Introdução
Na Igreja, o mês de agosto é
denominado como mês vocacional, pois
nele se reflete o tema da vocação. Por ocasião do Dia do Padre, 04 de agosto,
escrevi uma reflexão sobre a vocação do padre, agora ofereço uma breve reflexão
sobre a vocação episcopal, ou vocação do Bispo na Igreja. Há uma vasta
bibliografia a respeito do tema, especialmente nos documentos oficiais da
Igreja, mas não quero entrar nos pormenores teológicos, mas apenas frisar a
vocação episcopal a partir do Documento de Aparecida, do discurso do Papa
Francisco ao comitê que coordena o Conselho Episcopal Latino-americano, assim
como a partir da realidade da Igreja, dando ênfase ao testemunho de alguns
Bispos. São apenas algumas provocações.
1. Servidores do
Povo de Deus
O Documento de Aparecida (DA), no
capítulo V, dedica os números 186 a 190 ao tema da vocação dos Bispos na
Igreja. Eles são chamados a serem discípulos missionários de Jesus Sumo
Sacerdote. Eis, sinteticamente, o que fala o DA a respeito da vocação
episcopal, nos números mencionados acima. A respeito dos Bispos, afirma-se que:
-
São sucessores dos apóstolos, junto com o Papa; discípulos e membros do Povo de
Deus; mestres da fé e responsáveis por velar e promover a fé católica;
-
Chamados a viver o amor a Jesus na oração, na doação de si mesmos, na promoção
da caridade e na santificação dos fieis; a ser testemunhas próximas e alegres
de Jesus Cristo, Bom Pastor; a fazer da Igreja “casa e escola de comunhão”; a
ser pastores e guias das comunidades; animadores da comunhão; pais e centros de
unidade; a servir o Povo de Deus, conforme o coração de Cristo Bom Pastor, e a
seguir Jesus na comunhão da Igreja; a ser pais, amigos, irmãos, abertos ao
diálogo; a ter uma união constante com Jesus; a promover os vínculos de
colegialidade que os unem ao Colégio Episcopal; a ser testemunhas da esperança,
pais dos fieis, especialmente dos pobres; a ser princípios e construtores da
unidade na Igreja particular e santificadores do povo.
Os documentos oficiais explicitam
pormenorizadamente cada um destes aspectos, que constituem a vocação do Bispo
na Igreja. Como se vê, trata-se de aspectos simples, compreensíveis a qualquer
pessoa de bom senso. A insistência no Cristo Bom Pastor é o que chama a atenção,
além do aspecto do serviço que se expressa na doação. Um terceiro aspecto que
merece algumas considerações se refere à questão da unidade. Vamos comentá-los,
brevemente.
2. O Bispo como
discípulo missionário de Jesus, Bom Pastor
Antes de tratarmos do Cristo, Bom
Pastor, é preciso considerar que na história, principalmente no período da
Idade Média até o Concílio Vaticano II, o Bispo perdeu sua configuração com o
Cristo, Bom Pastor. Em outras palavras, o Bispo na Igreja se tornou um
príncipe, não um pastor. Príncipes são caracterizados pelo poder, pelo
prestígio e pela riqueza. Por isso, como alguns até hoje residem, durante todo
este período, os Bispos residiam nos palácios episcopais e, portanto, viviam
vida luxuosa, salvo raríssimas exceções. Assim sendo, foram tomados pela psicologia dos príncipes, ou seja,
passaram a ter mentalidade, a se enxergar e a se comportar como príncipes.
Isto significa que os Bispos não
tinham as mínimas condições de se tornarem discípulos missionários de Jesus,
Bom Pastor. Configurar-se a Jesus é, necessariamente, ter a coragem de ser como
Jesus: pobre, livre, missionário e doador da própria vida. Até hoje,
muitos Bispos estão longe de serem pobres, livres, missionários e capazes de
doar a própria vida como fez Jesus. O Cristo Bom Pastor, segundo o evangelho de
João, é bom não porque somente é dócil, mas porque conhece suas ovelhas, cuida
delas e é capaz de dar a vida por elas. Configurar-se a este Cristo significa
fazer a mesma coisa. Não há meio termo. Não há outra interpretação autêntica
senão essa.
Isto é o que ensina a genuína teologia
do ministério episcopal. E na prática, como a mesma se expressa? Para
identificar-se e configurar-se com o Cristo, Bom Pastor, o Bispo precisa ir ao
encontro do rebanho. Sair de si mesmo e ir ao encontro das pessoas, sem medo de
se expor. Não há pastoreio sem que o pastor saia à procura das ovelhas,
principalmente das ovelhas perdidas da
casa de Israel, como fez Jesus (cf. Mt 15, 24).
O lugar do Bispo não é no palácio,
ficando a espera das pessoas em um confortável gabinete, mas seu lugar é no
meio do povo, lá onde o povo se encontra, na periferia do mundo. O
povo precisa contar com a presença do Bispo em seu meio, como
alguém próximo, não como uma autoridade distante, que somente aparece nas
grandes cerimônias rodeadas por padres e demais autoridades civis. É no meio do
povo que o Bispo fará a experiência de Jesus. Desde sempre e principalmente
hoje, é incompatível com o evangelho de Jesus um Bispo residir em um palácio,
tendo vida luxuosa.
3. O Bispo como
servidor do povo de Deus
A Igreja é chamada a ser Povo de
Deus. Portanto, servindo ao Povo de Deus, o Bispo está servindo à Igreja,
edificando-a na verdade e na caridade. A legitimidade do ministério episcopal,
assim como dos demais ministérios na Igreja, encontra-se no serviço ao povo de
Deus. É um desserviço à Igreja a atuação de um Bispo que não procura pautar seu
ministério no amor às pessoas, especialmente aos pobres. O oposto do serviço se
encontra no apego ao poder, que se expressa, na maioria das vezes, nas alianças
com os ricos, tendo em vista os interesses pessoais e corporativistas.
Servir acarreta sacrifícios e
riscos. Não é muito cômodo se colocar a serviço do próximo. Trata-se de uma
atitude que exige paciência, compreensão, ousadia, coragem e perseverança. Os
riscos inerentes à missão podem levar à doação da própria vida. Uma vez
entregue sem reservas ao serviço do povo santo e fiel, o Bispo é chamado a
levar sua missão até as últimas consequências, confiando no auxílio da graça
divina. Trata-se de uma entrega livre e gratuita, fecunda e santificadora. É
doando a própria vida que o Bispo santifica o povo de Deus. O exercício da
profecia integra o ministério do Bispo na Igreja e esta carece, mais do nunca,
de Bispos profetas.
4. O Bispo como
promotor da unidade da Igreja
O discurso da unidade na Igreja
esconde alguns perigos. O primeiro deles se refere ao fato do Bispo se
comportar como comandante e não como guia de sua Igreja particular. O
ministério episcopal não é função de mando, mas missão eclesial. O Bispo não é
um superintendente de uma empresa, na qual todos devem se submeter a ele. A
submissão é, essencialmente, antievangélica. Nenhum Bispo deveria recorrer à
submissão para ser respeitado, pois os que assim procedem não o são. Bispos
autoritários são temidos, não respeitados.
O segundo perigo, que é consequência
do primeiro, se refere ao fato de que, ao invés de unidade o que ocorre, na
maioria dos casos, é uniformidade. Na
vida eclesial, o perigo da uniformidade sempre se fez presente. Recentemente,
este perigo se transformou em um dos maiores males da Igreja. Os pontificados
de João Paulo II e de Bento XVI foram marcados por fortes apelos à
uniformidade. Esta consiste na tendência de uniformizar a Igreja, ou seja,
determinar padrões rígidos de comportamentos que tendem a eliminar todo esforço
de se reconhecer a legitimidade da diversidade e da pluralidade na vida
eclesial. Todo Bispo precisa ter em mente a eclesiologia pós-Vaticano II, que
reconhece a pluralidade na Igreja como obra do Espírito que a guia na história.
A uniformidade tende a definhar a Igreja, desfigurando-a e tornando-a ineficaz.
A uniformidade é consequência do uso
do controle
sobre as pessoas e organismos eclesiais. O Bispo missionário evita cair na
tentação do controle e da manipulação. Neste sentido, seu ministério está a
serviço da liberdade dos filhos de Deus, que se expressa na manifestação da
diversidade dos carismas que edificam a Igreja. Não há verdadeiro serviço
eclesial sob sanções controladoras.
A missão eclesial acontece na liberdade
e é a serviço desta que o Bispo é chamado a ser colocar. Somente Bispos
inseguros e frustrados se deixam levar pela tentação do controle e da
manipulação, pois carecem de demonstrar seu poder através da força que seu
encargo oferece, juridicamente falando. De modo geral, estes Bispos só são
queridos por aqueles que são beneficiados pelo seu poder controlador e
manipulador. O povo repudia e despreza aqueles que fazem usos de tais recursos.
5. O perfil do
Bispo segundo o Papa Francisco
Por ocasião da Jornada Mundial da
Juventude 2013, o Papa Francisco aproveitou para dirigir a palavra aos Bispos
que compõem o comitê coordenador do Conselho Episcopal Latino-americano
(CELAM). No final de sua fala, fez questão de expressar o que pensa a respeito
da vocação episcopal. Segundo Francisco, na Igreja os Bispos são chamados a
ser:
-
guias, não comandantes; homens que amem a pobreza interior (liberdade diante do
Senhor) e exterior (simplicidade e austeridade de vida); que não tenham “psicologia
de príncipes”; que não sejam ambiciosos; que sejam esposos de uma Igreja sem
viver na expectativa de outra; capazes de vigiar sobre o rebanho; atentos aos
perigosos que ameaçam o rebanho; capazes de sustentar com amor e paciência os
passos de Deus em seu povo; que ocupem seu triplo lugar (atrás do povo, no meio
do povo e à frente do povo).
Literalmente, estas foram as
afirmações que expressam as convicções de Francisco a respeito da missão do
Bispo na Igreja. Pelo que se vê, são afirmações que estão em plena sintonia com
a teologia do ministério episcopal e que apontam para a necessidade de Bispos
mais próximos do povo de Deus, mais preocupados com as lutas cotidianas deste
povo. Antes de concluir sua fala, Francisco apresentou uma grave constatação: “Não quero juntar mais detalhes sobre a
pessoa do Bispo, mas simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta
afirmação, que estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica”.
Com esta afirmação, Francisco reconhece que os Bispos andam bem atrasados em
matéria de conversão pastoral.
Antes de concluir o discurso, o Papa
ainda insistiu: “Desculpem a desordem do
discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa vocação de
servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se exerce e mostra
a autoridade: na capacidade de serviço”. O que chama a atenção é este “lhes peço, por favor” do Papa, que
demonstra séria preocupação com a atual situação do ministério dos Bispos na
Igreja. De fato, se exerce e se mostra a autoridade na capacidade de serviço do
ministro. Fora do serviço ao povo santo e fiel não há autoridade legítima. É hora
dos Bispos levarem mais a sério esta advertência papal, especialmente aqueles
que não andam muito preocupados com o sofrimento dos pobres.
6. Dom Oscar
Romero, pastor e mártir
Antes de apresentar as
considerações finais desta breve reflexão sobre o ministério episcopal, quero,
brevemente, falar da importância do testemunho profético de Dom Oscar
Romero. Este grande Bispo da Igreja foi profeta em El Salvador na América
Central. Nasceu em 1917 e foi assassinado em 24 de março de 1980. Inicialmente,
conservador e por este motivo, naquela ocasião, foi eleito Bispo. Diante das
atrocidades cometidas pela ditadura militar que tomou o país, Dom Oscar Romero
se deixou guiar pelo Espírito do Senhor e ouviu o clamor das vítimas,
colocando-se a serviço da libertação do povo de Deus.
A Igreja necessita de Bispos
profetas. O profeta é um homem guiado somente pelo Espírito do Senhor,
portanto, despojado de hipocrisia e de toda espécie de apego ao poder. O profeta
anuncia vigorosamente a Palavra de Deus para a vida e liberdade de seu povo. Não
está em função da instituição, mas da vida e da liberdade do povo de Deus.
Oscar Romero não tinha medo da morte porque acreditava na ressurreição. De fato,
foi morto e está vivo na vida do povo salvadorenho.
Oscar Romero doou sua vida pelo anúncio
do evangelho de Jesus e pelas grandes causas do Reino de Deus. É um profeta do
Reino de Deus. Tornou-se, assim, modelo de Bispo de que a Igreja tanto
necessita; modelo de homem que não procurou salvar a própria vida, mas
entregá-la por causa de Jesus e seu evangelho. Por isso, Oscar Romero
encontrou-se com Jesus e com Jesus permaneceu unido até sua participação no
sangue derramado na cruz. Com Cristo morreu e com Cristo ressuscitou. Foi um
operário da messe do Senhor. Tornou-se amigo de Deus. Na Igreja, o Bispo,
mestre da verdade que liberta, deve ser um amigo de Deus.
A modo de
conclusão
Os conceitos, a realidade e os
testemunhos de alguns Bispos da Igreja revelam a urgente necessidade de termos
novos Bispos. Novos Bispos na linha do evangelho, como o foram Oscar Romero,
Helder Câmara, Luciano Mendes, Aloísio Lorscheider, Enrique Angelelli, Antônio
Fragoso, entre outros que já morreram ou foram assassinados por causa da
justiça do Reino. Dos antigos, ainda restam alguns vivos, como Pedro
Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns, Tomás Balduíno, José Maria Pires e outros. No
quadro atual do episcopado brasileiro, alguns se destacam na luta pela justiça,
como Erwin Kräutler, Flávio Cappio, Edson Damian e alguns outros.
Estes Bispos são homens de
convicções profundas e enraizados no evangelho de Jesus; não temem a morte nem
aqueles que estão a serviço do esquadrão da morte. Vivem sob a guia do Espírito
do Senhor, que os mantém na fidelidade ao evangelho que anunciam. O testemunho
deles é uma prova de que, de fato, é possível termos Bispos sem a chamada “psicologia
de príncipes”, apontada pelo Papa Francisco.
Em outra ocasião, tratarei de um importante
acordo feito por quarenta Bispos após a realização do Concílio Vaticano II,
denominado Pacto das Catacumbas, celebrado no dia 16 de novembro de 1965,
junto à catacumba de santa Domitila, em Roma. Dom Helder Câmara, juntamente com
outros Bispos brasileiros, participou desta importante celebração.
O Pacto das Catacumbas é de suma importância
para entendermos o espírito evangélico com o qual alguns Bispos doaram sua vida
pelas grandes causas do Reino de Deus. Resta-nos pedir a Deus que envie bons
Pastores à sua Igreja e que Francisco, Bispo de Roma e cabeça do Colégio
Episcopal, possa rever a forma como são nomeados os Bispos na Igreja, a fim que
o Espírito do Senhor possa agir com mais liberdade.
Tiago de França
da Silva
Desde Belo
Horizonte – MG, 15 de agosto de 2013.
No dia da
Assunção de Nossa Senhora.
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