Falar sobre a liberdade
na Igreja é complicado, e o motivo é simples: infelizmente, a Igreja continua
sendo um dos espaços no qual a liberdade não é muito acolhida. A disciplina da
Igreja continua muito severa, apesar de pouco observada. Há muitas leis, mas
pouca observância. Se olharmos para a conduta da maioria dos católicos, que
além de não ligar para a disciplina, também a desconhece, veremos a
discrepância existente.
Os
cristãos de outras Igrejas não se cansam de acusar os católicos de rebeldia e
relaxamento. Em contrapartida, estes não estão preocupados com tal acusação. A
constatação é simples e visível: no Brasil há milhões de católicos, e a maioria
só aparece no culto para a recepção dos principais sacramentos (batismo, crisma,
eucaristia e casamento). Também costumam aparecer nas celebrações fúnebres. Há,
ainda, uma parcela de católicos que vai à missa por tradição.
Estes
últimos, muitas vezes, saem dos templos do mesmo jeito que entraram, pois não
participaram da celebração, mas “assistiram
à missa”, como se costuma dizer. Como o ritual romano da celebração é fixo,
então fica fácil se fazer presente, tornando-se uma “participação” mecânica no
culto. Desse modo, não precisamos explicar que este tipo de presença no culto
não leva as pessoas a lugar nenhum. Este é um dos motivos que explicam a falta
de conversão dos católicos.
Ao
falamos de liberdade na Igreja estamos considerando esta situação que acabamos
de explicitar em breves linhas. Nossa reflexão quer falar da liberdade na
relação entre a Igreja e a sociedade, e entre leigos e clérigos. Certamente, há
outros aspectos da liberdade na Igreja a serem considerados, mas o curto espaço
de um artigo não científico não permite maiores aprofundamentos. Portanto, em
nossas considerações, iremos direto ao ponto, com clareza, objetividade e
concisão.
A
liberdade na relação entre Igreja e sociedade
Este subtítulo contempla uma variedade de informações que
caberia em um livro volumoso. Há uma literatura extensa a respeito. Antes de
considerarmos alguns aspectos da liberdade na história da Igreja, é preciso
enxergá-la no testemunho de Jesus de Nazaré. A vida pública de Jesus mostra
claramente a sua liberdade de espírito e de ação.
Era
um homem livre e libertador: livre porque não se deixava prender a nada nem a
ninguém; libertador porque seu testemunho atraía outros para viverem a mesma
experiência. Jesus incomodava bastante com seu jeito de viver a
espiritualidade. Sua liberdade causava admiração e medo, incômodo e esperança. Para
os pobres era motivo de alegria, enquanto que para os ricos era motivo de medo
e preocupação.
Por
ser um homem livre, Jesus se diferenciava de todos e seu ensinamento, dado com
autoridade (a autoridade de um homem livre!), questionava os líderes religiosos
e a sociedade de seu tempo. Com suas palavras e gestos ensinou que o caminho da
salvação é um caminho de liberdade, e ensinou também que a religião só é
autêntica quando se coloca a serviço da libertação integral das pessoas.
A
proposta de Jesus a todo aquele que deseja segui-lo é alicerçada na liberdade.
Quem não deseja ser livre não pode segui-lo. Fora da liberdade não há
seguimento e, consequentemente, não há salvação em Jesus, o Cristo.
Na Igreja primitiva, os primeiros cristãos das primeiras
comunidades compreenderam bem a mensagem de Jesus: não se deixavam escravizar
por nada nem ninguém. A fé no Cristo ressuscitado os fez caminhar na liberdade.
O poder do Império romano não foi capaz de eliminar a fé cristã. O martírio foi
a prova da fidelidade de inúmeros cristãos.
Seguir
Jesus era testemunhá-lo publicamente até as últimas consequências. Os cristãos
venceram o egoísmo e o medo, enfrentando com coragem e ousadia as ameaças, as
perseguições, as torturas e a morte. Acreditavam com firmeza na ressurreição da
carne e na vida eterna. Professavam a fé com o derramamento de sangue. Era a
Igreja dos mártires e dos profetas, que assustava as autoridades do Império
romano. No famoso coliseu de Roma acontecia, como em tantos outros lugares, o
“espetáculo” da fé: mulheres e homens, santas e santos, iam ao encontro das
feras famintas, dando testemunho do Cristo ressuscitado, numa alegria que
causava espanto e admiração.
Em
nossos tempos, o “espetáculo” da fé acontece nas marchas pra Jesus, nas
caminhadas com Maria, nos tapetes para o Cristo eucarístico, nas jornadas
mundiais da juventude, nos shows dos cantores católicos e evangélicos e nos
demais grandes eventos das Igrejas. Jesus não pediu nada disso, mas é muitas
vezes somente isto que a maioria dos cristãos sabe fazer. É mais cultura que
fé, menos testemunho e mais visibilidade midiática.
Durante o tempo em que a Igreja estava aliada aos poderes
humanos, a liberdade foi praticamente sufocada, dando lugar à rigorosa
disciplina eclesiástica que, por sua vez, deu origem à virtude mais destacada
da cristandade: a obediência. A partir do evangelho de Jesus, a liberdade não é
contrária à obediência, mas quando esta não está orientada pelo evangelho,
então termina sufocando aquela. Na cristandade, obediência era sinônimo de
obediência aos superiores hierárquicos: os leigos obedecem aos padres, estes
aos bispos, e nas ordens e congregações religiosas, a palavra dos superiores
correspondia à vontade de Deus.
“Manda quem pode, obedece quem tem
juízo!”: este ditado explica a obediência na cristandade. A
desobediência era punida com rigor. O direito eclesiástico foi criado em função
da punição aos desobedientes. Fazer a vontade de Deus era cumprir as ordens
oriundas dos superiores. Havia toda uma teologia da obediência para legitimá-la
perante os subalternos. Para avançar no caminho de santidade, o fiel e o
clérigo deveriam crescer na virtude da obediência.
Em
síntese, podemos afirmar sem medo de nos equivocarmos: em nome da obediência,
durante toda a cristandade, sufocaram a liberdade. Quem ousasse ser livre era
considerado subversivo. Para ser padre, o seminarista tinha que ser obediente e
para ser bispo, o padre precisa trilhar o mesmo caminho. Neste sentido,
considerava-se a obediência a maior virtude de Jesus, que deveria ser imitada
por todos, mas com uma pequena e fundamental diferença: Jesus obedeceu a Deus,
e na Igreja a obediência era devida aos homens.
Quando apareceu a chamada era moderna, a situação na
Igreja piorou: a liberdade passou a ser considerada coisa do demônio porque era
vista como ocasião para o pecado. A liberdade leva ao pecado, a obediência à
santidade: este era o pensamento que dominou a Igreja. Os modernos recuperaram
a liberdade concebida na Grécia antiga. O Renascimento e as grandes revoluções
posteriores (Revolução Francesa, Industrial e outras) fizeram reaparecer o tema
da liberdade com força e veemência.
A
Igreja foi contrária e se prejudicou bastante com isso. O Concílio Vaticano I
foi como que uma resposta à liberdade dos modernos: o papa, em Roma,
reivindicou para si a infalibilidade. Isto queria dizer o seguinte: o papa é
infalível e é representante de Deus na terra, portanto, todos devem obedecer às
suas determinações. E o pior, não se trata de mera declaração, a infalibilidade
papal é dogma, ou seja, verdade de fé que não pode ser questionada.
Algo
muito curioso: tal dogma não é coisa da Idade Média, mas da era moderna. Em
plena modernidade, um homem define que não falha! Quem se opuser a este dogma,
assim como aos demais, sendo católico, é excomungado da Igreja. Hoje,
considerando o contexto e o conteúdo deste dogma, não se fala do mesmo. Em
Roma, o papa Francisco se declara pecador como todo católico, demonstrando
falta de interesse pela infalibilidade. Parece que o papa compreende o seu
lugar na Igreja.
Com
a queda das monarquias e o aparecimento das repúblicas em quase todo o mundo, a
Igreja assistiu a muitas revoluções e insurreições, que clamavam e ainda clamam
por liberdade. Depois que inúmeras instituições abraçaram a liberdade em suas
declarações e discursos, menos que em suas práticas, também a Igreja, a partir
do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), tardiamente, resolveu assumi-la como
valor fundamental para a defesa e a promoção da dignidade humana, passando a
ser uma defensora das liberdades públicas e individuais.
A
liberdade na relação entre os leigos e o clero
O Vaticano II é
o divisor de águas na reflexão sobre a liberdade entre os leigos e o clero:
antes do Concílio, a relação era pautada na mera obediência, como indicamos
acima. Após o Concílio e até os dias atuais, ainda há resquícios da mera
obediência. Hoje, clérigos experientes e jovens continuam reclamando a
obediência dos leigos.
Acusam
o Vaticano II de ter provocado uma desordem na Igreja. Por trás desta acusação
está o desejo de controlar os leigos, infantilizando-os, manipulando-os em sua
consciência. Em tempos pós-modernos, a satisfação desse desejo se torna cada
vez mais difícil, pois as pessoas não se deixam mais controlar com tanta
facilidade.
Não estamos defendendo uma insurreição dos leigos contra
os clérigos porque isto seria diabólico, mas vislumbramos um tratamento digno
dos clérigos em relação aos leigos. Aqueles precisam tomar consciência de que
estes não são empregados da Igreja, nem meros voluntários, nem subalternos, mas
irmãos e irmãs no Cristo Jesus.
Os
leigos são cristãos, filhos e filhas de Deus, sacerdotes e sacerdotisas pelo
batismo, missionários e missionárias da Boa Notícia do Reino de Deus e
constituem a maioria dos membros da Igreja. Em tempos de cristandade se dizia e
se praticava a ideia de que os leigos somente servem para colaborar na missão
do clero. Hoje, sabemos da gravidade deste erro, pois a missão do leigo não
está em função do clero, mas da edificação do Reino de Deus no mundo.
Infelizmente, por parte de muitos leigos existe um medo
terrível do clero. Aqueles pensam bem as palavras quando vão dirigi-las a um
clérigo, como se este fosse a encarnação do próprio Deus e/ou conhecedor de
todas as coisas. Isso é resquício da cristandade, época na qual os leigos se
ajoelhavam diante dos clérigos maiores e beijavam piedosamente a mão,
pedindo-lhes a bênção.
A
batina preta e o hábito religioso além de imporem autoridade, também impõem
medo. Ser “respeitado” pela força de tais usos: eis a explicação para o fato da
maioria dos clérigos que os utilizam. Não são respeitados, mas temidos. Leigos
medrosos somente reforçam a existência de clérigos autoritários; aqueles
conferem a estes um poder que, na verdade, não existe. Por isso, leigos e
clérigos precisam tomar consciência de sua missão na Igreja e no mundo, a fim
de que acabe de vez por todas essa cultura do controle e da suspeita que ainda
insiste em sobreviver no seio da Igreja.
A
liberdade na Igreja após a eleição do papa Francisco
Não poderíamos finalizar nossas considerações sem
oferecermos uma palavra a respeito da liberdade na Igreja após a eleição do
papa Francisco. Desde o início do seu pontificado, seus gestos e palavras tem
entusiasmado inúmeras pessoas em todo o mundo, tanto dentro quanto fora da
Igreja.
Há
um clima de alegria e de abertura, que não existia nos pontificados dos papas
João Paulo II e Bento XVI. Não é nenhuma novidade o fato de que estes dois
papas reforçaram a disciplina e o fechamento da Igreja em relação ao mundo. Nenhuma
pessoa dotada de bom senso nega isso.
No que se refere ao papa Francisco há algo curioso a ser
considerado. Não se trata de um papa conservador, nem libertador, mas de um
moderado. Temos observado que ele não toca em questões emergentes que são fruto
de muita discussão na Igreja há muito tempo, principalmente desde o Vaticano
II: o fim do celibato obrigatório dos padres; a ordenação de mulheres; a forma
de nomeação dos bispos, entre outras questões que precisam ser revistas.
Quanto
à moral sexual da Igreja, alguns de seus pontos mais críticos continuam
intocáveis. Um exemplo para ilustrar: o papa não condena os homossexuais e
defende que sejam respeitados e acolhidos, mas o ensinamento de que eles estão
em pecado grave e que por isso não podem receber a eucaristia não é tocado,
permanecendo válido o que diz o Catecismo da Igreja.
Em matéria de diálogo, apesar do esforço do papa
Francisco, algumas sanções injustas continuam acontecendo na Igreja.
Recentemente, ocorreu uma no Brasil. Trata-se do caso do Pe. Roberto Francisco
Daniel, conhecido como Pe. Beto, da Diocese de Bauru – SP, excomungado da
Igreja. Em pleno séc. XXI, um padre é excomungado da Igreja sem que tenha
havido autêntico diálogo entre a Instituição e o acusado.
O
Vaticano confirmou a excomunhão do Pe. Beto. Não se trata de um padre qualquer,
mas de um homem gabaritado, formado em radialismo, direito, história, teologia
e ética. Seus questionamentos são fundamentados e mereceriam a atenção da
Igreja. A excomunhão do Pe. Beto pode ser compreendida na seguinte sentença: Na
Igreja, quem pensa diferente corre um grande risco: ou de ser perseguido e
morto (o que era mais comum na Idade Média, no tempo da Inquisição), ou de ser
excomungado.
O caso do Pe. Beto e de tantos outros constituem prova
evidente de que a liberdade não é muito bem-vinda na Igreja. Esta continua
praticando o que condena no discurso oficial: a condenação do outro sem dar a
este o direito de defesa. A injusta condenação de pessoas se tornou prática comum
em muitos segmentos da vida da Igreja. Parte-se da ideia de que todo acusado é
culpado e que, por isso mesmo, não precisa ser escutado.
E
mesmo que o acusado seja, de fato, culpado, não se pratica o ensinamento de
Jesus: o perdão das ofensas; preferindo a condenação porque acreditam que esta
resolve o problema. Neste sentido, impera também na Igreja o que acontece na
sociedade dominada pelo ódio: a cultura da eliminação do outro. Nesta cultura
da eliminação a regra é clara: quem é considerado inimigo tem que ser
eliminado!
Jesus
de Nazaré ensinou que se praticasse o oposto disso, ensinou o amor
incondicional ao próximo, inclusive aqueles considerados inimigos; mas,
infelizmente, na hora da condenação terminam se esquecendo, propositadamente,
do ensinamento de Jesus e colocam em prática as leis criadas pelo homem, que
não justificam ninguém diante de Deus. Até quando a Igreja vai agir dessa
forma? Até quando irá agir de forma contrária ao evangelho de Jesus, Deus
encarnado entre os pecadores?...
Tiago de França
Obs.: Na foto que acompanha este artigo, o papa João Paulo II aparece repreendendo, publicamente, o Pe. Ernesto Cardenal, quando de sua visita a Nicarágua.