quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Dietrich Bonhoeffer e as sutilezas de Deus


“O transcendente não é o infinitamente distante, mas o que está mais próximo” (D. Bonhoeffer, pastor e mártir).

            Nestes dias, estou lendo o livro Dietrich Bonhoeffer: mártir do nazismo, de Giorgio Cavalleri (Paulinas, 2019). Conheci a história de D. Bonhoeffer quando era aluno do curso propedêutico no Seminário da Prainha, em Fortaleza – CE, no ano de 2007. Estava olhando os livros que estavam à venda, e logo adquiri a obra Resistência e Submissão: Cartas e anotações escritas na prisão (Sinodal, 2003). Trata-se de uma obra teológica muito bela e provocante, que retrata o pensamento de D. Bonhoeffer: pastor e teólogo luterano, mártir de Cristo Jesus.

            Não quero falar da biografia deste grande mártir alemão. Quero apenas falar do significado do título deste breve artigo: As sutilezas de Deus. Cada vez que leio releio a biografia profética deste grande teólogo luterano, convenço-me de que Deus, de fato, age sutilmente. Esta sutileza me faz recordar da vocação profética de Samuel, narrada nas Escrituras (cf. 1Samuel 3, 1-14). Deus chamou Samuel no silêncio, sutilmente, enquanto dormia no santuário do Senhor.

            Bonhoeffer também nos faz recordar da passagem do Senhor, quando se manifestou a Elias (cf. 1 Reis 19, 9-14): manifestou-se na brisa suave. Deus é sinônimo de suavidade. A história de Bonhoeffer não contém fatos extraordinários nem espetaculares. Na sua vida, Deus é discreto e sutil; parece até ausente. O que chama a atenção em Bonhoeffer é a grandeza da sua fé. Ele tinha fé Naquele que o podia salvar da morte, mas que na sua morte manifestou a verdadeira vida. Bonhoeffer morreu enforcado, como réu de alta traição, pelo regime nazista de Hitler.

            A densidade teológica e espiritual de seus escritos é admirável. Um dos aspectos, dentre os muitos que podem ser ressaltados, chamou-me a atenção a forma como Deus se relaciona com ele, e ele com Deus. Por meio da oração e do anúncio incansável da Palavra de Deus, Bonhoeffer testemunhou o Cristo ressuscitado e participou da sua glória, abraçando livremente o martírio. Tendo descoberto o segredo da pedagogia do Deus infinitamente amoroso, que se manifesta sutilmente no silêncio do coração, Bonhoeffer descobriu, na carne, o sentido da sentença paulina que diz: “Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro” (Filipenses 1, 21).

            Somente quem vive uma profunda experiência de Deus é capaz de fazer tal afirmação. Esta afirmação retrata a vida de um homem entregue sem reservas, totalmente livre, disponível para experimentar a páscoa no Senhor. Não é mero discurso jogado ao vento; não constitui mera teoria que visa o convencimento; é experiência de Cristo na fragilidade da carne humana; é pura transcendência no amor, mergulho definitivo no seio do Deus Uno e Trino. Bonhoeffer fez a mesma experiência do apóstolo Paulo. Por isso, a teologia de Bonhoeffer é profundamente profética e mística.

            O que a sutileza divina nos diz hoje, neste século profundamente marcado pela cultura do estrelismo e do espetáculo? Bonhoeffer nos concede a feliz oportunidade de repensarmos as nossas práticas religiosas, nossas expressões religiosas de fé. Há algo fora do lugar, que se distancia cada vez mais da mensagem de Jesus. Considerando a sutileza divina, por que nossas Igrejas estão cada vez mais barulhentas e mais parecidas com mercados religiosos? O que o testemunho de Jesus e de Bonhoeffer tem a nos ensinar? Arrisquemos algumas provocações, visando a necessária conversão de nossas práticas religiosas.

            No Evangelho, Jesus condenou o excesso de palavras na oração: “Quando orardes, não useis de muitas palavras como fazem os gentios, pois eles pensam que à força de muitas palavras serão atendidos” (Mt 6, 7). Assistimos a uma verdadeira verborragia em nossos templos e eventos religiosos. O que está por trás dessa necessidade de excesso de palavras? Investe-se em muitas palavras para dizer pouca coisa, ou praticamente nada. Para entrarmos em comunhão com o Deus sutilmente amoroso, também precisamos ser sutilmente amorosos. Na sutileza encontramos a suavidade e o silêncio. O excesso de palavras constitui verdadeira violência, que impede o encontro com o Deus da brisa suave. No muito falar, corre-se o risco de não escutá-lo.

            Outro mal que nos afeta e que integra as manias da nossa época é o estrelismo: o hábito de viver chamando a atenção para si mesmo, de forma espetacular, no culto e fora dele. Há um cultivo excessivo da aparência, com o objetivo de demonstrar piedade e santidade, como se estas fossem íntima e necessariamente ligadas à aparência.

Estamos assistindo ao retorno dos símbolos religiosos de toda ordem, que são usados e abusados por muitos. O mercado religioso produz apetrechos religiosos para todos os tipos de crenças. Muitos investem neles e se esquecem do essencial, que é o amor a Deus e ao próximo. Confundem o amor a Deus com o uso de apetrechos religiosos e devoções de toda ordem. Penduram no pescoço a cruz de Cristo, mas o coração está cheio de ódio e toda sorte de maldade. Afirmam amar a Deus que não veem, sem amar o próximo que veem. Este é o amor falso que o apóstolo denunciou em uma de suas Cartas (1João 4, 20).

            Bonhoeffer falou do seguimento radical de Cristo, no amor e na fidelidade até a morte. Este seguimento é prático, cotidiano, despojado, simples, humilde, corajoso e discreto. O seguimento é anúncio de Cristo por meio do exemplo humilde de amor-doação. O caminho do estrelismo, explicitado pela cultura da aparência, é desvio, é sintomático e, portanto, doentio. O cristianismo de nossos dias precisa passar por uma purificação. As bancas e os cambistas de nossos templos precisam ser expulsos, porque a Casa do Senhor é casa de oração (cf. João 2, 13-22). Está faltando o chicote de cordas de Jesus, para separar as coisas dos homens das coisas de Deus, no que se refere à profanação dos templos religiosos.

            Quando chamou seus discípulos, Jesus não os convidou para o estrelismo, mas os chamou para tomarem a cruz e o seguirem (cf. Mateus 16, 24-25). Um Deus que ama sutilmente não aprova esta nossa cultura de dispersão e de afobamento. Precisamos recuperar a serenidade do olhar, do falar, do pensar e do agir.

Se dizemos que somos de Cristo, mas nos apresentamos como se fôssemos uma raça de gente perturbada, o amor de Deus não está em nós. Como vamos consolar os aflitos se estamos dominados pela perturbação da mente e do corpo? Como anunciaremos o Reino de Deus se nossa presença é causa de escândalo e confusão? Paulo nos exorta que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Cf. Romanos 14, 17).

            No meio da confusão e das diversas formas de violência presentes no mundo, Deus está agindo, sutil e amorosamente. Não cremos em um Deus estático, satisfeito com as desgraças que assolam a humanidade. Cremos em um Deus presente na vida daqueles que são chamados a semear a paz e a justiça; daqueles que descobriram a grande alegria do amor de Jesus em suas vidas.

Quem se descobre amado por Deus se transforma no sal da terra e luz do mundo; transforma-se em sinal de cura e libertação da humanidade, encarnando a presença de Deus no mundo. Esta é a vocação cristã, vocação vivida por Bonhoeffer, no amor e na fidelidade até a entrega total da sua vida.

            Estamos dispostos a abraçar, com amor e fidelidade, este Deus amorosamente sutil, que vem ao nosso encontro para nos preencher com seu amor, e, assim, transformando-nos em verdadeiros seres humanos para a alegria e a vida do mundo? A proposta está lançada. Ele permanece acessível e não cessa de nos esperar. Bonhoeffer ousou e encontrou a verdadeira vida. A iniciativa é sempre de Deus, mas a decisão é nossa. Sejamos, pois, ousados!

Tiago de França

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