos da Igreja, homem de sua inteira confiança.

Contando com este valioso apoio, reforçou o poder da Cúria sobre as Igrejas locais em todo o mundo e nomeou novos bispos que comungavam necessariamente com sua visão de Igreja. Junto ao povo, além das viagens, canonizou centenas de santos e santas, especialmente aqueles que provocavam nos fieis as mais variadas formas de devoção popular.

Soube semear a devoção à Maria, cultivando e ensinando a devoção ao rosário, assim como visitando os santuários marianos em todo o mundo. No que tange à doutrina, enquanto o cardeal J. Ratzinger se ocupava em guardar a ortodoxia, perseguindo e punindo os teólogos considerados subversivos, o papa João Paulo II cuidava em escrever encíclicas e exortações apostólicas, que versam sobre diversos assuntos necessários à vida eclesial. Outra ação fundamental que o auxiliou muito em seu pontificado foi seu apoio legitimador aos movimentos eclesiais ultraconservadores que reforçavam sua visão de Igreja e projetavam sua imagem no mundo.

            As ações do papa polonês foram tão eficazes no que tange à conquista de popularidade, que não aceitava quem pudesse ofuscar sua imagem perante o mundo. Bispos e padres que ganharam certa notoriedade nas lutas pela libertação integral do ser humano foram chamados a se explicar e a procurarem “seu devido lugar”. No Brasil, o caso mais famoso foi o do arcebispo Dom Helder Câmara.

Por causa de suas viagens pelo mundo, através das quais denunciava os abusos da ditadura militar no Brasil, o bispo profeta cearense foi censurado pelo papa João Paulo II. Este solicitou que aquele cuidasse dos assuntos de sua Igreja particular, como se o anúncio do evangelho através das viagens missionárias fosse ação somente pontifícia. Seria exagero se a isso chamássemos de inveja, por parte do papa polonês?...

O fato é que este não gostava de ser afrontado. Ninguém ousava fazê-lo, e quem o fez sendo clérigo, experimentou o peso do báculo pontifício! Na “correção” aos considerados subversivos, a Cúria e o papa não meditavam o evangelho, mas aplicavam impiedosamente a lei, e quando esta não cabia, recorriam ao argumento de autoridade. O pontificado do papa João Paulo II não conheceu a prática da colegialidade episcopal. Tudo aconteceu de forma vertical, de cima para baixo. As ordens e orientações oriundas de Roma deveriam ser devidamente colocadas em prática, sem questionamentos de qualquer ordem. 

            Por fim, é preciso considerar outras três questões do pontificado do papa polonês que explicitam sua personalidade e sua visão de Igreja: sua frágil posição em relação aos abusos sexuais cometidos por clérigos; a estranha canonização do fundador da Opus Dei, o espanhol José Maria Escrivá de Balaguer; e seu apoio e amizade a algumas figuras políticas explicitamente corruptas, como o então ditador do Chile, Augusto Pinochet.  

A canonização de J. M. Escrivá de Balaguer merece um texto à parte. No momento, basta dizer que santo ele não era. Em 1987, em visita ao Chile, o papa João Paulo II, após reunião fechada com o ditador chileno, saiu para, juntamente com este, cumprimentar a multidão, assim como fizeram a maioria dos bispos da Igreja em todas as ditaduras militares ocorridas na América Latina, no séc. XX.

Infelizmente, o papa João Paulo II não aceitava que os bispos enfrentasse autoridade civil alguma, pois em seu projeto de Igreja deveria haver sempre diálogo e boas relações entre ambos. Portanto, os bispos opositores do sistema opressor das ditaduras não eram bem vistos em Roma e o papa não perdia nenhuma ocasião para censurá-los. Um dos casos mais famosos foi o do mártir Dom Oscar Romero. O papa o censurou porque o mesmo estava denunciando os abusos e crimes cometidos pela ditadora salvadorenha. Na visão do pontífice, o arcebispo deveria se calar e abandonar o povo à própria sorte.

No que se refere aos abusos sexuais cometidos por membros do clero, além de não ter tomado as devidas providências, João Paulo II se recusou a apurar inúmeros casos, pois o cardeal J. Ratzinger, que o mantinha informado sobre praticamente tudo na Igreja, o informou que sua prefeitura tinha recebido denúncias sobre tais abusos. Somente no pontificado do papa Bento XVI, que conhecia profundamente o problema é que, por sua própria determinação, se iniciou certa política interna de repúdio a tais abusos.

Um dos casos mais famosos que prova a omissão do papa polonês se refere ao do fundador da poderosa congregação dos Legionários de Cristo, o mexicano Pe. Marcial Maciel, que abusava de menores, principalmente de seminaristas nos seminários de sua congregação, além de ter uma mulher, três filhos e muitas amantes. Sua congregação acumula uma fortuna que se estima entre 25 e 50 bilhões de dólares. Estes fatos sempre foram conhecidos no México, mas em Roma o papa preferiu ignorar, como se nada estivesse acontecendo. Recentemente, o papa Francisco resolveu intervir e mandou apurar estas e outras irregularidades na congregação dos Legionários de Cristo.

A modo de conclusão

            Será que alguém já teve a coragem de perguntar ao papa Francisco o motivo que o levou a canonizar estes dois papas no mesmo dia? Se pudesse, eu faria questão de saber da resposta do papa. Nosso texto, breve e sucinto, deve ter convencido o leitor de que somente Deus é, de fato, santo. Todo cristão é chamado a ser santo, mas isto não significa que está sendo chamado a ser perfeito. Em certa ocasião o papa Francisco afirmou que todos somos pecadores, inclusive o papa. Este é um ser humano como qualquer outro. Revestido de poder simbólico, o papa é chamado a ser testemunha da ressurreição de Jesus.  

Assim, cai por terra a ideia de representatividade de Cristo, ou seja, o papa não é um representante de Cristo na terra, nem é a ponte que liga o mundo a Deus. Esta imagem era válida nos tempos medievais, mesmo não sendo biblicamente legítima. Jesus não nomeou nenhum representante, nem carece de intermediários para se fazer presente na vida de seus seguidores. Hoje somos chamados a enxergar o papa como um homem vocacionado à santidade como todos os demais cristãos.

 Assim, se pudesse me encontrar com o papa Francisco, falaria com franqueza: meu irmão, obrigado pelo teu testemunho! Tu estás fazendo um grande bem à Igreja; por isso, desejo que perseveres no caminho que abraçaste. De fato os papas João XXIII e João Paulo II foram grandes homens que se esforçaram para serem fieis a Jesus, mas discordo quanto à canonização do papa João Paulo II.

Neste sentido, faço minhas as palavras do grande cardeal Carlo Maria Martini, falecido em agosto de 2012, referindo-se ao papa João Paulo II: “Era um homem de Deus, mas não é necessário fazê-lo santo”. Isto nos remete à necessidade de a Igreja rever os critérios de canonização dos santos. Apesar de tudo, permanece válido por todo o sempre o chamado do Senhor à santidade, chamado universal que exige uma resposta pessoal, madura, paciente, constante e perseverante. Somente Deus, em sua infinita misericórdia e com o auxílio da sua graça, é capaz de nos fazer santos em seu amor. Nossa resposta ao seu chamado necessita deste auxílio, manifestado por meio do seu Espírito, que nos assiste em nossas fraquezas. É este mesmo Espírito que faz surgir no mundo as testemunhas da ressurreição de Jesus, agindo no silêncio e na discrição, na vida dos pequenos e pobres, nos quais se manifestam as maravilhas de Deus.


Tiago de França 
Desde Belo Horizonte - MG, 26/04/14.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Almas tíbias e sofrimento

“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles. Os discípulos, porém, estavam como que cegos e não o reconheceram” (Lc 24, 15 – 16).

            O espírito humano sofre com o mal da tibieza. O que é um espírito tíbio? Há pessoas propensas a cair e permanecer no chão. A queda é uma realidade da condição humana, essencialmente, limitada. É inevitável e também necessária. Caindo, a pessoa é chamada a refletir sobre o significado da queda, pois ninguém cai à toa. Inúmeros são os fatores que nos derrubam e nos machucam. A pessoa que não reflete sobre suas quedas nunca aprende com elas e passa toda a vida sofrendo, sobrevivendo a um lamaçal que tende a sufocá-la terrivelmente. A vida se transforma em um inferno.

            Na vida dos seres humanos, a dor é objetiva e o sofrimento é subjetivo. Na queda sentimos a dor e a aflição. Após a queda as pessoas escolhem se querem ou não sofrer. Há uma tendência masoquista em muitas pessoas porque escolhem sofrer e prolongam o sofrimento. Reclamam excessivamente da opção feita e demonstram interesse em continuar sofrendo. Há certa insistência em continuar no chão. Há até as que se acostumam ao sofrimento e este se transforma em certa forma de prazer. Isto não é martírio nem caminho de liberdade, mas alienação da mente e escravidão. A pessoa não quer ser livre, mas submissa e, portanto, doente.

            Almas tíbias são aquelas pessoas que se recusam à liberdade e, consequentemente, submetem-se à opressão. Por trás da opressão que gera o sofrimento na mente das pessoas está o apego. Toda forma de apego gera sofrimento. O apego não consegue oferecer outra coisa senão sofrimento. Portanto, as pessoas sofrem nas mãos de seus apegos. Não ressuscitam, mas são cadáveres ambulantes, que precisam ser ressuscitados. Eis alguns exemplos para compreendermos melhor.

            Um jovem se interessa pelos jogos eletrônicos. Estes o tornam um homem obsessivo, impedindo-o de viver livremente. Ele não pensa em outra coisa: não dorme bem, não se concentra na alimentação ingerida, não consegue namorar direito, não tem tempo para conversar com os pais e com os amigos, nem para passear e respirar o ar puro e fresco de um bosque. Está totalmente dominado pelo vício do jogo. Ele pensa consigo mesmo que é feliz, mas, na verdade, todos sabem que encerrado em uma determinada atividade e nela tão somente absorvido, o homem caminha para a morte. Geralmente, as pessoas inventam conceitos de felicidade para justificar seus apegos e se iludem, pensando que são felizes. Na verdade, o que ocorre é alienação e prisão.

            Um casal jovem, após poucos anos juntos, resolve separar-se: não deram conta da relação matrimonial. O suposto amor não deu conta de ajudá-los a superar as dificuldades, ou o casal não soube lidar com elas. Separam-se, mas vivem inquietos, um na mente do outro. Amarrados às lembranças e tomados pelos impulsos de raiva que ocasionaram os conflitos, cultivam na mente e no corpo o sofrimento. Não existe amor, mas apego que, por sua vez, gera sofrimento. O apego é tão forte que tira as forças, domina e controla a vontade: a pessoa não faz o que quer, mas o que o apego determina. A maioria dos casais chama isso de amor, mas, na verdade, é apego. No fundo, um diz para o outro: “Eu amo meu/minha companheiro/a porque ele/ela faz tudo para me agradar”. O apego se serve justamente disso: que as pessoas fiquem presas a este esforço estressante de sempre agradar, de fazer o que o outro deseja. O apego procura satisfação. Esta gera pequenos lampejos de prazer momentâneos, que chamam de felicidade, mas, na verdade, é pura manifestação do egoísmo.

            Um homem consegue ser bem sucedido em seus empreendimentos e se transforma em um grande empresário. Submetido ao sistema capitalista, vive em função da produção e do lucro. A partir daí perdeu toda paz interior e leva uma vida desassossegada. Se não aderir ao espírito de competição e às possíveis atividades ilícitas que os sustentam no mercado, então está fadado ao fracasso. Este lhe causa medo e perturbação. O que fazer para não fracassar? Seguir à risca as ordens do sistema. Em pouco tempo, o empresário se transforma em um doente crônico: passa a sofrer de toda espécie de doença, sendo a depressão a mais comum de todas. Apegado ao sucesso, ao lucro e ao dinheiro, transforma-se em um materialista doente: não pensa em outra coisa a não ser no próprio patrimônio. Vai dormir e acorda pensando nas próprias riquezas e o medo de perdê-las não o abandona.

O sistema capitalista o convence de que é um homem feliz, pois infeliz é aquele que fracassou, que não conseguiu ser bem sucedido. Pura ilusão! Geralmente, as pessoas se fecham à verdade e preferem sofrer com a ilusão e com a mentira. Parece ser o caminho mais fácil, mas, na verdade, é o pior, é o que as destrói impiedosamente, assassinando-as aos poucos.  

            Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Se você, caro leitor, é capitalista e não entende a lógica do Evangelho de Jesus, a esta altura já deve está tentando se justificar. Cuidado! A realidade é dura e a ilusão não consegue abafá-la por muito tempo. A tibieza consiste nisso: não aceitar a verdade que está na realidade da vida e enforcar-se na ilusão e na mentira. Quer ter paz? Então se liberte da ilusão e da mentira! A verdadeira paz e a verdadeira alegria se encontram na verdade que se manifesta na realidade. Por que o mundo tende a piorar? Porque a maioria das pessoas aceita a mentira e dela procuram tirar proveito. Por que as pessoas não se convertem? Porque não escutam a palavra de Jesus que diz: “Levanta-te e anda!” Preferem permanecer cegas, à beira do caminho.

            Levantar-se é uma atitude, não uma ideia. É um querer capaz de transformar definitivamente a vida. Quando a pessoa se convence de que precisa permanecer de pé, a vida muda de rumo. A pessoa passa a entender que tudo é transitório, nada permanece. O homem é um ser no mundo, que apareceu e que um dia vai desaparecer. Assim, apegar-se a própria vida gera sofrimento, pois a pessoa recebeu a vida, deve cuidar dela e depois a perderá para continuar vivendo eternamente. Esta é a dinâmica do Evangelho. Por isso que Jesus não ficou desesperado diante do suplício da cruz, pois era um homem livre, desapegado, disposto a dar a própria vida pela salvação de toda a humanidade. Seus algozes pensavam que ele estava sofrendo, mas, na verdade, só sentia as dores no corpo. Agindo assim, ganhou a vida plena, venceu a morte, foi vitorioso e se tornou, na vida do crente, a fonte inesgotável da vida, da liberdade e da alegria.

Tiago de França

sábado, 12 de abril de 2014

A paixão de Deus

“Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2, 6 – 7).

            Muito se pode dizer a respeito do relato da paixão de Jesus, o Messias, descrito no evangelho. Cada evangelista narra em uma perspectiva diferente, mas todos são unânimes em demonstrar o amor infinito de Deus pela humanidade. Não é mero sacrifício expiatório, nem mero cumprimento das Escrituras, mas paixão de Deus na história humana. Quer aceitemos, quer não, após a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré a história ganhou um novo significado. Para ateus e curiosos, a história do mundo gira em torno do antes e depois de Cristo. Para os cristãos, não há somente uma demarcação temporal, mas há um encontro extraordinário e transformador de Deus com a humanidade.

O que aconteceu com Jesus, o Messias?

            O Messias Jesus frustrou as expectativas de muita gente importante. Ele não se enquadrou no conjunto de qualidades que a tradição ensinava a respeito do Messias que esperavam. As pessoas esperavam um homem cheio de poder e glória, amigo dos poderosos e restaurador das tradições, mas apareceu um pobre coitado, nascido em Nazaré da Galiléia, que comia e frequentava a casa das pessoas de má fama, os pecadores públicos. Conhecido como transgressor da lei, não satisfazia os desejos das pessoas, mas torando-se amigo dos pobres manifestava a misericórdia de um Deus que se identifica com os fracos, indefesos e oprimidos.

            Não sendo conivente com a exploração dos pobres, consequentemente, foi perseguido por aqueles que se aproveitavam da inocência e da ignorância dos marginalizados. Para os pobres, era um profeta de Deus a ser escutado. Para os poderosos ligados ao império romano, era uma ameaça a ser eliminada. Jesus foi escutando gradativamente a voz do Pai que o enviou e foi tomando consciência dos riscos de sua missão. Proclamou com todas as palavras e sem medo a Boa Notícia do Reino de Deus e, assim, inaugurou um novo caminho para a humanidade encontrar-se consigo mesma no encontro com Deus. Jesus apontou para Deus, conduziu para o Pai, revelou o caminho que conduz à vida e à liberdade.

            Executado como um malfeitor, participou solenemente da sorte dos injustiçados do seu tempo. O Messias crucificado: um escândalo para os judeus! Algo que eles não tinham condições de compreender. Na cruz, Jesus continua escandalizando. No mais profundo do ser de muitos dos que confessam a fé nele, sua imagem de crucificado continua incomodando, e o motivo é simples: as pessoas desejam a glória e o poder, almejam um Deus que possa satisfazer suas necessidades. Um Deus crucificado é impotente, incapaz de satisfazer as necessidades das pessoas. Estas possuem uma visão utilitarista de Deus. Este tem que servir para a satisfação daquilo que elas não conseguem resolver sozinhas e com seus meios. Existe este Deus utilitarista? Na verdade, não passa de um ídolo, uma criação da fantasia das pessoas.

Crer no crucificado-ressuscitado

            Certo dia, quando estava com seus discípulos, perguntou Jesus: “O Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar fé sobre a terra?” (Lc 18, 8). Esta pergunta nos leva a pensar nas consequências da fé em Jesus. Ter fé em Jesus é seguir seus passos, participar de sua vida e de sua sorte, é colocar-se em seu caminho e perseverar. Aqui enxergamos os riscos da fé. Esta não é mera declaração cultual. No culto se celebra, mas somente na vida é que a fé é provada. O culto perde seu sentido e conteúdo quando a fé não é experimentada na vida cotidiana. Vamos ilustrar com um exemplo belíssimo da história da Igreja no Brasil.

            Nascido em Fortaleza – CE, em setembro de 1945, o frei Tito de Alencar Lima (dominicano) se tornou ícone da luta pelos direitos humanos. Foi vítima da terrível ditadura militar no Brasil: perseguido, preso e torturado, em São Paulo. Era militante com outros frades e estudantes universitários. Acreditava em outro mundo possível, pautado na justiça e na solidariedade para com as vítimas. Professava a fé em Jesus crucificado na vida daqueles que clamavam por justiça, por uma democracia autêntica. Frei Tito acreditava no evangelho da vida e da liberdade e sua fé era reflexo desse evangelho. As torturas deixaram marcas profundas em sua mente, perturbando-o horrivelmente. Traumatizado pela tortura, submeteu-se a um tratamento psiquiátrico. Não conseguiu superar o terrível trauma, suicidou-se próximo a Lyon, França, onde se encontrava, em setembro de 1974.

            Frei Tito não renunciou à fé em Jesus, mas viveu-a plenamente até as últimas consequências. Poderia ter optado pelo conforto da vida conventual, recusando-se a participar das lutas pela justiça, mas optou por seguir radicalmente a Jesus de Nazaré e encontrou-se no patíbulo da cruz. Participou da morte de Cristo professando com a vida as promessas do batismo. Frei Tito experimentou na carne as dores oriundas do flagelo, da humilhação, da perseguição, da incompreensão, das ameaças, da crueldade e da força bruta de um sistema opressor que devorava friamente a vida das pessoas que lutavam por um mundo mais justo e fraterno. Foi crucificado com Cristo para ser ressuscitado com ele. Foi digno de lavar suas vestes no sangue do Cordeiro.

            Acreditar no crucificado-ressuscitado, Jesus de Nazaré, é viver na própria carne sua paixão e ressurreição. A carne de Cristo continua exposta no corpo das vítimas das injustiças que se cometem no mundo. Temos duas alternativas com suas respectivas consequências: ou optarmos por participar da morte de Cristo para sermos com ele ressuscitados, ou optarmos em fazer o papel dos torturadores. Nossas palavras e gestos revelam nosso lugar. Também nossa omissão revela nossa oposição a Jesus. A paixão de Jesus é a paixão de Deus pela humanidade, e nosso medo, omissão e indiferença nos excluem desta paixão divina. Esta é capaz de transformar radicalmente a nossa vida, é a nossa salvação.

            Para os cristãos católicos a Semana Santa é ocasião de meditação e celebração da paixão e ressurreição de Jesus. É verdade que muita gente não vai meditar nem celebrar absolutamente nada, pois vai aproveitar para descansar, viajar, ir à praia, comer, beber etc. Será apenas mais um feriado! No mundo pós-moderno, falar de paixão e ressurreição de Jesus é incômodo, é perda de tempo, é algo a ser evitado. Cada um é livre para fazer suas escolhas, assim como deve acatar com a mesma liberdade suas consequências. O essencial não pode ser esquecido nem marginalizado: muito além da celebração ritual da paixão e ressurreição de Jesus, é necessário permanecer unido a ele na vida e na morte e, assim, com ele experimentar uma vida plenamente nova e eterna.


Tiago de França

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O carreirismo jurídico e a justiça social

           
            Todas as profissões sofrem com o mal do carreirismo e as funções desempenhadas por aqueles que operam o Direito não estão excluídas disso. Nossa reflexão tem a seguinte justificativa: pessoas procuram o Direito, geralmente, ou para exercerem a profissão de advogado, ou para atuarem no Judiciário, sendo defensores públicos, promotores, juízes etc. O problema não está na procura, mas nas motivações de muitos: ganhar grandes salários e gozar do prestígio que as profissões asseguram, assim como de seus privilégios. Para isto, basta identificar-se com a técnica jurídica (saber fazer) e ser aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (quem deseja advogar), ou ser aprovado no concurso público em função do exercício da função pública e de sua respectiva estabilidade.

            E a justiça? Para muitos, a justiça não é um problema do Direito. O compromisso deste se volta para a validade das normas e o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico (conjunto de normas). O bom operador do Direito é aquele que sabe interpretar a norma, aplicando-a ao caso concreto. Esta é a lição fundamental e todo o Direito se encerra nisto. Portanto, para ocupar os postos no Judiciário e/ou ser um bom advogado, basta saber interpretar e aplicar a norma. Resumidamente, tudo o que se fala a respeito do Direito converge para esta lição fundamental. Não há nada além disso, considerando a prática jurídica tradicional: o legislador cria a norma e os operadores do Direito aplicam-nas ao caso concreto.

            Logo se percebe que não precisa pensar muito para compreender este cálculo sistemático-jurídico. Portanto, ser operador do Direito não é sinônimo de grande inteligência, mas de capacidade para dominar a sistemática jurídica. Os professores costumam afirmar que os erros oriundos da interpretação e da aplicação do Direito por parte de seus operadores justificam-se nisto: no fato de que há, na verdade, inúmeros operadores do Direito que além de se recusarem a pensar a respeito do mesmo, também não conseguem dar conta do mínimo entendimento dos rituais que envolvem as solenidades dos atos processuais jurídicos.  

Resumidamente, os operadores do Direito, uma boa parcela deles, só estudaram para os exames que asseguraram seus postos, mas, na verdade, entendem muito pouco da sistemática jurídica porque, vergonhosamente, estudaram tendo somente em vista os exames que iriam fazer. Para comprovar essa triste realidade, basta ler algumas decisões emitidas por muitos juízes em qualquer uma das instâncias do Judiciário. As aberrações são muitas e as punições pela prática das mesmas são quase inexistentes.

            Qual o problema fundamental que se encontra implícito nesta situação? O problema da preocupação com a lei em detrimento da pessoa. Renunciando à análise minuciosa das divergências e convergências da doutrina jurídica em torno da questão, tarefa a ser realizada em outro espaço e momento, podemos, sucintamente, dizer que na mente de inúmeros operadores do Direito não se encontra o desafio da dignidade da pessoa humana. Esta é citada pela norma, mas na prática as pessoas são violentadas pelo Judiciário quando não tem seus direitos assegurados e promovidos. Trata-se de uma violência institucionalizada e legalizada. As pessoas são violentadas e não tem a quem recorrer.

            O carreirista procura ser um operador do Direito preocupado consigo mesmo, com seu prestígio e bem-estar. Para conseguir isto, além de gozar dos privilégios da função, ainda se aproveita das circunstâncias para a prática da corrupção. Utiliza-se do poder que lhe foi conferido para favorecer a uns em detrimento de outros. Esta prática de corrupção pode ser entendida na seguinte sentença: favorecer o forte em detrimento do fraco, favorecer o opressor em detrimento do oprimido. O princípio da imparcialidade é costumeira e absurdamente violado. Julga-se o outro segundo as próprias conveniências e/ou preferências, buscando-se na lei a legitimação necessária.

            Para ilustrar, voltemo-nos para o cenário jurídico nacional e citemos apenas um exemplo: a politização do Judiciário. Não há como separar a política do Judiciário, mas se deve separar a política partidária das decisões judiciais. O que isto significa? Significa que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, na pessoa de alguns de seus membros, comete o vergonhoso e absurdo de julgar conforme orientações político-partidárias.

Todo julgamento jurídico é político. Todo julgamento é oriundo de uma escolha. O juiz escolhe o critério que vai utilizar para absolver ou condenar o réu. Não estamos falando contra isso. Estamos falamos da política das preferências pessoais no ato de julgar, em detrimento daquilo que se deveria buscar: a justiça pautada na dignidade da pessoa humana. Não precisa entender das normas materiais e processuais para reconhecer a politização do Judiciário no Brasil.

Esta também é a marca dos carreiristas: a falta de compromisso com a justiça em nome de uma pseudojustiça. Utilizam-se todos os argumentos possíveis numa linguagem rigorosamente elaborada, própria do mundo jurídico e feita para os leigos aplaudirem sem nenhuma forma de entendimento, em função da teatralização solene dos atos processuais tão bem explorados pela mídia, que tende a reforçar cada vez mais as decisões oriundas de operadores atrelados à mentalidade doentia que assegura o controle permanente dos poderosos sobre os fracos. Neste sentido, fica clara uma das piores consequências desta vergonhosa atuação do Judiciário: reforçar as desigualdades entre ricos e pobres, que causam tantas injustiças na sociedade.

Quando olhamos a atual situação do Judiciário no Brasil e nos voltamos para as aspirações de inúmeros estudantes dos cursos de Direito, o futuro se torna cada vez mais sombrio. É incontável o número dos que desejam somente reforçar a fileira dos que se aproveitam do Judiciário para beneficiarem-se, para exercerem de forma mesquinha e vergonhosa as funções públicas. Infelizmente, a maioria dos que compõem o povo brasileiro não consegue compreender tal situação nos seus mínimos detalhes.

De uma coisa a sabedoria popular entende: a justiça brasileira é morosa e só funciona quando se volta contra os pobres, os desvalidos da sociedade, que deveriam ser assistidos em seus clamores, salvo raras exceções; afinal de contas, os operadores do Direito no Judiciário são funcionários públicos (funcionários da coisa pública, do que é do povo). Promover a justiça deveria ser a preocupação de todos para o bem de todos. Isto significa renunciar ao carreirismo e contribuir com o desenvolvimento integral das pessoas e, consequentemente, do país.


Tiago de França

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Nossos demônios interiores

           
           Após a era das perseguições aos cristãos na Igreja dos primeiros séculos, houve certo relaxamento no seguimento de Jesus. Líderes da Igreja resolveram se aproveitar da oportunidade que surgiu: o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano. Muitos cristãos, convictos de que tal oportunidade era caminho que não levava a Jesus, resolveram “abandonar o mundo” e foram viver no deserto. Um dos mais famosos e considerado pai do monarquismo antigo foi santo Antão. O deserto foi povoado por inúmeros monges, que passaram a fazer a experiência da solidão; não a solidão segundo o entendimento moderno do termo, mas a solidão monástica, que se traduz na experiência de viver na intimidade com Deus.

            Estes Padres do deserto, como são chamados pela patrística, ensinaram a importância da atenção a si mesmo. Costumamos prestar atenção a tudo e a todos que se encontram a nossa volta. Chama-nos a atenção as coisas, as pessoas e os acontecimentos do mundo. Geralmente, estamos voltados para fora. A espiritualidade vivida pelos monges do deserto é delineada pelo olhar que se volta para si mesmo como caminho para o autoconhecimento e, consequentemente, para a liberdade. Este olhar não nega a realidade exterior, mas busca conhecer a realidade interior, o que somos no mais profundo de nós mesmos.

            Em nosso inconsciente podemos encontrar as forças que tendem a nos controlar e, portanto, revelam nosso modo de ser. Muitas destas forças são diabólicas, no sentido de que tendem a nos dividir e nos destruir. São forças que podem atrapalhar nossa vida, pois nos puxam para a baixeza de nossos instintos. A ideia de inconsciente é moderna, mas na Bíblia, é substituída pelo coração. Jesus fala que tudo o que é ruim não vem de fora da pessoa, mas sai de dentro dela, de seu coração. Portanto, não precisamos do diabo, enquanto espírito exterior a nós, para nos induzir ao mal, pois temos em nós forças negativas que fazem este papel. São nossos demônios interiores.

            No mundo atual, marcado pela dispersão, as pessoas costumam não prestar atenção a si mesmas. Por isso, facilmente se deixam levar pelas forças negativas que brotam violentamente de seu interior, tornando-as doentes. A inveja, a cobiça, o ódio e todas as paixões desordenadas estão escondidas no interior do ser humano. Os sentidos da visão, tato, paladar, olfato e audição são as janelas por onde entram os estímulos que despertam do sono os demônios interiores, as forças negativas que dentro da pessoa se parece com um vulcão adormecido. Quando não há autoconhecimento a respeito de como tais forças negativas agem, quando estimuladas, as pessoas se descontrolam e se transformam em demônios encarnados, capazes de atos violentos terríveis e assustadores.

            Não há nenhum excesso neste olhar. Observemos o mundo com suas diversas formas de violência. Não se trata de nenhuma entidade espiritual controlando as pessoas, mas o que existe é um número incontável de pessoas descontroladas e, portanto, doentes, incapazes de conter seus impulsos, suas forças negativas. Os desejos incontroláveis que tais forças geram levam o ser humano à eliminação do outro, pois este se transforma em adversário a ser combatido e destruído. Dominados pelo espírito de competição, as pessoas consideradas fracas são eliminadas. A lógica do mundo é clara: não há lugar para elas.

            “Desejo a todas inimigas vida longa, pra que elas vejam cada dia mais nossa vitória. Bateu de frente é só tiro, porrada e bomba...”, é o que diz a música “Beijinho no ombro”, da Valesca Popozuda. Por que esta música faz sucesso no momento? Porque as pessoas vivem na lógica da competição e o que tem a oferecer reciprocamente é tiro, porrada e bomba. Este é o desejo para os inimigos. Quem são os inimigos? Na verdade, o inimigo não existe na realidade, mas está no interior das pessoas. A música faz sucesso e é aderida por aquelas pessoas que pautam sua vida na lógica relacional do eu versus inimigo. Tais pessoas só vencem na vida se outras forem destruídas.

            O que fazer diante de tal situação? Se não quisermos nos transformar em demônios encarnados que visam destruir a si mesmos e ao mundo, podemos seguir as orientações dos Padres do deserto: entrar na própria cela, mergulhar no mais profundo de si mesmo e lá permanecer. Permanecer em si mesmo é uma virtude. Esta virtude conduz a pessoa ao encontro consigo mesma e com Deus, aprende a conviver com os próprios demônios e a se tornar cada vez mais humana, mansa e humilde de coração. Para os que professam a fé em Jesus, ele é o caminho para a paz interior e exterior. Ele nos ensina a oração, o jejum e a caridade como recursos necessários que nos ajudam a lidar com nossos demônios interiores.

            A oração nos recorda que Deus é nossa força. Com suas próprias forças, ninguém chega a lugar nenhum. No caminho da vida podemos contar com o auxílio divino, que se manifesta através do encontro com o outro. O jejum nos recorda que somos humanos, frágeis, expostos às fraquezas. O verdadeiro jejum nos convence da fraternidade, realidade essencialmente marcada pela relação com o outro, na liberdade e na abertura. A caridade nos liberta da tentação do fechamento de nós mesmos e nos torna pessoas abertas e disponíveis para o serviço fraterno, para a diaconia. A caridade é a palavra e o gesto direcionados para o outro, realizados ao modo de Jesus.

            Por fim, é preciso afirmar que somente o amor consegue nos libertar do domínio de nossos demônios interiores. Amar como Jesus amou: eis a maneira perfeita de amar. Aprender com Jesus para sermos verdadeiramente livres. Isto não extingue nossas forças negativas, mas não permite que nos dominem. Elas nos acompanharão por toda a vida, assim como pode nos acompanhar o amor de Deus em Cristo Jesus e na força do Espírito. Neste amor e somente nele podemos viver com total segurança, com a segurança que nos mantêm firmes e perseverantes, sem medo nem fugas, de pé diante da vida, peregrinos no caminho de Jesus, estreito e pedregoso.


Tiago de França