terça-feira, 24 de setembro de 2019

Algumas considerações sobre o discurso de Bolsonaro na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU

        Desde 1949, o Presidente da República Federativa do Brasil faz o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. Neste ano, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro. O discurso do presidente merece uma análise breve. É o que pretendo fazer nestas linhas.

            Ele inicia falando de um novo Brasil, “que ressurge após estar à beira do socialismo”. Durante a sua campanha eleitoral, esta expressão foi repetida muitas vezes, e a repetição fez com que muita gente, dominada pela ignorância, acreditasse nesta falácia. Não se comprova, historicamente, que algum governo ou presidente tenha tentado implantar o socialismo no Brasil. Na ditadura militar também se repetia isso. Os militares diziam que era preciso livrar o Brasil do comunismo. Em nome do “combate ao comunismo”, a democracia brasileira sofreu um terrível golpe, que perdurou de 1964 a 1985.

            Outra informação falsa que aparece logo no início do discurso, é a afirmação de que o Brasil está “sendo reconstruído a partir dos anseios e dos ideais do seu povo”. A maioria dos brasileiros não elegeu Jair Bolsonaro. Quem acompanhou a apuração da eleição sabe que, no segundo turno, grande parcela da população não compareceu. Talvez, se tivesse aparecido, ele não teria sido eleito. Além disso, os ideais do povo brasileiro são totalmente contrários ao que estamos assistindo hoje. Na verdade, o Brasil está sendo “reconstruído” a partir dos ideais da elite econômica que está controlando o governo. Este não governa em função dos pobres, mas em função dos mais ricos. O povo anseia por melhores condições de vida, e o que temos é desemprego, cortes de verbas e corrupção não investigada.

            Neste sentido, mente o presidente quando diz que o seu governo está trabalhando para diminuir o desemprego. Outra falácia é a de que o governo está trabalhando para “reconquistar a confiança do mundo”. Pelo contrário, desde que tomou posse, o presidente se alinhou aos EUA e esqueceu o resto do mundo. O governo brasileiro está jogando o país no isolamento, e as consequências serão trágicas para os mais pobres. O próprio discurso que estamos analisando reforçará este isolamento.

            O presidente também fala de desregulamentação e desburocratização. A quem beneficiam estas medidas? Aos ricos. A ideia central é afrouxar a fiscalização estatal sobre as grandes empresas, para que estas lucrem cada vez mais. E o que os pobres ganham com isso? Nada! Estas medidas incrementam a lógica neoliberal da exploração dos mais fracos. O Estado passa a ser um facilitador da exploração, ausentando-se na regulamentação, e deixando a iniciativa privada controlar a economia.

            O presidente afirma que a proximidade do socialismo, prestes a ser implantado no Brasil, provocou a corrupção generalizada, recessão econômica, altas taxas de criminalidade e ataques aos valores familiares e religiosos. O que o socialismo que nunca existiu no Brasil tem a ver com estes problemas? Falaciosamente, o presidente desvia o foco e induz o ouvinte ao engano. Corrupção, recessão e criminalidade tem a ver com má gestão da coisa pública e ausência do Estado no combate ao crime organizado. O “discurso anticorrupção” foi muito utilizado durante a sua campanha eleitoral, para enganar as pessoas. Pelo visto, continua apostando nele.

Muitos de seus eleitores até hoje acreditam que o atual governo constitui a salvação da pátria brasileira. Mas a falta de investigação envolvendo os próprios filhos do presidente mostra a falácia do discurso. A morte da vereadora Marielle Franco, o sumiço do Queiroz, os depósitos nas contas do filho do presidente e a pretensão de nomear um de seus filhos como embaixador dos EUA mostram, claramente, que o combate à corrupção está longe de ser a realidade do atual governo.

Outra mentira contada pelo presidente em seu discurso foi a seguinte: “Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional”. A informação é falsa porque a vinda dos médicos cubanos para o Brasil, através do programa Mais Médicos, foi regulamentada pela Lei 12.871/2013, com exigência explícita da comprovação profissional. Afirmou também o presidente que os médicos cubanos não podiam trazer cônjuges e filhos. Esta informação também é falsa porque a lei supracitada concedia este benefício. Também não parece verossímil o envio anual de 300 milhões de dólares para Cuba. Não se sabe de onde o presidente tirou esta informação.

Contraditoriamente, o presidente se refere à ditadura militar como se esta tivesse sido uma guerra contra o comunismo. Ironicamente, ele diz que a guerra foi vencida e a liberdade venceu. Na verdade, foram mais de vinte anos de um regime que ceifou a liberdade do povo brasileiro, que mal podia se manifestar publicamente. Inúmeros foram os perseguidos, presos, torturados e assassinados na clandestinidade.

O presidente continua o seu discurso, tecendo críticas à Venezuela. É verdade que o governo de Maduro merece ser criticado. Mas é verdade também que o governo brasileiro não tem autoridade moral nenhuma para criticar a Venezuela. Há sinais evidentes de que o Brasil caminha para a mesma situação. A forma de governar de Bolsonaro também é autoritária, e suas medidas governamentais estão gerando exclusão e pobreza. Os indicadores são claros ao mostrar esta realidade. A economia está praticamente estagnada.

Outra fake news dita pelo presidente: “O Foro de São Paulo, organização criminosa criada em 1990 por Fidel Castro, Lula e Hugo Chávez para difundir e implementar o socialismo na América Latina, ainda continua vivo e tem que ser combatido”. Na verdade, o Foro de São Paulo congrega 120 partidos políticos e movimentos sociais de esquerda, de 26 países da América Latina. Esta informação falsa também foi utilizada na campanha eleitoral, e enganou muita gente. Na concepção do presidente, praticamente tudo o que é de esquerda cheira a terrorismo e socialismo bárbaro. Isso mostra que é desinformado e politicamente analfabeto.

Prosseguindo com seu discurso, faz a defesa daquilo que consideramos forças e medidas do atraso, que uma vez implementadas não geram desenvolvimento integral nem preservação do meio ambiente, a saber: livre mercado, concessões e privatizações. Estas medidas do modelo econômico neoliberal geram riqueza somente para as grandes corporações econômicas. O Estado subserviente é incapaz de atender às necessidades dos pobres.

Como a lógica governamental do atual governo é de cunho neoliberal, então a preocupação com os pobres não é contemplada. Os pobres não fazem parte do orçamento público. Na lógica do livre mercado, os pobres somente servem para trabalhar como mão de obra barata e consumir mercadorias descartáveis. A dita reforma trabalhista realizada pelo governo Temer e aperfeiçoada por Bolsonaro serviu para implementar com mais força e eficácia esta mentalidade capitalista.

O presidente critica o aparelhamento do Estado como se ele tivesse rompido com este mal. Nós sabemos que ele reforça este mal com a famosa cultura do “toma lá dá cá” que sempre reinou em Brasília. Durante a sua campanha eleitoral esta crítica apareceu. Hoje, a prática está mais violenta, pois se acrescentou mais um ingrediente: quem criticar o governo é sumariamente demitido. Em governos autoritários não se admitem investigações de membros de governo nem críticas oriundas dos mesmos à pessoa do presidente.

Uma das grandes falácias ditas pelo presidente foi a seguinte: “Em primeiro lugar, meu governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo”. Todo mundo sabe que isso é mentira! Quem acompanhou a forma como o governo reagiu, inicialmente, às queimadas na Amazônia sabe muito bem que o governo não tem compromisso nenhum com a preservação do meio ambiente. Aliás, meio ambiente nunca foi a bandeira do presidente. Se não existisse a Constituição e as leis de proteção ambiental, certamente a Amazônia já teria sido devastada. Outro absurdo foi ter dito que a Amazônia “permanece praticamente intocada”!

Referindo-se aos países que manifestaram a sua indignação com o descaso por parte do governo brasileiro em relação aos incêndios na Amazônia, o presidente acusou os líderes destes países de possuírem “espírito colonialista”. Como é que um presidente que possui atitudes subservientes em relação aos EUA tem a ousadia de acusar líderes preocupados com a preservação da Amazônia de serem de espírito colonialista? A incoerência é gritantemente vergonhosa! O presidente considera que os EUA são exemplos de respeito à liberdade e à soberania dos países. Qualquer pessoa bem informada sabe que os EUA não procedem dessa forma. Basta estudar o que eles fazem ao redor do mundo.

Referindo-se aos povos indígenas, eis o que disse o presidente: “...mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós”. Ele fala como se os povos indígenas quisessem renunciar às suas tradições culturais e seu estilo de vida para aderir ao nosso estilo desumano de viver, que se encontra em estado agonizante. Para sensibilizar os presentes, o presidente leu uma breve manifestação de um grupo de agriculturas indígenas que não possuem legitimidade para falar em nome de todos os povos indígenas presentes no Brasil.

Outra afirmação um tanto curiosa, considerando que, durante toda a sua campanha eleitoral, o presidente utilizou inúmeras vezes a expressão tão repetida pelos ignorantes: “Direitos humanos é coisa de bandido”! Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, disse: “O Brasil reafirma seu compromisso intransigente com os mais altos padrões de direitos humanos...” Quem acredita nisso? Um governo que esvazia praticamente todos os conselhos que implementavam políticas públicas respeitadas de promoção dos direitos e garantias fundamentais, não pode falar em compromisso com os mais altos padrões de direitos humanos. Trata-se de uma fala hipócrita!

Outra afirmação que não confere é a seguinte: “Há pouco, presidentes socialistas que me antecederam desviaram centenas de bilhões de dólares comprando parte da mídia e do parlamento, tudo por um projeto de poder absoluto”. Não se tem notícia no Brasil sobre quem sejam esses presidentes socialistas. Nunca houve socialismo no Brasil! Também não se tem notícia dessas “centenas de bilhões de dólares” para comprar o parlamento e a mídia. O presidente faz uso de dados falsos e exagerados a todo momento, durante o seu discurso. Mas esta é uma prática comum em seus discursos. Basta verificá-los com a devida atenção.

O presidente cai em outra contradição ao afirmar: “O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem”. Quem o conhece sabe muito bem que é o maior representante desta ausência de racionalidade, pois o que mais faz quando se pronuncia nas redes sociais é a repetição de clichês e palavras de ordem.

Ao final, para fechar com chave de ouro a enxurrada de pétalas de ignorância, na velha tentativa de causar boa impressão, o presidente apela para a Bíblia, citando o versículo 32 do capítulo 8 do evangelho segundo João, que também muito repetiu durante a campanha eleitoral e no dia da posse: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Deus e nós, brasileiros, sabemos que, de fato, a verdade liberta da mentira. E sabemos, também, que a mentira constituiu o alicerce da campanha eleitoral do presidente Bolsonaro. Até hoje se utiliza do mesmo expediente. Mas, como diz o ditado popular: “mentira tem pernas curtas”, e, assim, a verdade aparece e o mentiroso é desmascarado.

Infelizmente, o presidente perdeu uma excelente oportunidade para tentar corrigir seus excessos e, quem sabe, causar outra impressão na comunidade internacional. O Brasil continuará com a sua imagem comprometida, até que possamos criar consciência política suficiente para elegermos um presidente que esteja à altura da dignidade do cargo e da grandeza do nosso País. Tomara que os brasileiros estejam acompanhando esta vergonha nacional e internacional a que estamos submetidos desde a posse desse governo.

Tiago de França

2 comentários:

Gustavo Graciano de Santa Teresa, ocds disse...

Parabéns Tiago. Seus comentários tem valor histórico a ser guardado. É antológico. Divulguei-o para iluminar os espíritos abatidos pelo clima obscuro e arriscado que estamos observando.
Vá em frente. Ajude inúmeras pessoas.

Tiago de França disse...

Obrigado, caríssimo!
Grande abraço!