No dia 16 de novembro
de 1965, portanto, há 49 anos, poucos dias antes do encerramento do Concílio
Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma Eucaristia nas
catacumbas de Domitila, em Roma. Após a celebração, assinaram o “Pacto das
Catacumbas”. Trata-se de um documento histórico, que dispensa maiores
comentários porque por si mesmo fala com clareza e objetividade de uma proposta
original, evangélica, audaciosa e profética.
Entre
os signatários estava Dom Helder Câmara, um dos grandes profetas da história da
Igreja no Brasil. O documento é dirigido aos bispos da Igreja Católica, um
convite para que todos possam se colocar no caminho de Jesus: caminho de
pobreza e de serviço ao povo de Deus. Os bispos que assinaram e que viveram
este importante pacto entraram para a história da Igreja como homens despojados
e livres, pastores zelosos do povo de Deus, que viveram na radicalidade
evangélica a opção pelos pobres.
Todos
os bispos da Igreja Católica, se quiserem, de fato, ser fieis ao evangelho de
Jesus e ao espírito do Vaticano II, precisam observar as orientações deste
pacto. Há, certamente, na Igreja de hoje bispos que praticam este pacto, com
humildade, simplicidade, zelo e discrição; mas é verdade também que há inúmeros
bispos que estão longe de praticá-lo, pois vivem apegados ao poder, ao
prestígio e à riqueza; vivem salvando a própria vida em detrimento da vida do povo
de Deus.
A
estes bispos, o pacto abaixo transcrito e as veementes exortações do papa
Francisco são um forte apelo à conversão episcopal. Os pobres do povo de Deus
clamam por autênticos pastores, que a exemplo de Jesus, deem a vida pelas
grandes causas do Reino de Deus. Muitos bispos precisam abraçar com humildade e
perseverança a cruz de Cristo nas lutas por justiça, na solidariedade com os
pobres. Precisam renunciar as amizades e alianças com os poderosos da sociedade
e seus projetos de morte. Precisam anunciar a Boa Notícia do Reino e denunciar
os crimes que ceifam a vida do povo.
Na
América Latina, dom Oscar Romero e tantos outros são exemplos inspiradores de
verdadeiros pastores, que assumem a promoção da justiça até as últimas
consequências. Gente do povo continua sendo perseguida, explorada e morta, onde
estão os pastores dessa gente? Como Jesus, é preciso que se busquem as “ovelhas
perdidas da casa de Israel”. Para isto, a opção pelos pobres deve ser uma
realidade na vida dos bispos. Sem ela não há conversão episcopal.
Por
fim, é hora de renunciar a “psicologia de príncipes” (expressão do papa
Francisco), assim como as manias de gente rica para se revestir do espírito de
Cristo, o bom pastor. Estão fazendo falta à Igreja do Brasil homens como dom
Helder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida, dom Aloísio Lorscheider, dom
Antônio Fragoso, dom Waldyr Calheiros, dom Tomás Balduíno, entre outros grandes
profetas do Senhor. Estes homens não viveram para si mesmos, mas viveram como
Jesus: no anúncio do evangelho, servindo os pobres do povo de Deus.
Que
nossa prece chegue a Deus neste dia feliz da memória deste pacto, a fim de que
nossos bispos escutem a voz do Espírito do Senhor e se tornem, afetiva e
efetivamente, pastores do povo santo e fiel, segundo o coração do nosso bom
Deus. A necessária e urgente conversão das estruturas da Igreja está
intimamente ligada à conversão dos bispos, sendo estes chamados a serem os
primeiros a darem testemunho do Cristo ressuscitado no meio do povo.
Tiago de França
___________________
Eis o texto do pacto.
Pacto
das Catacumbas da Igreja serva e pobre
Nós, Bispos, reunidos
no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de
pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em
que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a
todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força
de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas
respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da
Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de
nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também
com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça,
comprometemo-nos ao que se segue:
1) Procuraremos viver
segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à
alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3;
6,33s; 8,20.
2) Para sempre
renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje
(fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem
esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem
ouro nem prata.
3) Não possuiremos nem
imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for
preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou
caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.
4) Cada vez que for
possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma
comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a
sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At.
6,1-7.
5) Recusamos ser
chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza
e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o
nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.
6) No nosso
comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer
conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e
aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços
religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.
7) Do mesmo modo,
evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas
a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos
nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no
culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.
8) Daremos tudo o que
for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço
apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente
fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos
da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o
Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida
operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor
4,12 e 9,1-27.
9) Cônscios das exigências
da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar
as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na
justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde
serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e
33s.
10) Poremos tudo em
obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços
públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições
sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e
total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra
ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At.
2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.
11) Achando a
colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do
encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral
- dois terços da humanidade - comprometemo-nos:
a participarmos,
conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações
pobres;
a requerermos juntos ao
plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez
o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não
mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim
permitam às massas pobres saírem de sua miséria.
12) Comprometemo-nos a
partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo,
sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um
verdadeiro serviço; assim:
esforçar-nos-emos para
"revisar nossa vida" com eles;
suscitaremos
colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns
chefes segundo o mundo;
procuraremos ser o mais
humanamente presentes, acolhedores...;
mostrar-nos-emos
abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.
13) Tornados às nossas
dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa
resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas
preces.
Ajude-nos Deus a sermos
fiéis.
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