domingo, 3 de novembro de 2013

A santidade no século XXI

“Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14).

            Houve uma época na história do Cristianismo em que os seguidores de Jesus identificaram-se de tal modo com seu estilo de vida que eram capazes de dar a própria vida como ele, enfrentando as ameaças e perseguições por parte dos mandatários do império romano. Toda a Igreja dos primeiros séculos foi assim: regada pelo sangue dos mártires, mulheres e homens que experimentaram no corpo as consequências da fidelidade a Jesus. Ser santo é ser fiel a Jesus.

            A fidelidade a Jesus se traduz na adesão ao seu projeto de humanização das pessoas. Isso não é comunismo, não é ideologia, é evangelho de Jesus. Este Jesus, crucificado e ressuscitado é a Luz que liberta das trevas da ignorância e do erro todo aquele que se dispõe à libertação. O santo de Deus é um iluminado, atingido pela luz de Jesus. É alguém capaz de oferecer aos outros essa luz, tornando-a visível, colando-a sobre os telhados. O santo reflete em sua vida a luz de Jesus.

            Na Idade Média, os santos foram fieis à sua época: contemplaram a Deus na vida monacal. Reservaram-se do mundo, distanciando-se dele. Eram ascéticos, disciplinados, virtuosos, orantes. Os grandes místicos eram assim: pessoas altamente compenetradas na contemplação. Enquanto alguns clérigos procuravam manter os privilégios da Igreja, os místicos estavam diante de Deus perguntando-se a respeito de sua vontade. Muitos não foram escutados, reconhecidos, vistos, mencionados; caíram no sagrado anonimato, no esquecimento da memória eclesiástica, mas permanecem vivos na memória do Deus que os chamou à perfeição.

            Karl Rahner, grande teólogo jesuíta, em algum lugar afirmou, no século passado, que os cristãos do sec. XXI seriam místicos, ou não seriam cristãos. De fato, o mundo atual é marcado por um barulho dispersivo, pela crise de identidade, que geram indiferença e ódio. Os santos não podem mais seguir as trilhas da contemplação monacal. Até os monges de hoje estão no meio do mundo, mesmo experimentando o silêncio exterior de seus monastérios. A humanidade está clamando por libertação e os cristãos, os santos de Deus, precisam ser sal e luz em meio ao azedume da mesmice, do engano, da mentira, da ilusão e da violenta exploração do homem pelo homem.

            Lavar e alvejar as vestes no sangue do Cordeiro: eis as palavras que traduzem com perfeição a vida genuinamente cristã. Ser fermento na massa, fazer crescer a semente de mostarda que de tão pequena se transforma na árvore da vida. O Reino precisa crescer, não pela mera força humana, frágil e errante, mas pela força de Deus que circula nas veias dos santos. Francisco, Terezinha, Pe. Cícero, Dorothy, Margarida, Oscar, Helder, Gandhi, Luther King, Bonhoeffer, Comblin, Fragoso, Ibiapina, Damião e tantas outras testemunhas da Ressurreição estão no mundo, silenciosamente, fazendo germinar, discretamente, o Reino de Deus.

            São os pobres, os aflitos, os mansos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros, os promotores da paz, os perseguidos e injuriados: eis os santos de Deus. Estes são os construtores do Reino, que, cotidianamente, lavam e alvejam as vestes no sangue de Jesus, o Cordeiro de Deus. Na Igreja de nossos dias, o sangue do Cordeiro está na mesa do altar e nas lutas do povo; muitos o recebem nas espécies sagradas, mas se recusam a agir impulsionados pela mensagem o Cordeiro. A Eucaristia parece que não consegue frutificar na vida. Falta o testemunho diário, ousado, profeticamente transformador.

            Quem são, portanto, os santos do séc. XXI? São mulheres e homens que escutam a palavra de Jesus e se arriscam ao anunciá-la e praticá-la na vida. A maioria está fora da religião oficial: vive a experiência de Jesus, que não era doutor da lei nem fariseu, mas um pobre homem, considerado um clandestino, subversivo e agitador político. A religião tenta sacralizar Jesus e os santos, mas não consegue. Eles sempre escapam e o motivo é simples: Jesus foi conduzido não pelo imperativo categórico da lei, mas pelo Espírito, que é livre e libertador.

Os santos trilham o mesmo caminho: deixam-se guiar pelo Espírito que conduz à liberdade. Como na religião a liberdade não é bem aceita, então a maioria dos santos está fora dela. Os que se encontram nela são considerados loucos e desobedientes, simplesmente porque são guiados pelo Espírito do Senhor e não pelas normas, prescrições e orientações oriundas da lei criada pelos eclesiásticos; lei que não salva nem liberta, mas somente prende e oprime. Os santos vivem o princípio bíblico da obediência a Deus e não aos homens. Isto se chama liberdade. Não há santidade fora da liberdade. Os santos são mulheres e homens em processo contínuo de libertação. As palavras que os orientam são: Espírito, novidade, liberdade e Reino de Deus. Estas palavras não se encontram na lei, mas no evangelho de Jesus. Por isso que um santo não vive em função da lei, mas guiado pela luz e pela força de Deus.


Tiago de França

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