quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O itinerário da conversão

 


“Que é o homem, para que nele penses, e o ser humano, para que dele te ocupes?” (Sl 8,5)

            A conversão é uma exigência fundamental do seguimento de Jesus. Partindo dessa premissa, a presente reflexão visa oferecer algumas provocações sobre o tema da conversão na vida cristã e eclesial. Essa indagação do Salmo 8, transcrita acima, revela a porta de entrada do processo de conversão: o reconhecimento da fragilidade e da pequenez do ser humano.

Sem reconhecer-se pecador, não é possível iniciar o itinerário da conversão. Mas é preciso considerar um dado importante, que antecede a esse reconhecimento: o Senhor chama e, imediatamente, concede a graça do reconhecimento da fragilidade e da pequenez humanas. Na oração e na escuta dos sinais que vão se manifestando no cotidiano da vida é possível identificar a acolher essa graça.

            Isso significa que a iniciativa da conversão é de Deus. Sozinha e entregue às próprias forças, nenhuma pessoa consegue trilhar o caminho da conversão. Deus chama e concede a graça de iniciar e perseverar no caminho. Em outras palavras, a conversão de uma pessoa não é resultado de mérito pessoal, mas da abertura permanente à ação da graça de Deus. Esta graça não atua de forma mágica, nem está submetida aos caprichos humanos. A graça é dom do Espírito de Deus, que age no tempo marcado por Deus. É Deus quem conhece o momento de todas as coisas, quem direciona a pessoa para a verdadeira felicidade. Pe. Cícero de Juazeiro costumava dizer que “Deus conduz o homem por caminhos que somente Ele conhece”.

            Em muitos casos, o Espírito infunde na pessoa, de forma extraordinária, a graça. Essa efusão provoca um despertar para Deus. De repente, a pessoa passa a enxergar a vida de outra maneira. Não se trata de momento mágico, que possa ser experimentado mediante uma invocação voluntária da pessoa, como se esta tivesse o poder de controlar a ação do Espírito. Deus não pratica magia. O seu agir é discreto, silencioso e amoroso. A ação da sua graça faz a pessoa enxergar a si mesma, suas potencialidades e limites, luzes e sombras. Esse despertar é pura ação da graça de Deus, jamais obra humana.

            Mas Deus não age de forma forçada. Sem a cooperação da vontade humana ninguém muda de vida. O querer humano é importante, e Deus espera a manifestação do desejo de mudança. Santo Agostinho dirá, sabiamente: “Aquele que te criou sem ti, não te salvará sem ti”. Esse santo do séc. V é um exemplo de homem que soube acolher a graça divina para trilhar o árduo e feliz itinerário da conversão.

Santo Agostinho não nasceu santo. Aliás, ninguém nasce santo, mas todos recebem o chamado à santidade. Os que respondem, generosamente, a esse chamado, inevitavelmente, trilham o caminho da conversão. Os santos e santas de Deus são pessoas convertidas, que aceitam o desafio da santidade e se deixam lapidar pela ação da graça divina. Essa graça, que é dom do Espírito, é concedida na liberdade e para a liberdade. Deus não age de forma impositiva. A pedagogia divina, revelada nas Escrituras Sagradas, mostra que Ele seduz a pessoa, com a força da sua graça, e a conduz à vida plena.

No caminho da conversão, o cristão cai e se levanta. Não há cristão convertido que não volte a pecar, aqui e acolá. Isso ocorre porque ninguém é perfeito. O Espírito não anula, nem substitui a natureza humana, corrompida pelo pecado. O apóstolo Paulo explicita bem a condição humana ao afirmar o seguinte: “Sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não habita: querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem, que quero, e faço o mal, que não quero” (Rm 7,18-19). Não adianta aparentar perfeição, nem se manifestar superior aos outros, porque tais atitudes são, por si mesmas, pecaminosas.

No caminho de Jesus não se caminha sozinho. O itinerário da conversão é, essencialmente, comunitário. Jesus realizou a sua missão contando com a fraterna colaboração de seus discípulos. Sozinho e isolado ninguém muda de vida. A conversão acontece mediante o exercício da caridade: ajudando-se uns aos outros, o itinerário se torna menos pesado e mais suave. Saindo de si mesmo para viver em fraternidade, as potencialidades são ativadas e desenvolvidas; a transformação acontece, sem atropelos. É para viver em comunidade que o cristão se converte. Portanto, quem trilha o caminho da conversão se afastando dos outros, encontra-se numa profunda contradição.

Arrogância, espírito de superioridade, mania de grandeza, competitividade, mundanismo espiritual, e outras manias e males que caracterizam uma falsa espiritualidade cristã, não fazem parte do itinerário da conversão. Os que se encontram nesse itinerário se tornam mansos, alegres, generosos, disponíveis, íntegros, amigos, humildes, desapegados, abertos aos outros, capazes de amar. Trata-se de um processo gradativo, que exige paciência, perseverança, fé e entrega. Para avançar no itinerário da conversão, a pessoa precisa ser como o barro nas mãos do oleiro (cf. Jr 18,1-6). Nas mãos de Deus, o oleiro fiel, a pessoa está segura e poderá, deixando-se moldar, transformar-se naquilo que Deus quer: uma nova criatura, conformada a Cristo Jesus.

Atualmente, assiste-se a uma crescente desumanização da pessoa humana. Vive-se uma grave crise civilizacional. O individualismo, o relativismo e o materialismo destroem a dignidade da pessoa humana. O capitalismo selvagem não considera, nem respeita essa dignidade, mas coisifica as pessoas, instrumentalizando-as. Os bens materiais passam a ter mais importância que as pessoas.

A pandemia do novo coronavírus, apesar de ter ceifado a vida de milhares de pessoas, parece não ter sido suficiente para tornar inúmeras pessoas mais sensíveis e humanas. Muitas vezes, o sofrimento é incapaz de despertar a compaixão e a solidariedade. O itinerário da conversão gera nas pessoas sentimentos de compaixão e ternura, impulsionando-as à ação amorosa e transformadora. Para ser transformada, a sociedade precisa de pessoas mais justas e fraternas, mais cordiais e verdadeiramente humanas. O mundo carece, urgentemente, dessas pessoas.

Tiago de França

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