sexta-feira, 26 de setembro de 2008

São Vicente de Paulo e a opção preferencial pelos pobres


A Igreja reservou o dia 27 de setembro para celebrar a memória de um de seus maiores santos: São Vicente de Paulo. Sacerdote de oração e ação, homem evangélico sempre atual, amante da caridade missionária e iniciador de um grande projeto. A vasta biografia deste grande ícone da caridade na Igreja não me permite apresentar em um breve artigo sua fecunda história de amor pelos pobres. Portanto, tenho a intenção de expor brevemente aquilo que já foi escrito e estudado por muitos e que constitui o centro da espiritualidade da Família Vicentina: o seguimento de Jesus Evangelizador dos pobres.
“A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza” (cf. 2 Cor 8, 9) [1]. O que o Papa Bento XVI quis dizer com isso? Na fé professada em Jesus está implícita a opção preferencial pelos pobres. E quem é este Deus? É aquele que desceu até nós, tornou-se “igual a nós, exceto no pecado” [2]. Ele é o Emanuel, o “Deus que está conosco” [3]. A riqueza do cristão é ter consigo este Deus. Quando São Vicente leu a passagem da Escritura que diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu; e enviou-me para anunciar a Boa Nova aos pobres” [4] entendeu o chamado de Deus que o interpelava para assumir com a vida esta opção. Falando às Filhas da Caridade, ele expressa sua alegria e consolação: “Quanto a mim, minhas Irmãs, eu vos confesso que jamais senti maior consolação do que quando tive a honra de servir aos pobres” [5]. Estas palavras nos falam do sentimento que brota do coração de São Vicente de Paulo. Lendo com os olhos fé vemos e sentimos um homem apaixonado pelos pobres.
Na reflexão teológica pós-conciliar os pobres ganharam lugar de destaque. Os documentos conciliares, e especialmente os das Conferências do CELAM, apresentam uma preocupação evangélica pela situação dos pobres no mundo. E já no século XVII, deixando-me iluminar pela Palavra de Deus, São Vicente de Paulo soube entender e viver a opção que se tornou o núcleo do sentido do trabalho de evangelização da Igreja na América Latina. São Vicente de Paulo entende a evangelização da seguinte maneira: “A evangelização dos pobres é um ofício tão importante que foi, por excelência, o ofício do Filho de Deus. a ele nós nos aplicamos como instrumentos dos quais se serve o Filho de Deus que continua a fazer no céu o que fez na terra” [6]. Neste pensamento percebe-se explicitamente a opção preferencial pelos pobres implícita na fé cristológica. Para São Vicente de Paulo, Jesus é o modelo de missionário. O Cristo de São Vicente é o missionário do Pai. Quando escreveu ao Pe. Portail, um dos primeiros membros da Congregação da Missão, ele diz: “Lembre-se Pe. Portail, que vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo, e que temos que morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo; que nossa vida deve está oculta em Jesus Cristo e plena de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo devemos viver como Jesus Cristo” [7]. A partir destas sábias e santas palavras, pode-se afirmar que o carisma vicentino é eminentemente cristológico e totalmente voltado à evangelização dos pobres. Esta é a identidade da Família Vicentina, composta de homens e mulheres, leigos e ordenados, consagrados para desenvolver esta árdua missão.
Os vários escritos de São Vicente de Paulo são considerados instruções sobre o verdadeiro exercício da caridade. No tempo de São Vicente de Paulo os pobres eram esquecidos. Esquecidos pela sociedade e pela Igreja. O clero de seu tempo estava voltado para a busca do ter e do poder, imerso num verdadeiro lamaçal de corrupção. Inicialmente, o próprio Pe. Vicente de Paulo também almejava participar deste infortúnio eclesiástico, mas tocado pela graça de Deus que se manifestou pelas influências de diretores espirituais como São Francisco de Sales, do Cardeal de Bérulle e André Duval e a realidade gritante dos oprimidos marginalizados, São Vicente de Paulo encontrou o verdadeiro sentido da vida e fim último do homem: o Deus de Jesus Cristo na pessoa do pobre. Este encontro marcou tanto sua vida, que ele declara para os Padres da Congregação da Missão por ele fundada: “Jesus Cristo é a regra da Missão” [8], e as Constituições rezam que “Jesus é o Centro de sua vida e de sua ação” [9]. Por isso, tantos os Padres como os demais membros dos demais ramos que constitui a Família Vicentina, deve ter em Jesus o fundamento e a força que encoraja e anima no exercício da caridade organizada.
Um dos alimentos do missionário e da missionária na missão do seguimento de Jesus segundo tal opção é a oração. Falando aos Padres da Missão, São Vicente de Paulo fala da importância que se deve dar à oração: “Dá-me um homem de oração e ele será capaz de tudo. Pode-se dizer como o apóstolo: tudo posso naquele que me fortalece. A Congregação durará enquanto praticar com fidelidade a oração, que é como a fortaleza inexpugnável que defende os missionários contra toda espécie de ataques” [10]. Dificilmente, um missionário pode desenvolver bem sua missão sem este alimento salutar. O mundo pós-moderno está levando ao desespero muitos cristãos, que por falta da intimidade com Deus, que se dá por meio da oração, estão perdendo as esperanças e o sentido da existência. O vicentino não pode chegar a este estado, porque aprendeu com seu Fundador a necessidade de rezar. A falta de oração torna as pessoas insensíveis diante dos sofrimentos do próximo, pois assim como Jesus mostrou a São Vicente de Paulo o verdadeiro sentido do ser cristão, que é o servir os pobres, este mesmo Cristo continua hoje apontando para estes mesmos pobres.
O carisma vicentino permanece atual porque os pobres nunca deixaram de existir. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o número de pessoas com fome no mundo passou de 850 milhões para 925 milhões em 2007, notícia publicada no dia 17 do corrente mês. Estamos diante de uma realidade que clama por socorro. O capitalismo exacerbado dos países ricos e industrializado está acentuando cada vez mais a miséria no mundo. A partir de uma leitura teológica desta realidade pode-se afirmar que esta é uma situação pecaminosa grave, que provoca a ira de Deus, pois Deus não criou os seres humanos para morrerem de fome sobre a face da Terra. O que isso tem que ver com o carisma vicentino? O que São Vicente de Paulo faria se estivesse conosco? Com certeza ele denunciaria essa aberração contra os pobres e assim como Madre Teresa de Calcutá, Dom Hélder Câmara. Ir. Doroth Stang e tantos outros e outras, que deram sua vida em prol da libertação integral do ser humano e da promoção da dignidade humana. Organizar e conscientizar os pobres devem ser o primeiro passo. Isso significa fazer com o que o pobre construa sua própria história, denunciando também toda forma de assistencialismo alienante e toda falsa prática da fé.
Finalizo esta breve reflexão expondo a visão que São Vicente de Paulo tinha dos pobres, para que também nós não os percamos de vista em nossa ação pastoral como Igreja de Jesus Cristo: “Não devemos considerar um pobre camponês segundo o seu exterior, nem segundo o alcance do seu espírito. Ainda mais quando freqüentemente quase não têm a figura, nem o espírito de pessoas racionais, tanto grosseiros e terrestres. Mas, virai a medalha e vereis, pela luz da fé, que o Filho de Deus, que quis ser pobre, nos é representado por esses pobres. Ele quase não tinha figura humana, em sua paixão. Passava por louco, no espírito dos pagãos, e por pedra de escândalos, no espírito dos judeus. E com tudo isso, ele se qualifica evangelizador dos pobres! Ó meu Deus, como é belo ver os pobres, se os consideramos em Deus e na estima que Jesus Cristo teve deles” [11]. São Vicente de Paulo, rogai por nós!

Tiago de França da Silva
Seminarista Lazarista

Notas:
[1] Discurso Inaugural proferido pelo Papa Bento XVI na Sessão Inaugural dos Trabalhos da V CELAM, 3;
[2] Hb 4, 15;
[3] Mt 1, 23;
[4] Lc 4, 18;
[5] X, 681;
[6] Conferência aos Padres da Missão (Correspondência, Conferências, Documentos. Paris, 1920 – 1925, vol. XII, trechos, p. 80 – 87;
[7] I, 230;
[8] XI, 429;
[9] Constituições da Congregação da Missão, nº 5;
[10] XI, 778;
[11] XI, 30.

domingo, 21 de setembro de 2008

Trabalhar na vinha do Senhor


O texto do Evangelho deste 25º Domingo do Tempo Comum é Mt 20,1 - 16. Trata-se da parábola do patrão que chamou trabalhadores para a sua vinha. É um texto rico em detalhes, que merece uma profunda reflexão, mas aqui irei destacar somente alguns verbos de ação que revelam o sentido original do texto. Um deles é o verbo CHAMAR. O patrão chamou trabalhadores para trabalhar. Este patrão é Deus. A vinha pode ser o mundo e a Igreja. Sendo o mundo, o Senhor chama cada pessoa humana a trabalhar pelo bem comum de todos. Como habitantes de passagem deste mundo, os homens são chamados por Deus para trabalhar, contribuir para a construção de um mundo melhor. Cada ser humano deve contribuir para um outro mundo possível: sem violência, sem fome, sem desamor... A Igreja está no mundo, e nela cada batizado é chamado a ser membro ativo. Trabalhar na vinha do Senhor é praticar a fé na dimensão do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Como instrumento da verdade e da vida no mundo, a Igreja Povo de Deus é chamada a ser sinal de libertação do mundo presente. Esta libertação só acontece através do amor grauito de Deus semeado nos corações dos homens. Tendo o amor de Deus, o homem é capaz de amar o próximo sem limites fazendo com que surjam novo céu e nova terra. A parábola fala dos "primeiros" e dos "últimos". Na pedagogia do amor de Deus acontece a inversão daquilo que pensamos, ou seja, quem chegou cinco da manhã irá receber o mesmo valor de quem chegou às cinco horas da tarde; quem se afirma ser o primeiro, irá ser recebido por último. Quem são os primeiros de nossa sociedade e de nossa Igreja? São aquelas pessoas que se julgam melhores e mais santas que às outras; são os considerados "justos" de nossa sociedade; os que assumem cargos e encargos importantes; são as pessoas aplaudidas e tidas como figuras respeitáveis da sociedade civil e eclesiástica. Estes primeiros serão os últimos... E quem são os últimos de nossa sociedade e Igreja? São todos os excluídos e esquecidos da sociedade; aqueles que são considerados "descartáveis", que tiram a beleza das praças públicas, que são chutados e chamados de "vagabundos" por aqueles que se acham trabalhadores; são os que não praticam a religião, que não recebem os sacramentos, os que são considerados "perdidos" por muitos que pensam que têm fé; entre tantos outros maltratados pelo sistema neoliberal. Estes últimos serão os primeiros no Reino de Deus. Agora, cada um deve olhar para si e perguntar-se: Quem sou eu? O que revelam minhas atitudes?...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

O corpo de Cristo (escrito patrístico)


Isto é o que disse Pai Daniel, o Faranita: "Nosso Pai Arsenius nos contou sobre um habitante de Scetis, de vida digna e fé simples; pela sua ingenuidade, ele foi enganado e disse, "O pão que recebemos não é verdadeiramente o Corpo de Cristo, mas um símbolo. Dois anciãos souberam que ele dissera aquilo, conhecendo seu modo de vida correto acreditaram que ele não falara por malícia, mas por simplicidade. Então, vieram a ele e disseram: "Pai, ouvimos da parte de alguém uma proposição contrária à fé, que disse que o pão que recebemos não é verdadeiramente o corpo de Cristo, mas um símbolo. O ancião disse, "fui eu quem disse isso." Então os outros dois o exortaram dizendo, "não mantenha essa crença, Pai, mas aquela em conformidade com o que a igreja Catolica nos deu. Acreditamos, de nossa parte, que o pão por si mesmo é o Corpo de Cristo, como no início, Deus formou o homem à sua imagem, tomando do pó da terra, sem que ninguém possa dizer que ele não é a imagem de Deus, mesmo que não pareça. Do mesmo modo, com o pão do qual ele disse, "este é meu corpo", assim nós cremos que é verdadeiramente o Corpo de Cristo. O ancião disse-lhes, "Enquanto eu não for convencido pela coisa em si, não estarei completamente convicto." Então eles disseram, "Vamos rezar a Deus sobre este mistério por toda a semana e acreditamos que Deus vai nos revelar isto." O ancião ouviu isso com alegria e rezou nessas palavras, "Senhor, vós sabeis que não é por malícia que eu não creio, e, de maneira que eu não erre por ignorância, revele isto a mim, Senhor Jesus Cristo." Os dois homens voltaram a suas celas e rezaram também a Deus, dizendo, "Senhor Jesus Cristo, revele esse mistério a esse homem de modo que ele creia e não perca sua recompensa." Deus ouviu suas preces. Ao final da semana eles vieram à igreja no domingo e se sentaram todos os três no mesmo tapete, o ancião no meio. Em seguida seus olhos se abriram e quando o pão foi colocado na mesa sagrada, aparecia-lhes uma criança pequena, sozinha. E quando o sacerdote estendeu a mão para partir o pão, viram um anjo descer do céu com uma espada e servir o sangue da criança no cálice. Quando o padre partiu o pão em pedacinhos, o anjo também cortou a criança em pedaços. Quando se aproximaram para receber os sagrados elementos o ancião sozinho recebeu um pedaço da carne sangrenta. Vendo isto, ficou com medo e gritou, "Senhor, eu creio que isto é vosso corpo e este cálice vosso sangue." Imediatamente a carne que ele segurava em suas mãos se tornou pão, de acordo com o mistério e ele o tomou dando graças a Deus. Em seguida os dois homens lhe disseram, "Deus conhece a natureza humana e sabe que o homem não pode comer carne crua e é por isso que ele mudou seu corpo em pão e seu sangue em vinho, para aqueles que o recebem na fé. "Em seguida, deram graças a Deus pelo ancião, porque Ele não permitiu que o mesmo perdesse a recompensa pelo seu trabalho. Então, todos três retornaram com alegria para suas celas."

sábado, 6 de setembro de 2008

O amor e a liberdade


A segunda leitura da liturgia deste domingo, 23º do Tempo Comum, tem como tema central o amor mútuo. O Apóstolo Paulo escrevendo aos Romanos diz: “...quem ama o próximo está cumprindo a lei” (Rm 13,8). O amor faz com que as pessoas jamais se ofendam umas às outras. As crianças da favela do Recife cantavam para Dom Hélder Câmara escutar: “Só o amor constrói”. Quem verdadeiramente ama o próximo está incapacitado de fazer o mal, porque o amor nos cumula de uma força e de um poder que nos impede de fazermos o mal. O mal está fora do amor. Sendo Deus amor, o mal não provém de Deus. O mal é invenção nossa. O mal é a falta do amor no coração das pessoas. Quando a pessoa não ama, termina por fazer o mal. Jesus não fazia o mal porque vivia impulsionado pelo amor, que é o próprio Deus. Quando o livro do Gênesis afirma que somos imagem e semelhança de Deus, dessa forma afirma também que somos imagem e semelhança do amor. É por isso que podemos afirma sem medo de ser feliz: fomos criados para amar. Deus é amor e nos criou para amá-lo. Ele nos ama e quer que nós O amemos. Quando o poder do amor toma conta das pessoas, tudo se transforma e o Reino de Deus se realiza em cada pessoa amada. O Reino de Deus não é outra coisa senão a humanidade amando-se e amando a Deus. Voltar-se para Deus significa voltar-se para o irmão e amá-lo do jeito que ele é, sem indiferenças nem hipocrisias. Quem ama cumpre a lei porque jamais pode transgredi-la. O amor gera em nós uma obediência a Deus, que é bom e fiel. Paulo finaliza o texto deste domingo afirmando categoricamente: “Portanto, o amor é o cumprimento perfeito da Lei” (v. 10). Quem ama está cumprindo toda a lei. O grande Santo Agostinho também afirmou: “Ama e faz o queres”. Só o amor pode libertar integralmente o ser humano. Fora do amor o ser humano não é e nem pode ser livre nem se libertar. O amor é tudo na vida de quem segue a Jesus. Foi o amor incondicional pelo ser humano que fez Deus dar seu único e amado Filho para a redenção da humanidade (Cf. Jo 3, 16). Não houve e nem haverá prova de amor maior que a do próprio Deus por cada pessoa que nasce neste mundo. Deus nos ama e nos quer bem e a partir da vivência desta certeza é que somos felizes, porque seremos capaz de amor e sermos amados.
Também neste domingo celebra-se o Dia da Pátria, a festa da Independência do Brasil, que no calendário civil está registrado no dia 7 de setembro de 1822. A verdade é que não somos um país livre, mas que estamos trabalhando para a conquista da liberdade. Conquistar a liberdade é um processo histórico lento, que se dá na medida em que cada brasileiro toma consciência de seu papel como cidadão. O Brasil vai se libertando a partir do momento em que cada brasileiro vai se conscientizando de seus direitos e deveres. A libertação sempre foi um desejo ardente de cada ser humano em seu processo histórico neste mundo. Todos almejam a liberdade. Ninguém aceita ser escravo de ninguém. Todos nascem para a liberdade, apesar dos condicionamentos que a vida nos impõe. O fato de o Brasil ser um país em que a maioria do povo professa a fé cristã pode ajudar no processo de libertação. Mas pode também atrapalhar, caso a fé não seja essencialmente vivida e direcionada para a vivência da liberdade. Crer na democracia significa crer que se pode construir um país livre e soberano. A realidade mostra um grande retrocesso na vida política, em que a corrupção está gritando mais forte. Isto não significa que o país está perdido. A solução está no resgate dos verdadeiros valores democráticos e este resgate se dá no pleno exercício da cidadania, por meio do voto direto e das reivindicações e lutas pelos direitos humanos. Pode-se afirmar que os políticos representam o povo brasileiro, e se alguns não “prestam” é porque teve uma parcela da população que não soube votar conscientemente. Mas, apesar dos pesares da conjuntura política de nosso país, o Brasil ainda tem jeito!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Vocação: chamados a servir


Eis o que disse Jesus a Simão e seu irmão André: “Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens” (Mc 1, 17). Este mesmo convite é estendido a toda pessoa que aceita Jesus e é batizada em seu nome. A presente reflexão tem como pretensão reanimar o chamado de Jesus e aprofundar este chamado em vista da evangelização do mundo. Neste mês de agosto a Igreja volta seu olhar para um assunto fundamental do conteúdo de nossa fé: o chamado de Deus.
Refletir sobre o chamado de Deus é uma necessidade constante de toda pessoa que se sente chamada pelo Senhor. Pois, para sermos seguidores de Jesus precisamos conhecê-lo. Vamos tentar responder às questões:
- Quem nos chama? Como nos chama?
- O que devo responder? Como responder?
- O que fazer depois de uma resposta madura e consciente?

A primeira frase do nº 129 do Documento de Aparecida afirma: “Por assim dizer, Deus Pai sai de si para nos chamar a participar de sua vida e de sua glória”. Somos chamados a participar da vida de Deus e de sua glória. Deus quer partilhar de sua intimidade conosco. Participar da vida de uma pessoa é sinal de amor e confiança. “Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2, 24). A união do homem e da mulher prefigura nossa união com Deus. Assim como o homem se torna uma só carne unindo-se à mulher, todo ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), é chamado à participar de sua divindade, de sua vida. Só o ser humano, entre todos os seres vivos da terra, é que tem esse privilégio. Como participar da vida divina? Esta é uma questão que foi pensada e meditada desde os primórdios do povo de Deus no antigo Israel até nossos dias. Os Padres da Igreja são unânimes em dizer que o nosso fim último é o próprio Deus. A comunidade dos cristãos pertence a Cristo. Eis o que afirma a Apóstolo Paulo: “... mas vocês são de Cristo e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 23). Nós pertencemos a Deus. Ele é que é nosso guia. A vida divina não está fora de nosso mundo. Vivemos uma vida com Deus neste mundo. Antes de tudo, Deus nos chama à vida. Esta vida é divina porque está ligada a Deus. Aí entra o papel da religião: religar o gênero humano a Deus. Participar da vida divina significa crer que Deus é vida e a partir dessa crença, agir conforme a vontade de Deus. Quem aspira a vida divina precisa obedecer a vontade de Deus. Para viver com Deus precisamos saber onde ele está e como está agindo. Onde está Deus? Na liturgia não cansamos de responder: “Ele está no meio de nós!” E Jesus nos garantiu: “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). O mesmo evangelista confirma o que disse o profeta: “Ele será chamado de Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco” (1, 23). Não há dúvidas de que Jesus permanece em nosso meio e participa na construção do Reino de Deus. A nossa glória está na alegria de sabermos que Deus não nos abandonou em meio às trevas de nossos erros. Ele nos chama a sermos seguidores de seu Filho Jesus Cristo. Aproximemo-nos, pois, de Jesus para conhecê-lo melhor. Esse aproximar-se nos revela a resposta à indagação: Como ele nos chama? Não esperemos que Deus nos chama por meio de visões, sonhos ou êxtases. Ele nos chama a partir de nossa vida, de nossa realidade. A partir da experiência e da vocação de Jesus aprendemos que Deus não é um enigma, mas um Pai amoroso que se revelou nas pessoas e situações simples da vida humana. Em Jesus, Deus se tornou humano para ser compreendido e amado por aqueles e aquelas que foram criados à sua imagem e semelhança. Deus se encarnou na história da humanidade. Este foi seu querer. Se não compreendermos a encarnação divina na história humana, não compreenderemos a nossa verdadeira vocação. O ser humano compreende a si mesmo a partir de sua compreensão de Deus. Se somos imagem e semelhança de Deus, ao compreender este Deus estaremos compreendendo a nós mesmos. Compreender e conhecer a Deus não quer dizer que devemos ser doutores em Teologia. Vejamos a importância que o evangelista dá ao conhecimento de Deus, quando cita as palavras de Jesus: “Ora, a vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e a Jesus é possuir já neste mundo a vida eterna. Para alcançar a sabedoria divina e/ou conhecer a Deus não é necessário tornar-se sábio ou inteligente, pois a estes o Senhor não se revela (Cf. Mt 11, 25). Deus nos chama por meio de nossa vida. A partir de uma leitura evangélica podemos afirmar que ele se torna mais presente nos momentos mais sofridos da vida, especialmente da vida dos pobres. Estes nos revelam a vontade de Deus. Deus nos fala através dos pobres. A experiência dos pobres mostra o poder e a presença de Deus na história. Quem ignorar os pobres está ignorando o próprio Deus. Assim sendo, o clamor dos pobres torna-se a voz e o clamor de Deus. Isso explica a paixão de Jesus pelos pobres, esquecidos e marginalizados das sociedades de todos os tempos. Ele nos chama a sermos promotores da vida. E os pobres, que são massacrados pelo sistema neoliberal, são os principais destinatários da salvação. Ignorar esta verdade é não entender da verdade do Evangelho de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4, 18). Esta é a verdade e não há outra. Desviar o sentido desta palavra é se opor à vontade de Deus que se manifestou nas ações de Jesus para com os pobres.
Qual a nossa resposta diante do chamado de Deus? E como responder a este chamado? A resposta a estas questões damos com a vida. O grande pacifista da humanidade, Mahatma Gandhi, disse: “Não tenho mensagem para dizer, minha mensagem é a minha vida”. Toda a vida de uma pessoa que segue Jesus deve ser uma resposta definitiva ao chamado de Deus. Para respondermos a Deus precisamos saber antes respondermos a outra pergunta: Para que Deus me chama? É indiscutível que Deus nos chama. Isso é uma certeza. Deus chama a todo ser humano para o bem, para fazer o bem. Cada pessoa tem sua maneira de ser e dessa forma, chamada a fazer o bem a seu modo. Não importa a religião nem a condição da pessoa, importa escutarmos a voz de Deus e dar-lhe uma resposta madura e consciente. “Senhor, que queres que eu faça?” Ele nos dá sua resposta, porque se mostrou necessitado de nossa ação. Deus precisa de nós? Isso mesmo! Ele quis partilhar sua vida conosco e isto interpela nossa participação. Essa participação na vida divina é recíproca. A nossa vida se une a Deus e Ele se solidariza conosco. Responder a Deus é colocar-se a seu serviço. Quem se opõe a servir não pode dizer que respondeu ao chamado de Deus, pois descobrimos os verdadeiros seguidores de Jesus a partir do serviço que presta à comunidade cristã. O serviço fraterno, que é o amor ao próximo, é a marca indelével do seguimento de Jesus, ou seja, quem não ama não segue Jesus. O amor é a condição do seguimento, é a marca que confirma e identifica. A resposta ao chamado deve ser madura e consciente, pois precisamos viver conscientemente a opção de seguir Jesus. Seguir Jesus é uma opção, porque temos outras opções que o mundo nos coloca. Somos livres para optarmos por seguir Jesus. Quem faz essa opção não pode colocar a mão no arado e olhar para trás (Cf. Lc 9, 62). Atentos a realidade e aos sinais dos tempos, somos chamamos a discernir o chamado de Deus. Deus nos chama em função da construção do Reino de Deus. O chamado é algo pessoal: Deus chama a cada pessoa pelo nome. Mas a resposta é coletiva: chamados a servir aos irmãos e irmãs. Por isso, separar vocação de serviço é algo impossível. Falso profeta é aquele que afirma ser enviado por Deus ou consagrado ao Senhor, mas que se recusa a servir à comunidade. Conhecemos os discípulos de Jesus pelo amor serviçal praticado na vida.
Em nosso atual contexto de mundo e de Igreja o serviço fraterno torna-se cada vez mais desafiador. O documento Gaudium et Spes nº 17 afirma: “Mas é só na liberdade que o homem pode se converter ao bem”. Isso significa que a vocação cristã não pode ser vivida fora da liberdade. Precisamos ser livres e libertar as pessoas para o seguimento de Jesus. O teólogo José Comblin afirmou: “Uma libertação integral exige um processo pelo qual cada pessoa se liberta a si mesma e desfaz todos os laços que a mantêm presa ao passado, para construir laços de uma sociedade livre” (Cf. O espírito Santo e a Libertação. Série II. Petrópolis, 1987, p. 160). Cada pessoa é convidada a se libertar. Paulo Freire, famoso cientista da educação, costumava dizer que “ninguém liberta ninguém, nos libertamos em comunidade”. Os cristãos, especialmente os católicos, possuem um peso muito grande na maneira de ser Igreja, que é a tradição. A grande maioria de nossos católicos está presa e até escrava da tradição. Vivenciar o chamado de Deus sendo escravo da tradição é impossível. Não é que a tradição em si mesma seja um mal na Igreja. O que é preciso é absorver da tradição aquilo que é bom e que pode ser vivido em nossos dias. Construiu-se uma Igreja espiritualista, à margem da sociedade humana. Pensaram uma sociedade misteriosa e espiritual implantada no mundo, mas sem contato com ele. Essa é a Igreja da Cristandade, que predominou na Idade Média. Disse Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Emérito de São Félix do Araguaia, MT: “A Igreja era virgem e pura enquanto habitava as catacumbas. Quando saiu das catacumbas se amasiou com o império” (Em entrevista a Caros Amigos, SP, fevereiro de 2000). Não precisamos citar os pecados da Igreja do passado e do presente, pois já são bastante conhecidos. Este desprendimento do passado é uma necessidade urgente para muitos fiéis e clérigos de nossa Igreja. Esta prisão ideológica e doutrinal em relação à Cristandade e à visão de Igreja construída pelo Concílio de Trento está impossibilitando a muitos a viver coerentemente a vocação cristã. Esta prisão faz um mal que é ainda pior: causa conflito entre os cristãos da mesma Igreja. Uns aceitam o Vaticano II e buscam traçar sua história vocacional segundo seus princípios e decisões, outros consideram o Vaticano II um erro por parte da Igreja e ainda ousam afirmar que o Vaticano II dispersou os cristãos e desorganizou a Igreja. O que o chamado de Deus tem a ver com isso? Todo cristão age conforme a doutrina que crer. Se creio na doutrina de Jesus, minhas ações condizem com as de Jesus. A doutrina da Igreja busca se configurar a doutrina de Jesus. Se a visão de Igreja é a de Trento, então irei agir como se estivesse nos tempos de Trento. Foi isso que preocupou o Santo Padre João XXIII e o levou a convocar um novo Concílio. A proposta dele foi o aggiornamento, palavra italiana que em português podemos traduzir por atualizar-se, atualização. O Papa bom propôs a atualização dos princípios da Igreja à realidade. Uma atualização prudente e coerente. Pessoalmente, penso que somente pelo fato de o Papa João XXIII ter tido a coragem profética e evangélica de convocar um novo Concílio com tal proposta, já demonstra sua fidelidade à missão apostólica e sua santidade pessoal. Foi um Papa que escutou e atendeu aos apelos do Espírito que assiste a Igreja ao longo da história. Diante disso, se não tivermos a coragem de nos desprendermos de nossa velha catequese, então fica difícil construirmos a Igreja missionária sonhada pelos Bispos reunidos na V CELAM, em Aparecida, SP. Na verdade, esta Igreja missionária é um sonho de todos os católicos de boa vontade que acreditam na proposta do Concílio Vaticano II. A formação teológica de nossos Seminários precisa se converter neste sentido, pois do contrário, continuaremos alimentando uma Igreja que já faleceu e foi sepultada pela história. A grande maioria de católicos que não aceitam a ressurreição desta “Igreja falecida” espera de nós o aggiornamento proposto pelo Papa João XXIII. A revisão do estado presbiteral em nossa atual Igreja é uma questão de urgência, pois a mentalidade de nossos fiéis está mudando e eles não estão aceitando mais certos comportamentos e homilias que não correspondem com a realidade. Na Sessão Inaugural da V CELAM, em Aparecida, SP o Papa Bento XVI propõe que os sacerdotes “tem de ser, como Jesus, um homem que procure, através da oração, o rosto e a vontade de Deus, cultivando igualmente sua preparação cultural e intelectual”. Uma boa preparação intelectual e cultural possibilita ao leigo e ao presbítero ter uma visão ampla e aberta da realidade e da Igreja.
Uma mente aberta não ignora as novidades que o Espírito faz brotar no seio da Igreja. O novo sempre causou medo naqueles que são inimigos das mudanças, mas estas são urgentemente necessárias. Mudar de mentalidade é desarmar-se e ir ao encontro da sociedade secularizada e globalizada de nossos dias, sem hipocrisias nem dogmatismos. O seminarista de hoje é o padre de amanhã falando de Deus ao mundo. Caso se recuse a fazer uma leitura orante, evangélica e coerente da realidade da vida no mundo, por mais que fale bonito às multidões, num curto intervalo de tempo tudo cairá no esquecimento! A mudança de mentalidade na Igreja e na sociedade exige um programa de formação que vise a conscientização das pessoas e o pleno conhecimento da vontade de Deus e seu projeto. Trata-se de um caminho exaustivo, pois não é fácil renunciar a convicções que foram construídas e ensinadas durante séculos. Exige-se também uma revisão nas estruturas da Igreja, seus organismos, dioceses e congregações; pois a história já provou que as estruturas têm atrapalhado bastante na evangelização do povo de Deus. Tudo isso requer abertura e boa vontade. Tais transformações devem ocorrer sábia e prudentemente, na fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. Cada vocação na Igreja, no silêncio e na perseverança, cofiando na graça e na misericórdia de Deus, é chamada a ir dando passos rumo às grandes transformações; pois no Reino de Deus as coisas acontecem aos poucos, lentamente. O nosso Deus é paciente e bondoso, ele não está preocupado com o tempo, mas com a felicidade humana que se concretizará plenamente na plenitude do Reino entre nós. A história também nos mostra, que apesar das fraquezas, a Igreja tem dado alguns passos rumo à conversão. O pedido de perdão realizado pelo Papa João Paulo II na abertura do Terceiro Milênio foi um sinal positivo. Quando se fala em mudança de mentalidade, o lugar em que a mesma pode ocorrer eficazmente é na formação seminarística, pois os padres são na Igreja e para a Igreja, construtores de opinião. E se eles opinam de forma equivocada, infelizmente levam a muitas pessoas ao erro e ao anti-Reino. Faço votos de que o Espírito de Amor, que sonda até as profundezas de Deus (Cf. 1 Cor 2, 10) nos ajude no nosso processo de conversão. Que São Vicente de Paulo nos ajude com sua intercessão a sermos fiéis seguidores de Jesus na fidelidade aos pobres.

Tiago de França da Silva,
Seminarista