Introdução
Deus nos chama ao amor: eis nossa vocação fundamental.
Este chamado é universal, ou seja, ninguém está excluído. Independentemente de
religião, cultura, condição social, cor e sexo, Deus nos chama. Outra
característica do chamado divino é que se trata de um apelo exigente, que
implica responsabilidade. O amor é exigente. Não se ama irresponsavelmente. O
cuidado é a característica fundamental do amor. Quem ama cuida, mesmo não
recebendo o mesmo cuidado. Aqui está a gratuidade do amor: A recompensa está no
simples ato de amar.
Por
isso, podemos afirmar com toda a segurança: Quem ama conhece a Deus e quem O
conhece já está salvo. Não há nenhuma abstração no amor, pois tudo acontece no
mundo real, no mundo da prática cotidiana. O amor é a religião por excelência
do ser humano. Não há comunhão com Deus fora do amor porque Deus é amor. Toda a
Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, é uma tentava feliz de se provar esta verdade
capaz de salvar toda a humanidade.
Onde
está a voz de Deus? Quem O escuta?
A Bíblia revela
que Deus nos chama através do clamor dos que sofrem. Em qualquer lugar do
mundo, onde um sofredor está gritando e gemendo de dor, aí está Deus se
manifestando. Quem fecha os ouvidos ao clamor dos sofredores jamais escutará o
chamado de Deus, nem O conhecerá. Onde estão os sofredores? Em primeiro lugar,
estão em nossas famílias. Se não formos egoístas, logo os enxergaremos. O
egoísmo nos torna cegos diante dos sofredores, começando pelos de nossas
famílias. Quantos sofredores abandonados pelos próprios familiares! Muitas
vezes, gostamos de aparecer sendo bons para os estranhos, enquanto nossos
parentes sofredores permanecem de mãos estendidas, pedindo-nos socorro em vão. Deus
está nos chamando ao amor dentro de nossas famílias.
Em segundo lugar, Deus também nos chama em nossas
Igrejas. Ainda há muita gente sofrendo, que não é escutada em nossas
comunidades. Somos tentados a ficar acomodados em nossos templos, orando ao
Senhor diante do Santíssimo Sacramento, enquanto Ele nos espera naquelas
famílias que não frequentam o culto. O amor efetivo não ocorre dentro de nossos
templos, por mais simpáticos e acolhedores que sejamos. A verdadeira acolhida
ocorre fora do culto. Inúmeros cristãos são abandonados porque não frequentam o
culto.
Há
uma tendência que virou natural em acolher e reconhecer somente os que
frequentam o culto, recebem os sacramentos e “pagam” o dízimo. “Vamos visitar a
dona Maria, pois está doente e frequentava nossa comunidade!”, sugerem os
piedosos. Se a dona Maria não frequentasse a comunidade, certamente não iria
ser visitada. Apesar da frequência, há muitos que também caem no esquecimento. Ocorre
também, em muitos casos, que se a dona Maria for uma senhora rica, financeiramente
falando, dificilmente será esquecida, inclusive pelo padre ou pastor da Igreja.
Em nossas Igrejas, os ricos possuem seus privilégios. Deus está nos chamando ao
amor através do grito dos pobres sofredores de nossas comunidades.
Em
terceiro lugar, o clamor dos sofredores pode ser ouvido nas ruas, praças,
avenidas, debaixo dos viadutos, nos albergues, na zona de prostituição, nas
periferias de nossas cidades. Geralmente, queremos distância dessas pessoas e
seus lugares, pois os consideramos impuros e indignos de nossa atenção. Muitas
vezes, nosso conforto não nos permite sair ao encontro dessas pessoas. Elas são
as chagas abertas de Jesus neste mundo, quer aceitemos, quer não. Em todas as
nossas cidades estas pessoas podem ser encontradas. São identificadas pela sua
aparência, são vítimas do nosso olhar desconfiado, do nosso desprezo e da nossa
falta de amor.
Costumamos
inventar todas as desculpas possíveis para não servi-las. A desculpa mais comum
é a de que são preguiçosas e aproveitadoras. Certa vez, um católico com uma
bela cruz no pescoço, ao sair da rodoviária de Belo Horizonte, ao se deparar
com vários moradores de rua, enquanto esperava o sinal de trânsito abrir, falou
em voz alta e com ar de desprezo: “Tinha que ter um jeito de colocar fogo nessa
raça de desocupados! Bando de inúteis!” Certamente, este católico estava
convencido de que fazia a vontade de Deus, frequentando o culto e usando uma
cruz no pescoço. Quando nos recusamos a buscar um mundo novo no qual haja mais
amor e, consequentemente, justiça e paz, estamos fechando nossos ouvidos ao
chamado divino. Deus está nos chamando em meio ao barulho ensurdecedor de
nossas cidades, através do clamor dos desesperados.
Amar
para ser livre
Vivemos num mundo
no qual as pessoas estão cada vez mais egoístas. A cultura da indiferença
ensina que cada um deve pensar somente em si mesmo, no próprio bem-estar. A
situação do outro não interessa. Para o egoísta, o outro é um meio para se
alcançar a satisfação pessoal. Aquele se utiliza deste para alcançar seus
objetivos. As palavras e gestos do egoísta expressam sua índole. Não há nenhuma
preocupação pelo bem comum. Se ele está bem, então tudo está bem.
O
curioso é que nossas Igrejas cristãs estão lotadas de pessoas escravas do
egoísmo. Elas não conseguem enxergar nenhuma incoerência entre o egoísmo e a fé
cristã. Algumas até desconfiam que, na verdade, não tem fé, mas aparentam
tê-la. Segundo o evangelho de Jesus não podemos ter dúvida: Ou temos fé em
Jesus e a explicitamos no amor a Deus e ao próximo, ou somos egoístas, vivendo
em função de nós mesmos. Fé e egoísmo são realidades incompatíveis.
Assim sendo, somos chamados por Deus ao amor para nos
libertarmos do egoísmo que nos conduz à indiferença. Somente o amor é capaz de
nos livrar deste grande mal que assola toda a humanidade. O amor nos concede
três dons fundamentais que nos mantêm longe do egoísmo: Primeiro, a abertura da
mente e do coração; segundo, a compreensão do outro e de seu contexto, e
terceiro, uma disposição permanente para a ação. Portanto, abertura,
compreensão e disponibilidade fazem com que o amor se transforme em uma
realidade efetiva e libertadora.
Fora
destes dons não é possível amar as pessoas. A abertura da mente e do coração
nos faz adquirir uma nova mentalidade e nos coloca numa atitude de acolhimento
do outro. A compreensão nos torna sensíveis à dor do outro, livrando-nos do
preconceito e do julgamento negativo que nos bloqueiam. A disponibilidade nos
conduz ao encontro generoso com o outro, mantendo-nos de pé, numa atitude permanente
de serviço. No egoísmo somos mesquinhos, tristes e infelizes; no amor somos
infinitamente generosos, alegres e felizes. No egoísmo há aparência de alegria
e felicidade.
A
experiência missionária de Jesus é uma prova de tudo isso, e o cristão é chamado
a amar como Jesus amou. É um desafio possível sob a luz e a força do Espírito
do Senhor. Jesus se dirigiu, em primeiro lugar, às pessoas que precisavam
urgentemente de seu amor: os pobres e pecadores excluídos. Amo-os até o fim, até
à morte de cruz. Amando-os, Jesus lhes devolveu a verdadeira alegria e paz. Libertas
no amor, as pessoas se tornaram discípulas missionárias do amor, semeando-o no
mundo. No amor descobriram o sentido da vida e a verdadeira felicidade;
descobriram também que somente no amor é possível ser verdadeiramente livres.
Por
uma Igreja verdadeiramente livre no amor
Após longas
décadas sob o regime da lei e das severas condenações, os cardeais resolveram
eleger, pela primeira vez na história da Igreja, um bispo latino-americano para
a Igreja de Roma. Escolheram um jesuíta que adotou o nome de Francisco. Desde
então, a Igreja vive uma nova primavera, após a que viveu com o feliz
pontificado do papa bom, São João XXIII. Francisco respira o Concílio Vaticano
II e tem buscado governar a Igreja segundo a esperança cristã experimentada na
América Latina. Os que são apegados à lei, aos dogmas, ao rubricismo litúrgico,
à interpretação exclusivista da Bíblia, ao carreirismo eclesiástico e às
vaidades, estão se sentindo sufocados porque estão sendo constantemente
denunciados pelo papa Francisco. Surpreendentemente, o papa tem denunciado os
males do mundo e da Igreja. Com gestos e palavras acertadas, denuncia a cultura
da indiferença que assola a humanidade e a hipocrisia religiosa que afeta a Igreja.
Apesar do apelo à conversão, poucas coisas tem mudado. As
estruturas são antigas e pesadas, e as pessoas insistem em marginalizar Jesus e
seu evangelho. O papa tenta convencer a todos que o lugar de Jesus é o centro.
É Jesus o centro da vida cristã, mas os que se fecham a esta verdade
imprescindível defendem que em primeiro lugar está o código de direito canônico.
Comportam-se como os fariseus que jogavam pesados fardos nas costas do povo,
sendo que eles mesmos não os moviam sequer com um dedo. Aqui está a hipocrisia
religiosa: Defendem leis contrárias ao evangelho de Jesus, impondo-as ao povo,
sendo que os hierarcas que as impõem são os primeiros a desobedecê-las; e
quando ousam obedecer, agem de forma autoritária e desonesta. Não é pequeno o
número de padres e bispos que agem dessa forma.
Há uma recusa sistemática à conversão pastoral,
estrutural e espiritual na Igreja. Em muitas partes do mundo, padres e bispos
barram, sem escrúpulo algum, qualquer gesto que aponte na direção das
indicações do papa Francisco. Isto ocorre, muitas vezes, de forma discreta e,
portanto, silenciosa. Na verdade, estes clérigos se sentem ameaçados em seu
poder, e por meio da imposição da disciplina e dos cargos que ocupam, buscam a
todo custo manter seus privilégios, barrando qualquer iniciativa,
principalmente as que são promovidas pelos leigos. Segundo estes clérigos, o
papa atual tem causado desordem na Igreja. Há até cardeais em Roma e em outras
sedes cardinalícias que se pronunciam neste sentido. Três são as características
desses clérigos: carreiristas, apegados ao poder, prestígio e riqueza, e,
geralmente, de conduta duvidosa.
É preciso louvar e agradecer a Deus pelos louváveis
testemunhos de padres e bispos, assim como de religiosos e leigos que, de fato,
amam o povo de Deus e procuram ser felizes no amor. Por outro lado, temos um
número preocupante de jovens que procuram a vida religiosa e sacerdotal com o
intuito de viver comodamente, gozando das seguranças materiais de uma vida rica.
Em um mundo marcado por crises, muita gente procura segurança na vida religiosa
e sacerdotal. Para serem aceitos se utilizam do velho e desgastado discurso de
que querem servir e não ser servidos. Imediatamente, após a ordenação ou
emissão dos votos perpétuos revelam suas reais intenções. Neste sentido, se
parecem com aqueles casais de namorados, que durante o namoro expressam muita
ternura e paixão, e depois que casam se transformam em pessoas frias e
opressoras. Na verdade, sempre foram frias e opressoras, mas de forma disfarçada.
Frieza e opressão não se escondem por muito tempo, cedo ou tarde se manifestam
nas pessoas desprovidas de amor. A Igreja só será, de fato, povo de Deus em
marcha na direção do Pai quando aprender a amar como Jesus amou: na liberdade e
para a liberdade.
Conclusão
O que podemos concluir
destas nossas reflexões é algo muito simples e profundo: Deus nos ama
através das pessoas. O amor de Deus não é abstrato. Quando nos fechamos ao amor
estamos, na verdade, nos fechando ao próprio Deus e à possibilidade de sermos
salvos por Ele. Para todos os nossos problemas pessoais, religiosos e sociais,
o amor é a solução. Quando amamos de verdade aprendemos a acolher, perdoar,
partilhar, compreender, abraçar, sentir com o outro, enfim, aprendemos a ser
com os outros. Não adianta buscarmos a solução no poder, no prestígio e na
riqueza. Estas coisas são ilusórias e passageiras, e geram pessoas superficiais
e infelizes. Que o Espírito do Senhor torne sensíveis nossa mente e nosso
coração, a fim de nos abrirmos ao amor, mas não ao amor das bonitas
declarações, mas ao amor de atos, amor que se expressa na solidariedade, no
cuidado do outro até às últimas consequências. Redescubramos, pois, o amor e
sejamos, de fato, felizes.
Tiago de França
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