“O
transcendente não é o infinitamente distante, mas o que está mais próximo” (D.
Bonhoeffer, pastor e mártir).
Nestes dias, estou lendo o livro Dietrich Bonhoeffer: mártir do nazismo, de Giorgio
Cavalleri (Paulinas, 2019). Conheci a história de D. Bonhoeffer quando era
aluno do curso propedêutico no Seminário da Prainha, em Fortaleza – CE, no ano
de 2007. Estava olhando os livros que estavam à venda, e logo adquiri a obra Resistência
e Submissão: Cartas e anotações
escritas na prisão (Sinodal, 2003). Trata-se de uma obra teológica muito
bela e provocante, que retrata o pensamento de D. Bonhoeffer: pastor e teólogo
luterano, mártir de Cristo Jesus.
Não quero falar da biografia deste grande mártir alemão. Quero
apenas falar do significado do título deste breve artigo: As sutilezas de Deus.
Cada vez que leio releio a biografia profética deste grande teólogo luterano,
convenço-me de que Deus, de fato, age sutilmente. Esta sutileza me faz recordar
da vocação profética de Samuel, narrada nas Escrituras (cf. 1Samuel 3, 1-14). Deus
chamou Samuel no silêncio, sutilmente, enquanto dormia no santuário do Senhor.
Bonhoeffer também nos faz recordar da passagem do Senhor,
quando se manifestou a Elias (cf. 1 Reis 19, 9-14): manifestou-se na brisa
suave. Deus é sinônimo de suavidade. A história de Bonhoeffer não contém fatos
extraordinários nem espetaculares. Na sua vida, Deus é discreto e sutil; parece
até ausente. O que chama a atenção em Bonhoeffer é a grandeza da sua fé. Ele tinha
fé Naquele que o podia salvar da morte, mas que na sua morte manifestou a
verdadeira vida. Bonhoeffer morreu enforcado, como réu de alta traição, pelo
regime nazista de Hitler.
A densidade teológica e espiritual de seus escritos é
admirável. Um dos aspectos, dentre os muitos que podem ser ressaltados,
chamou-me a atenção a forma como Deus se relaciona com ele, e ele com Deus. Por
meio da oração e do anúncio incansável da Palavra de Deus, Bonhoeffer
testemunhou o Cristo ressuscitado e participou da sua glória, abraçando livremente
o martírio. Tendo descoberto o segredo da pedagogia do Deus infinitamente
amoroso, que se manifesta sutilmente no silêncio do coração, Bonhoeffer descobriu,
na carne, o sentido da sentença paulina que diz: “Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro” (Filipenses
1, 21).
Somente quem vive uma profunda experiência de Deus é
capaz de fazer tal afirmação. Esta afirmação retrata a vida de um homem
entregue sem reservas, totalmente livre, disponível para experimentar a páscoa
no Senhor. Não é mero discurso jogado ao vento; não constitui mera teoria que
visa o convencimento; é experiência de Cristo na fragilidade da carne humana; é
pura transcendência no amor, mergulho definitivo no seio do Deus Uno e Trino. Bonhoeffer
fez a mesma experiência do apóstolo Paulo. Por isso, a teologia de Bonhoeffer é
profundamente profética e mística.
O que a sutileza divina nos diz hoje, neste século
profundamente marcado pela cultura do estrelismo e do espetáculo? Bonhoeffer nos
concede a feliz oportunidade de repensarmos as nossas práticas religiosas,
nossas expressões religiosas de fé. Há algo fora do lugar, que se distancia
cada vez mais da mensagem de Jesus. Considerando a sutileza divina, por que
nossas Igrejas estão cada vez mais barulhentas e mais parecidas com mercados
religiosos? O que o testemunho de Jesus e de Bonhoeffer tem a nos ensinar? Arrisquemos
algumas provocações, visando a necessária conversão de nossas práticas
religiosas.
No Evangelho, Jesus condenou o excesso de palavras na
oração: “Quando orardes, não useis de
muitas palavras como fazem os gentios, pois eles pensam que à força de muitas
palavras serão atendidos” (Mt 6, 7). Assistimos a uma verdadeira
verborragia em nossos templos e eventos religiosos. O que está por trás dessa
necessidade de excesso de palavras? Investe-se em muitas palavras para dizer
pouca coisa, ou praticamente nada. Para entrarmos em comunhão com o Deus
sutilmente amoroso, também precisamos ser sutilmente amorosos. Na sutileza
encontramos a suavidade e o silêncio. O excesso de palavras constitui verdadeira
violência, que impede o encontro com o Deus da brisa suave. No muito falar,
corre-se o risco de não escutá-lo.
Outro mal que nos afeta e que integra as manias da nossa
época é o estrelismo: o hábito de viver chamando a atenção para si mesmo, de
forma espetacular, no culto e fora dele. Há um cultivo excessivo da aparência,
com o objetivo de demonstrar piedade e santidade, como se estas fossem íntima e
necessariamente ligadas à aparência.
Estamos
assistindo ao retorno dos símbolos religiosos de toda ordem, que são usados e
abusados por muitos. O mercado religioso produz apetrechos religiosos para
todos os tipos de crenças. Muitos investem neles e se esquecem do essencial,
que é o amor a Deus e ao próximo. Confundem o amor a Deus com o uso de
apetrechos religiosos e devoções de toda ordem. Penduram no pescoço a cruz de
Cristo, mas o coração está cheio de ódio e toda sorte de maldade. Afirmam amar
a Deus que não veem, sem amar o próximo que veem. Este é o amor falso que o
apóstolo denunciou em uma de suas Cartas (1João 4, 20).
Bonhoeffer falou do seguimento radical de Cristo, no amor
e na fidelidade até a morte. Este seguimento é prático, cotidiano, despojado,
simples, humilde, corajoso e discreto. O seguimento é anúncio de Cristo por
meio do exemplo humilde de amor-doação. O caminho do estrelismo, explicitado
pela cultura da aparência, é desvio, é sintomático e, portanto, doentio. O cristianismo
de nossos dias precisa passar por uma purificação. As bancas e os cambistas de
nossos templos precisam ser expulsos, porque a Casa do Senhor é casa de oração
(cf. João 2, 13-22). Está faltando o chicote de cordas de Jesus, para separar
as coisas dos homens das coisas de Deus, no que se refere à profanação dos
templos religiosos.
Quando chamou seus discípulos, Jesus não os convidou para
o estrelismo, mas os chamou para tomarem a cruz e o seguirem (cf. Mateus 16,
24-25). Um Deus que ama sutilmente não aprova esta nossa cultura de dispersão e
de afobamento. Precisamos recuperar a serenidade do olhar, do falar, do pensar
e do agir.
Se dizemos
que somos de Cristo, mas nos apresentamos como se fôssemos uma raça de gente
perturbada, o amor de Deus não está em nós. Como vamos consolar os aflitos se
estamos dominados pela perturbação da mente e do corpo? Como anunciaremos o
Reino de Deus se nossa presença é causa de escândalo e confusão? Paulo nos
exorta que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Cf.
Romanos 14, 17).
No meio da confusão e das diversas formas de violência
presentes no mundo, Deus está agindo, sutil e amorosamente. Não cremos em um
Deus estático, satisfeito com as desgraças que assolam a humanidade. Cremos em
um Deus presente na vida daqueles que são chamados a semear a paz e a justiça; daqueles
que descobriram a grande alegria do amor de Jesus em suas vidas.
Quem se
descobre amado por Deus se transforma no sal da terra e luz do mundo;
transforma-se em sinal de cura e libertação da humanidade, encarnando a
presença de Deus no mundo. Esta é a vocação cristã, vocação vivida por
Bonhoeffer, no amor e na fidelidade até a entrega total da sua vida.
Estamos dispostos a abraçar, com amor e fidelidade, este
Deus amorosamente sutil, que vem ao nosso encontro para nos preencher com seu
amor, e, assim, transformando-nos em verdadeiros seres humanos para a alegria e
a vida do mundo? A proposta está lançada. Ele permanece acessível e não cessa
de nos esperar. Bonhoeffer ousou e encontrou a verdadeira vida. A iniciativa é
sempre de Deus, mas a decisão é nossa. Sejamos, pois, ousados!
Tiago de França
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