sexta-feira, 27 de setembro de 2019

São Vicente de Paulo e a caridade


“Todos os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros. Nunca se ouviu que um membro, nem mesmo nos animais, tenha sido insensível à dor do outro membro; que uma parte do homem seja esmagada, ferida ou vítima de violência, e que as outras não se ressintam. Isto é impossível. Todos os nossos membros tem tanta simpatia e ligação uns com os outros que o mal de um é o mal do outro. Com mais razão, os cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e membros uns dos outros, são obrigados a compadecer-se. O quê! Ser cristão e ver seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É ser sem caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior que os animais” (São Vicente de Paulo, presbítero, em 30 de maio de 1659).

            Neste dia 27 de setembro, data da memória litúrgica de São Vicente de Paulo (1581 – 1660), nos parece oportuno fazermos uma reflexão sobre estas palavras deste santo homem de Deus. Na Igreja, muitas vezes, as pessoas tendem a ter devoção aos santos sem conhecer o conteúdo daquilo que eles ensinaram e viveram. Este tipo de devoção não tem sentido. A devoção aos santos somente é legítima quando nos conduz ao seguimento de Jesus Cristo, pois os santos são modelos de seguimento de Jesus Cristo. O devoto precisa conhecer a vida e os ensinamentos dos santos para, à luz do testemunho deles, colocar-se no caminho de Jesus e nele perseverar.

            As palavras de São Vicente, que introduzem esta breve reflexão, foram ditas quase no fim da sua vida. Portanto, trata-se de um forte ensinamento, dado com autoridade, que saiu da boca de um homem experiente, de um discípulo missionário de Jesus, servidor dos pobres. Quem conhece a biografia de São Vicente percebe a verdade deste ensinamento. E quem conhece a história da Igreja, desde a época deste grande santo até hoje, percebe também a importância e a atualidade de suas palavras. Tudo o que São Vicente falava estava em plena sintonia com a missão que exercia. A sua espiritualidade é essencialmente cristológica, ou seja, considerava Jesus Cristo o modelo por excelência de missionário e de missão. Cristo Jesus está no centro da espiritualidade de São Vicente de Paulo.

            Mas o Cristo Jesus contemplado e conhecido por São Vicente era intimamente ligado aos pobres. Para ele, não existe o Cristo Jesus sem os pobres. Jesus Cristo é aquele que foi enviado para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,18). Trata-se de uma destinação exclusiva. Por isso, São Vicente dizia aos Padres e Irmãos da Missão (Lazaristas), congregação fundada por ele, que estavam destinados, exclusivamente, à evangelização dos pobres, assim como Jesus, pois este mesmo Cristo Jesus “é a regra da missão”. O carisma vicentino é profundamente cristológico e missionário. Jesus Cristo e os pobres ocupam a centralidade do carisma e da missão vicentina.

            A leitura e a interpretação que São Vicente fez do Evangelho de Jesus é teologicamente ortodoxa, pois ele vai no coração da mensagem de Jesus: o anúncio do Reino de Deus, em primeiro lugar, aos pobres. Na história da Igreja não existia, antes dele, uma Congregação de Padres e Irmãos com dedicação exclusiva à evangelização dos pobres. São Vicente escutou os apelos do Espírito Santo nos pobres. Na sua época, estes estavam abandonados: não eram assistidos, nem materialmente nem espiritualmente. O povo passava fome, porque faltavam o pão material e o espiritual. São Vicente ensinava que é necessário matar a fome de alimento e a fome da Palavra de Deus e da Eucaristia. Também a Companhia das Filhas da Caridade foi criada com a mesma finalidade: evangelizar os pobres.

            A fundação da Congregação da Missão e da Companhia das Filhas da Caridade são expressões de um Deus que está presente, operando suas maravilhas no mundo. São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac estavam convictos de que Deus estava presente e pedia este serviço humano e espiritual aos pobres. Com o crescimento do número daqueles e daquelas que ingressavam nas fileiras do serviço missionário, esta convicção da vontade de Deus para aquele momento histórico crescia cada vez. Esta presença amorosa e confirmadora de Deus fazia com que São Vicente e Santa Luísa fossem aprofundando o carisma e, assim, no amor afetivo e efetivo para com os pobres, imprimiram na Igreja a centralidade de Jesus Cristo na Igreja a partir dos pobres.

            Meditemos agora as palavras de São Vicente, transcritas no início desta reflexão. São palavras ricas de conteúdo teológico e espiritual, que merecem ser lidas, meditadas e trazidas para o hoje do nosso agir eclesial e social.

“Todos os homens compõem um corpo místico; somos todos membros uns dos outros...”

            A imagem do corpo místico nos fala da unidade. Em tempos pós-modernos, esta imagem não parece ter muito sentido. A partir da modernidade, o individualismo que decorre da centralização no próprio eu, tornou-se a regra da relação entre as pessoas. O ditado popular “cada um por si, e Deus por todos!” passou a ser muito difundido. Para Jesus e São Vicente, não existe esse “cada um por si”. Deus nada faz na vida de quem pratica esta regra. “Cada um por si” é sinônimo de egoísmo, e este é anticristão. Teologicamente, afirma-se que a Igreja é corpo místico de Cristo, e que na comunidade cristã somos membros uns dos outros, pautando-se na eclesiologia do apóstolo Paulo, genuinamente cristã.

            Esta unidade do corpo místico de Cristo não corresponde à uniformidade. São Vicente sabia muito bem disso. O homem moderno e, posteriormente, o pós-moderno descobriu o sentido e o valor da promoção da diversidade. As pessoas, as culturas e os modos de ser e de viver são plurais. Também são plurais as crenças e as religiões, as subjetividades, e a vida no seu conjunto. Somos chamados à unidade na diversidade dos dons, carismas, culturas, religiosidade e vivências. A diversidade é natural e necessária, sem a qual a vida seria tediosa e insuportável. As realidades humanas e o próprio ser humano não são passíveis de repetição. O novo sempre gera o plural, e quem não se reconcilia com esta realidade fundamental não consegue se situar no mundo.

            Em São Vicente, a imagem do corpo místico nos revela o rosto dos outros. Estes existem. Como viver neste mundo se comportando como se os outros não existissem? Não há vida autêntica sem os outros. Nenhum ser humano se descobre e cresce sem a relação com os outros. A humanidade somente evolui na saudável relação com os outros. Caímos numa profunda crise identitária e civilizatória quando os outros são esquecidos e excluídos. Parece ser a realidade deste início de século. Em São Vicente, os outros são os pobres, os explorados e esquecidos, os que padecem toda sorte de sofrimento. Os pobres são membros do corpo místico de Cristo; desprezá-los corresponde a desprezar o próprio Cristo Jesus.

            Qual tem sido o lugar dos pobres na vida de nossas Igrejas cristãs? Hoje, a pergunta mais apropriada parece ser: Para que serve os pobres em nossas Igrejas cristãs? Esta pergunta explicita uma visão utilitarista dos pobres. Serve somente para devolver o dízimo, para assumir funções nas comunidades, para servir aos sacerdotes, para ouvir sermões moralistas, para serem domesticados em função do bem-estar dos mais ricos? Como as Igrejas tem evangelizado os pobres? Eles são, de fato, tratados como membros corpo místico de Cristo? São Vicente dizia que os pobres “são os nossos mestres e senhores”. Isto é profundamente místico e teológico.

“...os cristãos, sendo membros de um mesmo corpo e membros uns dos outros, são obrigados a compadecer-se”.

            A compaixão é uma virtude cristã. Quem segue a Jesus se torna membro do seu corpo, e com os demais irmãos e irmãs que professam a mesma fé e se encontram no mesmo caminho, torna-se membro destes outros. Quem vive em plena comunhão com Jesus, vive em comunhão plena com os outros. Não há exceção. Fora da comunhão não existe salvação. Nenhum cristão pode viver isolado, cultivando uma comunhão somente com Deus. Isto não é ser cristão. Ter os olhos fixos em Jesus significa ter os olhos filhos nos outros, porque Jesus está nos outros: Ele está no meio de nós. Ele está em nós. Fora da comunhão não há compaixão. Como vou me compadecer dos outros se não me relaciono, se fujo das pessoas, se as enxergo com espírito de superioridade, se as julgo indignas da minha presença e da minha amizade?

            Padecer com os outros é participar de seus sofrimentos. Isto é profundamente evangélico e, consequentemente, cristão. Não há cristianismo de guetos, de grupos que se isolam para adorar o Senhor e se recusam a padecer com os outros. Isto é falso cristianismo. Também não há autêntico cristianismo em grupos que se dedicam a causar divisão e confusão, instigando o ódio entre as pessoas, recusando-se a aceitar a diversidade dos dons, carismas e modos de ser e de viver.  

Na verdade, quem assim procede se torna inimigo da cruz de Cristo e do corpo místico de Cristo. Estes pecados integram o hoje de nossas Igrejas cristãs. O cristianismo se encontra cada vez mais dividido e marcado pela cultura do ódio e da eliminação dos outros. Estas coisas não derivam da comunhão com Deus, mas da ação de pessoas mal-intencionadas, que agem como se fossem demônios, agentes causadores da discórdia.

            Compaixão não é sentir pena dos outros, mas sentir com as entranhas a realidade dos outros. Jesus viveu esta experiência. A compaixão é um movimento na direção dos que sofrem. É um movimento, portanto, indica emoção e ação. Um cristianismo excessivamente emotivo é prejudicial, porque se torna facilmente alienante. O excesso das emoções sufoca a liberdade da pessoa. É uma espécie perigosa de escravidão. Em nossos dias, graças ao excesso de apreço à subjetividade, as pessoas estão muito emotivas.  

Facilmente, o cristianismo se transforma numa ferramenta a serviço de uma espécie de overdose emocional. Daí decorre a valorização somente do estilo de vivência cultual que toca as emoções, provocando o choro, os arrepios, os desmaios, as supostas visões e êxtases, gritarias, confusão mental etc. Jesus não pediu isso. A compaixão é simples, é do cotidiano da vida, é amor-doação.

“Ser cristão e ver seu irmão aflito, sem chorar com ele, sem estar doente com ele! É ser sem caridade; é ser cristão em pintura; é não ter humanidade; é ser pior que os animais”.

            Duas das características da espiritualidade de São Vicente é a objetividade e a clareza. Ele era muito simples no que dizia, porque a sua ação missionária era vivida entre os simples. São Vicente não se perdia em grandes discursos teológicos, de conteúdo abstrato e de difícil entendimento. Era um místico da missão, simples e acessível a todos. Não vivia encerrado em mosteiros e conventos, mas estava presente, junto ao pobre sofredor. Era um profundo entendedor da aflição dos pobres. Conhecia de perto a vida deles; comungava de suas dores e aflições.

            Suas palavras nos questionam: Até que ponto estamos dispostos a viver em comunhão com o sofrimento dos outros? Precisamos rezar esta indagação. Para entrarmos no movimento da misericórdia e da compaixão, precisamos nos posicionar. Orar, meditar, refletir e sentir são realidades importantes. Mas em nosso cotidiano, como nos comportamos diante da aflição dos outros? O que, de fato, fazemos? Ou somos indiferentes? Ser santo depende disso: ser caridoso, ter humanidade. O “cristão em pintura” é aquele cristão bonito, bem aparentado, bem decorado, com verniz sempre novo... Mas não passa disso. É o cristão de aparência, que pode ser até muito piedoso, mas que trata o irmão aflito com total indiferença.

            “Ser pior que os animais”. Esta expressão é impactante. A pessoa humana possui uma dignidade maior que a dos animais e, portanto, deve ser tratada com todo respeito e amor. Até os animais tratamos com o devido cuidado. As pessoas merecem a nossa atenção, cuidado, proximidade, acolhida, compreensão e amor. É isto que Jesus pede; é isto que nos ensina São Vicente. Este amor às pessoas é incondicional, ou seja, amamo-las porque são nossas irmãs em Cristo Jesus, porque conosco formam o corpo místico de Cristo. Nós as amamos porque esta é a nossa vocação: amamos a cada uma delas do jeito que são, sem impor a obrigação de que mudem para satisfazer os nossos caprichos.

            A tendência do cristianismo atual é trilhar outro caminho, diametralmente oposto: existe uma espécie de egocentrismo espiritual, ou seja, um eu que deseja sempre se sobrepor, “justificado” por práticas religiosas e excessos de piedade. O Papa Francisco, profeta de nossos dias, faz menção a um mal congênere, presente no cristianismo atual: o mundanismo espiritual.

Nesta realidade, as pessoas aparentam ser religiosas, mas são, na verdade, mundanas, entregues a toda espécie de apegos e males: são maliciosas, covardes, oportunistas, competitivas, materialistas, vaidosas, hedonistas etc., mas que alimentam certa piedade cujo objetivo é o de camuflar todas estas coisas.

            São Vicente nos ensina a termos humanidade. Isto significa que precisamos crescer em humanidade, que não está desvinculada da dimensão espiritual da vida. Pessoas verdadeiramente espirituais são verdadeiramente humanas. Ser humano significa sentir a vida, sentir os outros, sentir-se pessoa, gente. A espiritualidade cristã não nos eleva para outro mundo. A missão do cristão acontece neste mundo, pois Deus criou este mundo para o ser humano e nele está presente.

São Vicente era um homem de Deus, espiritualizado, mas, simultaneamente, humano e enraizado na realidade. Era um místico prático, do cotidiano, em plena comunhão com o Deus que se fez carne e habita entre nós e em nós. Hoje, São Vicente nos diz: Lembrai-vos, irmãos, da carne de Cristo nos corpos sofridos e mutilados dos mais pobres! Em sintonia com a mensagem profética do Papa Francisco, nos diz São Vicente: Saiam, irmãos, pelo mundo afora! Ide ao encontro dos pobres, nossos mestres e senhores! Assim, nossa Igreja encontrará o verdadeiro caminho da conversão pastoral, tão urgentemente necessária.
Tiago de França

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