sábado, 27 de fevereiro de 2016

A fecundidade espiritual

       
          Em nós, Deus é semelhante a uma criança graciosa, que nos conquista com seu sorriso. Um sorriso doce, de uma alegria profundamente verdadeira. Sorriso que vem acompanhado de um olhar conquistador, suave, sereno, leve, que diz:

- Vem, não precisas ter medo. Levanta-te da tua fraqueza. Segura na minha mão. Confia. Vem, companheiro, vamos à Ceia. Alimenta-te. Repousa na suavidade da minha força. Recebe-a. Olha as águas, elas se agitam. São águas, somente isso. Não matam, só amedrontam. Repousa teu coração junto ao meu. Vem... (dos colóquios espirituais, arquivo pessoal).

            Deus está lá no mais profundo de nós. Ele deseja cuidar de cada um de nós, alimentando-nos com a sua palavra. A sua palavra é fonte de toda força, de um consolo extraordinário. Seu coração é generoso e fala ao nosso coração. Ele vibra em nossas entranhas, nos preenche, fazendo-nos renascer. Com Ele, o deserto é fértil. Tudo se recria, se renova. Unidos a Ele estamos seguros, aquecidos e protegidos. Estamos na luz.

            Ele nos eleva, fazendo-nos conhecer a nossa verdadeira dignidade, a de filhos escolhidos e amados. Ele nos escolhe para o amor. Quando nos tornamos íntimos dele, tudo ganha cor, perfume, luz, orientação, sentido. Nele, os pingos da chuva, o calor do sol, o frio do chão, o verde das folhas, toda a natureza, nos faz integrados no amor. Os desenrolar dos fatos e a evolução da história, suas idas e vindas, altos e baixos, tudo é graça, nada se instaura no acaso. Ele está em todas as coisas.

            Separados dele, somos como figueiras infrutíferas, secas. A secura da falta de vida, falta de amor. A falta de amor é a pior de todas as ausências, de todas as secas, é o deserto sem o olhar divino, sem o cuidado dos anjos. É a morte interior. Homens e mulheres cadáveres são os que já faleceram interiormente. A estes, a misericórdia divina aparece como uma chuva fina e duradoura, insistindo em fecundar o chão, na firme esperança de que as raízes da figueira consigam beber da força da ressurreição.

            Apegados às vaidades das vaidades, na busca da satisfação dos prazeres desenfreados, nos apegos aos bens que clamam pelo consumo, tomados pelo ódio e por tantos sentimentos que destroem e conduzem à morte... assim, muitos de nossos irmãos seguem agonizando... São como Caim após ter matado seu irmão Abel: Vivem errantes no meio do mundo, perseguidos pelo desassossego, por uma inquietação interior, pelo vazio existencial... Caso não encontrem o Deus da vida no percurso da existência na carne, morrerão sem ter conhecido a vida que pensaram ter vivido...

            Apesar disso, Deus, Pai de misericórdia, é incansável no chamado: Ele não se cansa de nos chamar e de nos amar. Ele nos criou para vivermos eternamente unidos a Ele no amor. Quando nos alcança, conquista-nos para sempre. Quando o seu amor permanece em nós, a nossa vida se transforma na Sua vida. E os sinais da Sua presença em nós é evidente: “Vejam como ele se amam!”, dirão os que enxergam Deus em nós. Quem se deixa encontrar-se por Deus conhece a verdadeira felicidade: A felicidade de um amor que não deixa faltar absolutamente nada. É pura graça, verdadeira alegria e paz. Graça, alegria e paz que permanecem para toda a vida e nos fazem mergulhar, desde já, no mistério da vida eterna.


Tiago de França

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Transfigurados em Cristo Jesus

“Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” (Lc 9, 35).

            Conta-nos o evangelho (cf. Lc 9, 28 – 36), que Jesus levou três dos seus discípulos a uma montanha para rezar. A montanha é o lugar da oração, do encontro com Deus. Subir até Deus para estar a sós com Ele: eis uma necessidade fundamental de todo crente. Quem não subir à montanha não dará conta de sobreviver na planície. A planície é o lugar do movimento, do encontro com as pessoas, onde ocorre os grandes desafios da vida.

            Na montanha, o crente se encontra com Deus para escutá-lo no silêncio do coração. Rezar é escutar Deus falar ao coração. Para isso, Ele precisa de silêncio. É neste silêncio fecundo e profundo que Deus se revela. E Ele se revela, transfigurando-nos. Certamente, não se trata de um fenômeno sensivelmente extraordinário, que poderia nos causar assombro. Não precisamos fantasiar a revelação divina. Ela é humilde, simples e alegre. Ela ocorre quando estamos diante de nossas sombras, mergulhados em nós mesmos. Deus nos espera no mais profundo de nós mesmos, revelando-nos nosso verdadeiro ser.

            Essa revelação de nós mesmos nos torna verdadeiramente humanos. Quando realmente nos conhecemos, perdemos a infeliz capacidade de nos concentrarmos nos defeitos alheios porque descobrimos que também somos pecadores, frágeis e limitados. Desse modo, passamos a compreender melhor o outro. Nosso ambiente de convivência passa a ser mais harmonioso porque cessam os conflitos motivados pela nossa tendência de vivermos olhando os defeitos dos outros. Os pecadores não mais se acusam, mas se acolhem, misericordiosamente.

            Diante de Jesus transfigurado, com o rosto mudado e com as vestes brancas e brilhantes, Pedro, Tiago e João não compreenderam o que estavam vendo. Somente se deram conta de que estavam diante de algo diferente, algo novo, que nunca tinham visto. Devem ter percebido que Jesus tinha algo de diferente e novo. E Pedro, ousado como sempre, quando diante da transfiguração de Jesus, percebendo a presença de Moisés e Elias, representantes da lei e dos profetas antigos, teve uma ideia: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pela expressão de Pedro, o momento parecia confortável.

            Pedro nem terminou de falar e, de repente, apareceu uma voz misteriosa, que saiu de uma nuvem que os cobriu. Esta voz veio completar o sentido da transfiguração. Sem ela, aquilo não passaria de um momento “mágico”, que serviria tão somente para impressionar os discípulos. O conteúdo da voz misteriosa parece ser o centro da transfiguração. Nela aparece um pedido feito em forma de uma ordem, mas, antes disso, uma revelação da identidade de Jesus: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que ele diz!” Jesus é o Filho de Deus, o Escolhido. Esta é a sua verdadeira identidade. E esta não é mera descoberta humana, mas pura revelação divina.

            O Pai pede que escutemos o seu Filho. Escutar o que Jesus diz. E o que ele diz? Sinceramente, olhando para a realidade de nossas Igrejas cristãs, é de se perguntar, com toda verdade, se os cristãos procuram conhecer a palavra de Jesus. O que Jesus fala para mim e para minha comunidade de fé? Esta deveria ser uma pergunta constante na oração pessoal e litúrgica. Geralmente, o que ocorre é que as pessoas prestam culto a Jesus, por meio do louvor e da súplica, mas sem se interessar em conhecer a sua palavra, sem procurar conhecer a sua proposta de vida. Jesus não está desvinculado de sua mensagem. Sem esta, ele não existe.

            Atualmente, uma tendência tem tomado as Igrejas cristãs: investir grandes somas de dinheiro na construção e manutenção de grandes e belíssimos templos religiosos. Objetiva-se oferecer conforto aos fieis, assim como um espaço apropriado para uma profunda experiência de oração pessoal e litúrgica. De fato, os templos podem ser necessários para a reunião da comunidade. Acolher bem também é uma necessidade. Sentir-se acolhido é um bom começo para rezar bem em um templo religioso, mas se somente dedicarmos a nossa atenção para tais construções, o essencial fica esquecido. E o essencial não é termos grandes templos religiosos, que custam milhões e milhões de reais para serem construídos. O essencial não é investir no ouro e na prata, mas buscar a Deus em espírito e verdade.

            É comum encontramos dioceses e paróquias que investem muito dinheiro em templos religiosos: basílicas, santuários, matrizes, capelas etc. Simultaneamente, percebemos um vazio na maneira de se encontrar com Deus. Na verdade, cumprem-se os preceitos litúrgicos e, muitas vezes, consegue-se encher os templos, mas os que estiveram presentes em tais liturgias não buscaram a Deus de coração humilde e contrito, com sinceridade e verdade, numa atitude verdadeiramente orante e de coração aberto para acolher a graça divina em vista da conversão. Ninguém precisa ser um místico para perceber esse mal em muitas liturgias, basta observar com atenção o semblante das pessoas. Elas estão de corpo presente, mas seus corações estão distantes. Honram a Deus com os lábios e não com o coração, como denunciavam os profetas bíblicos.

            Para uma Igreja transfigurada e um mundo transfigurado, precisamos de cristãos transfigurados no Cristo Jesus. Cristãos que sobem a montanha para rezar com Jesus; que aceitam o desafio, auxiliados pela graça divina, de mergulhar nas próprias sombras interiores; que tenham a humildade de aceitarem a si mesmos como verdadeiramente são; que não queiram passar a vida inteira no conforto da tenda, mas que ousam sair de si mesmos na direção do outro; que acreditem num outro mundo possível, arregaçando as mangas e dando a sua parcela de contribuição, que não precisa ser grandiosa nem espetacular (o espetáculo está para a vaidade e não para a caridade!); que acolhem a ternura do Espírito de Deus, que faz arder o coração e é o grande Revelador do caminho de Jesus.

            Numa sociedade marcada pelo consumismo e num Cristianismo marcado pela superficialidade, Jesus nos chama à liberdade no amor. Um cristão transfigurado é alguém que ama, incondicionalmente e sem limites; que promove a dignidade do outro e de toda a criação. Urgentemente, precisamos resgatar a dignidade das pessoas, amando-as. Não há outro caminho. O amor é o verdadeiro caminho da humanização. Através dele vencemos a indiferença e a cultura da exclusão. Quem ama se compromete com o direito, com a justiça e com a verdade. Estes valores são fundamentais para sermos verdadeiramente livres. Somente assim o Reino de Deus vai se tornando realidade no mundo. É o amor que nos transfigura, tornando-nos verdadeiramente humanos, e é no humano que somos divinizados.


Tiago de França

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A força da mensagem de Jesus

         
             
           Qual é a mensagem de Jesus? Para compreendermos a força dessa mensagem, cremos que é importante sabermos de seu conteúdo. O conteúdo é simples, profundo e libertador. Todo cristão sabe que o amor constitui o centro da mensagem de Jesus. Não se trata, porém, do amor anunciado nos dias de hoje. Geralmente, as pessoas não amam. O que elas chamam de amor é, na verdade, apego.

            Qual a diferença entre o amor e o apego? O amor liberta e o apego escraviza. É muito difícil não cair na tentação do apego. Este se impõe de forma violenta, sufocando a pessoa e desumanizando-a. Há vários tipos e níveis de apego. Alguns chegam a ser patológicos. Com muita facilidade as pessoas tendem a se apegar a coisas, lugares, riquezas, ideias, acontecimentos, doutrinas, leis etc. Um dos piores apegos é o apego a si mesmo.

            Quais são as características da pessoa que tem apego a si mesma? Trata-se de uma forma sutil de egoísmo. Não estamos falando do amor que se deve ter a si mesmo, mas de uma forma doentia de autoglorificação. Há um outro nome para este mal: a egolatria. Os ególatras são autossuficientes, ou seja, endeusam-se de uma forma que se bastam a si mesmos. Em suas vidas não há lugar para o amor nem para o outro. A alteridade é algo que desconhecem. O centro de suas vidas é o próprio eu.

            E o amor, por que é tão difícil praticá-lo? Apegar-se é mais fácil do que amar. Entre acolher uma pessoa do jeito que ela é e recusar-se a acolhê-la, esta segunda opção é mais cômoda. Isto porque acolher o outro requer compreensão e esta requer abertura, disponibilidade e sensibilidade. O amor exige um desarmar-se, um pensar no outro, um colocar-se no lugar do outro. Isto é alteridade. Apegada a si mesmas, as pessoas são incapazes disso. Quem vive apegado à própria vida, vive buscando salvar a si mesmo; portanto, não está interessado em salvar a vida do outro. Jesus denunciou esse mal quando viveu e pregou o amor.

            Onde está, então, o centro da dificuldade? Sair de si para encontrar-se com e no outro: eis o desafio da alteridade. Discursivamente, toda pessoa de bom senso sabe da importância deste encontro com o outro, mas, na prática, a tendência é agir de forma egoísta. Aqui está a explicação para o mal da indiferença que assola a humanidade. A “globalização da indiferença” (expressão do papa Francisco) tem tomado o mundo, e é algo tão forte que se transformou numa cultura; cultura reproduzida consciente e inconscientemente por milhões de pessoas em todo o mundo. Ser indiferente se tornou algo normal e aceitável.

            Como vencer o mal da indiferença para construirmos uma nova humanidade? O caminho é simples e exigente. O caminho é o que foi proposto por Jesus: Amar sem medida e incondicionalmente. Podemos orar, fazer jejum, doar donativos, ir aos templos religiosos, fazer penitência, confessar os pecados, reivindicar os direitos e denunciar as injustiças, entre tantas outras ações louváveis, dentro e fora da religião; mas todas estas coisas devem ser feitas com e por amor. Sem o amor, todas se transformam em vaidade humana, em puro “mundanismo” (expressão do papa Francisco).

            Qual o mal que tem afetado as Igrejas cristãs? A falta de amor entre os cristãos é de causar vergonha, é algo deplorável. Há uma expressão que traduz desse mal: Hipocrisia religiosa. Já no seu tempo Jesus denunciou este mal. Ele não tolerou mulheres e homens hipócritas, principalmente os de dentro da religião.

Dentre muitos conceitos, a hipocrisia religiosa é o uso malicioso da religião para esconder das pessoas os próprios limites e defeitos, assim como para explorá-las, aproveitando-se de sua inocência e ingenuidade. O hipócrita costuma se servir de discursos moralistas: Fala de uma moral que não pratica, jogando nas costas dos outros um fardo insuportável. A mensagem do amor não é hipócrita, mas liberta da hipocrisia. Fala-se, demasiadamente, sobre o amor, mas foge-se dele porque é exigente e lança-nos na direção do outro.

            Como amar as pessoas hoje? Amar como Jesus amou não é tarefa fácil. Exige renúncia às nossas pretensões egoístas. A gratuidade faz parte do amor. Aproveitar-se do outro é uma forma de apego, não de amor. O amor também exige liberdade, ou seja, amamos o outro para que este seja cada vez mais livre. Amar não é apoderar-se do outro, transformando-o em um objeto de satisfação de desejos. A responsabilidade também faz parte do amor. Cuidar do outro é responsabilizar-se por ele. Sem cuidado não há amor, mas há somente discurso vazio e mentiroso. O amor inclui atitude, encontro, companheirismo, e estas coisas constituem ação. Em Jesus, o amor é ação desinteressada, livre, cuidadosa e, portanto, responsável.

            Jesus amou doando a própria vida. O amor o levou ao madeiro da cruz. Esta não foi fruto do acaso, da falta de sorte e da predestinação. De modo algum. A cruz é consequência da opção de Jesus pelo amor. Amou a todos até as últimas consequências. Preferencialmente, amou os pobres e os pecadores públicos. Neste sentido, foi fiel a opção de Deus Pai, que desde a criação do mundo se colocou do lado dos pobres e oprimidos. Por isso, quem não estiver disposto a doar a própria vida, a desapegar-se dela, não poderá amar como Jesus. A história da humanidade está repleta de testemunhos: Inúmeras mulheres e homens se colocaram no caminho de Jesus, o caminho do amor, e nele perseveraram.

            Para ilustrar e finalizar nossa reflexão, vamos citar um exemplo de discípula fiel a Jesus: Dorothy Mae Stang, religiosa norte-americana, que após ter denunciado a exploração da floresta amazônica, foi covardemente assassinada em Anapu – PA, no dia 12 de fevereiro de 2005. Neste ano, celebramos dezesseis anos de sua memória. Ir. Dorothy amou como Jesus: Deu a sua vida. Não perdeu a vida, mas a ganhou gloriosamente. Seu martírio é participação na morte de Cristo Jesus e, dessa forma, ela participou da sua Ressurreição. Seu testemunho é de vida, liberdade e amor à natureza, que precisa ser preservada. Ir. Dorothy foi o grito do Espírito de Deus para que o povo brasileiro olhasse para a Amazônia e desta cuidasse, para que a vida continue florescendo com abundância. Que o Espírito que conduziu Jesus e a Ir. Dorothy nos inspire, ilumine e fortaleça diante das tentações que nos conduzem ao abandono do projeto de Deus.



Tiago de França

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Quaresma: Um apelo à conversão

“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, inclinado a perdoar o castigo” (Joel 2, 12).

A modo de Introdução

            Chegamos ao santo e fecundo tempo da Quaresma: Quarenta dias de caminhada rumo à celebração da Páscoa de Jesus de Nazaré. Tempo de escuta da palavra de Deus, tempo para acolher o chamado à conversão, tempo de oração, jejum e solidariedade. É verdade que durante todo o ano somos chamados a tudo isto, mas, na Quaresma, este chamado nos aparece com mais força. Nossa reflexão para iniciarmos este tempo favorável quer chamar a atenção para este apelo à conversão.

O que significa conversão? Por que precisamos nos converter? Por que temos dificuldade para mudarmos de vida? Estamos dispostos a trilhar o itinerário quaresmal, ou vamos mais uma vez adiar a nossa conversão? À luz da profecia de Joel, no versículo acima mencionado, assim como da palavra de Jesus em Mateus 6, 1 – 6.16 – 18, vamos escutar o que o Espírito está nos revelando nessa hora difícil de nossa história.

Voltar-se para Deus, rasgando o coração

            Assim como todos os profetas, Joel se utiliza de uma linguagem apropriada para convidar o povo à mudança de vida: “...voltai para mim com todo o vosso coração...” Precisamos entregar o nosso coração a Deus, nosso bom Pai. Somente Ele é capaz de libertar o nosso coração de nossos apegos, de tudo aquilo que tende a nos escravizar. Há muitas pessoas que estão com o coração aprisionado, amarrado aos bens materiais e às ilusões da vida. Como pode Deus habitar neste coração? A presença de Deus quebra as prisões, libertando das ilusões; mas este Deus pede para entrar. Ele não invade o coração de ninguém. Ele pede para ser acolhido. Sua vontade é amar a pessoa, habitando em seu coração.

            Eis uma prece que todo cristão deveria fazer: Ó Deus, meu amado Senhor, rasgo o meu coração diante de Ti. Sinto-me atribulado, cercado pelos lobos ferozes desta vida. Já não dou conta de viver sem Ti. Tu és a razão do meu viver. Por isso, peço-Te, em nome de Jesus, vem fazer morada em meu coração. Quero sentir a Tua presença. Tu és a minha segurança, a força que me faz viver. Vem, com Jesus e Teu Espírito, fazer morada em meu pobre coração. E, estando definitivamente nele, liberta-me do poder das trevas com a Tua luz. Que habitado por Ti, eu possa ser, verdadeiramente, a Tua testemunha neste mundo, cheio de mulheres e homens sedentos de Ti. Guarda-me, ó Trindade, com a Tua presença em mim. Amém!”

Ele é benigno e compassivo, inclinado sempre a perdoar

            Quem poderá conhecer e sentir a misericórdia de Deus? Quem são os que realmente conhecem e sentem o seu perdão? Com certeza, são os que abrem o coração para que Ele possa fazer a sua morada. Deus não é uma ideia, não é mera abstração. É o Amor que quer permanecer em nós. Este é o seu desejo, a sua vontade: Permanecer em seus filhos e filhas, habitando seus corações. Este é um mistério grandioso. Acolhendo o Pai, o Filho e o Espírito, a pessoa conhecerá o mistério divino, que se revela em seu amor. Não se conhece a Deus nas escolas de teologia, mas acolhendo-O no coração. Trata-se de uma experiência profundamente amorosa e transformadora. Deus transforma quem O acolhe. Ele transforma a partir de dentro. Sem acolhê-lo, não é impossível conhecer o poder transformador da sua misericórdia e do seu amor.

            Deus não é o Senhor dos Exércitos, o grande vingador do seu povo, aquele que vigia para saber quem está pecando, em vista do castigo. Esta é uma imagem falsa de Deus. Também não podemos crer que Ele acolhe a uns e despreza a outros, recordando-se de alguns e abandonando a outros. Não. Isto é mentira. Na verdade, toda a humanidade forma a grande família de Deus. Ele acolhe a todos, amando-os, sem limites. Ele não faz acepção de pessoas, mas volta-se, especialmente, para os que sofrem e para os que invocam, sinceramente, o seu nome. Ele não olha as nossas faltas. Certamente, as reprova, mas não as utiliza como motivo para nos castigar. O Deus e Pai de Jesus não é o Deus do castigo, mas é um Pai amoroso, que não sabe fazer outra coisa a não ser amar, infinitamente. Seu amor alcança a todos, na liberdade e para a liberdade. Por isso, não precisamos ter medo de Deus. Nele não há maldade porque a sua essência é o amor. Deus é amor e só responde com amor. Para conhecer tudo isso, só há um caminho: O caminho da acolhida. Sem acolhê-lo no coração é impossível experimentar o seu amor.

Deixar-se amar por Deus para amar, generosamente, os outros

            Quem professa a fé em Jesus não pode viver como se Deus não existisse. Isto é uma contradição inaceitável. Nossas liturgias precisam celebrar nosso testemunho diante dos homens e mulheres. Sem este testemunho de vida e de liberdade, de amor e de misericórdia, nossas liturgias não chegam aos ouvidos de Deus. Os profetas são unânimes em dizer que Deus não escuta as preces e o louvor de um povo que se recusa a fazer a Sua vontade. É verdade que somos um povo marcado pela fraqueza e pelo pecado, mas é em meio à fraqueza e ao pecado que somos chamados a fazer a vontade de Deus. E aí que a Sua misericórdia e força se manifestam. Nossa fraqueza não nos afasta de Deus, pois Ele sabe de que somos feitos. Com seu Espírito, Ele vem em socorro de nossas fraquezas. Até no pecado, Deus nos alcança! É no pecado que reconhecemos a grandeza da misericórdia divina, que nos levanta do chão e nos devolve a dignidade de filhos e filhas de Deus.

            Quando o amor de Deus nos preenche, pois Ele está em nós, então nos convertemos em pessoas verdadeiramente humanas. O amor de Deus nos devolve o que há de mais profundamente humano e divino em nós: A capacidade de amar. Quando Deus permanece em nós, com seu amor e sua ternura, imediatamente sentimos a necessidade de nos abrirmos aos outros, amando-os sem fazer distinção e sem impor limites. O amor de Deus em nós nos concede a graça de nos libertarmos da tentação do egoísmo, de nossa infeliz tendência de transformarmos as pessoas em objetos de satisfação de nossos desejos mesquinhos. Livres do egoísmo, somos capazes do amor. A partir daí vai surgindo a nova humanidade, chamada por Jesus, de Reino de Deus. O amor ao próximo é a prova de que em nós há o amor a Deus, pois quando recusamos o amor ao próximo e afirmamos que amamos a Deus, não há verdade em nós. Jesus foi claro na mensagem que nos deixou como Boa Notícia: O amor a Deus passa, necessariamente, pelo amor ao próximo.

Por uma Igreja humilde e misericordiosa

            A Igreja prega ao mundo o amor de Deus: Esta, de fato, é a sua missão. Neste tempo de Quaresma, como Igreja que somos, uma indagação nos poderá ajudar em nossa meditação e caminho de conversão: Em nossas comunidades, vivemos, de fato, a humildade e a misericórdia de Deus? Infelizmente, não podemos esconder a verdade de que há muita rivalidade entre os cristãos. Ainda há muita falta de humildade e misericórdia nas comunidades cristãs. No interior destas, muitas pessoas ainda fazem uso do julgamento e condenação do próximo. Muitas outras continuam sendo humilhadas e expostas, por causa de seus pecados. Tanto dentro quanto fora de nossas Igrejas, assistimos, vergonhosamente, à intolerância religiosa, ao preconceito e ao racismo. Há muita arrogância e prepotência na maneira de tratar os outros. Muitos “crentes” continuam com a velha e vergonhosa mania de se sentir melhor e mais santo que os outros, ousando apontar-lhes o dedo, julgando-os e condenando-os. Todas estas coisas envergonham o Cristianismo, constituindo um contratestemunho que precisa ser vencido com a prática da humildade e da misericórdia. Quem não é humilde não consegue ser misericordioso, pois humildade e misericórdia caminham juntas: A primeira é como que o alicerce da segunda.

A modo de conclusão

            O mundo está gravemente enfermo pela ausência do amor e da misericórdia. Os intolerantes e violentos não podem dizer que amam a Deus. Os cristãos precisam, urgentemente, aceitar o amor a Deus em seus corações para, assim, se transformarem em autênticos seres humanos: Mulheres e homens transformados pelo amor. Sem esta conversão ao amor é impossível termos justiça e paz. Sem amor, todos os esforços são incapazes de frutificar. Somente o amor nos concede a visão do outro, fazendo-nos capazes de amá-lo, vendo-o como irmão, como um ser humano, que deve ser tratado com respeito e dignidade. Não reconhecer a dignidade do outro é um pecado gravíssimo aos olhos de Deus.

Também nas leis humanas, esta negação da dignidade é um crime contra a humanidade. Somos da mesma raça e da mesma espécie e, segundo a fé cristã, formamos uma só família. Por isso, não podemos viver nos estranhando e nos tratando, mutuamente, como inimigos. Peca gravemente todo cristão que ver no outro um inimigo a ser vencido e eliminado. O outro é irmão porque Deus é Pai de todos, indistintamente: Esta é uma verdade fundamental da fé cristã, confirmada pelo testemunho das Sagradas Escrituras. Quem chama a Deus de Pai, deve considerar o outro como irmão, seja este quem for.

            É tempo de Quaresma. Este é o apelo que o Espírito nos dirige: Sejamos irmãos no amor. Basta de violência e covardia! Basta de mentira e ilusão! Abramos o nosso coração, a fim de que Deus possa nos revelar o seu amor. Permanecendo em nós, Ele nos revelará também quem realmente somos, o nosso verdadeiro eu. Desse modo, conhecendo-nos verdadeiramente, aceitar-nos-emos como somos, sem medo, sem fuga, sem vergonha de ser feliz. Isto é extraordinariamente maravilhoso! É pura graça, puro dom, verdadeira alegria. Deus quer ser Tudo em nós. Não percamos esta valiosa oportunidade; do contrário, nossa vida cairá no vazio e na mediocridade. 

            A todos, meu abraço e minha prece. Que o Espírito do Senhor nos conduza neste itinerário quaresmal e durante toda a nossa vida. Que não nos falte o dom de sua Iluminação. Assim seja.


Tiago de França