“Convertei-vos, porque o Reino
dos Céus está próximo” (Mt 4, 17).
Há uma tentação que persegue
constantemente os cristãos: a de marginalizar a Palavra de Deus. Em vários
momentos da sua história, a Igreja católica deixou de lado a Palavra de Deus,
para se dedicar à busca de riquezas, prestígio e poder. Quem estuda a história
eclesiástica tem a oportunidade de conhecer as consequências deste “esquecimento”
da Palavra.
Com a realização do concílio
Vaticano II, a Igreja voltou às fontes primitivas e redescobriu a força da
Palavra. A Igreja católica se coloca como ouvinte da Palavra e, assim, chamada
a anunciá-la ao mundo. A constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina, fala desta redescoberta da
Palavra na vida e na missão da Igreja. A Palavra deixa de ser monopólio do
clero, e passa a ser o Livro Sagrado acessível a todos os fieis. Durante muito
tempo, somente o clero lia e interpretava a Palavra. O povo somente escutava o
que o clero dizia.
Hoje, as pessoas podem ter o texto
das Sagradas Escrituras em mãos. Trata-se de um dos livros mais vendidos e
traduzidos do mundo. Apesar disso, falta leitura, meditação e contemplação da
Palavra. Infelizmente, a maioria dos cristãos não possui a prática da leitura
da Bíblia. Esta falta de familiaridade com a Palavra possui raízes históricas. Estas
explicam, mas não justificam. Em cada país do mundo, o cristão pode ter acesso
à Palavra na sua própria língua.
Outro dado importante que muito
envergonha o cristianismo, e que tem causado muito descrédito é a manipulação
que muitos fazem da Palavra. Esta é distorcida por pessoas que visam a
satisfação de seus próprios interesses. Muita gente utiliza a Palavra para enganar,
ofender, julgar, condenar, roubar e matar os outros. A Palavra não foi escrita
com esta finalidade. Ninguém recebeu de Deus o poder para usar a Palavra como
instrumento de legitimidade de práticas desumanas e criminosas. Deus pronuncia
a sua Palavra para libertar as pessoas, jamais para enganá-las e escravizá-las
(cf. Jo 8,32).
A manipulação da Palavra consiste
num processo sistemático de distorção do seu sentido. Os estudiosos em Bíblia,
ao longo dos séculos, ofereceram e continuam oferecendo valiosas contribuições
que nos permitem acessar o sentido dos textos bíblicos. Não é mais possível
aceitarmos interpretações deturpadas das Escrituras Sagradas, que somente visam
o enriquecimento ilícito e outras práticas contrárias à mensagem libertadora
que encontramos nos textos sagrados.
Do Gênesis ao Apocalipse, a Palavra
de Deus revela a mensagem da salvação, que consiste na libertação integral da
humanidade e na plenitude do Reino de Deus, Reino presente na história humana,
que conhecerá a sua realização plena na parusia (volta) do Senhor, conforme as
Escrituras Sagradas. Na Palavra encontramos a revelação divina, que precisa ser
conhecida e meditada, pois é fonte de vida e salvação. Sem o conhecimento da
revelação não é possível conhecer Jesus, o Senhor e Salvador, pois é o centro,
a plenitude e a chave de interpretação da revelação divina.
Preocupado com a centralidade da
Palavra na vida e na missão da Igreja católica, o Papa Francisco instituiu o
Domingo da Palavra de Deus, com a carta apostólica sob a forma de Motu Proprio “Aperuit
illis”. Neste documento, o Papa estabeleceu que “o III Domingo do Tempo Comum
seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus”. Neste ano,
este Domingo será celebrado no próximo dia 26 de janeiro. O fato de um Papa
instituir um Domingo para recordar a importância da Palavra na vida cristã é um
claro sinal de que algo precisa melhorar; do contrário, não haveria necessidade
desta instituição.
Por que é importante a leitura,
meditação e contemplação da Palavra na vida cristã e eclesial? Não há cristão
nem Igreja cristã sem a Palavra de Deus. Tanto um quanto outro devem se ocupar,
permanentemente, com a Palavra. Ela é a revelação do projeto salvífico de Deus;
é a luz que ilumina a caminhada do povo de Deus; é a força que impulsiona esta
caminhada; é a verdade que liberta integralmente; é a fonte de onde brota a
água viva que jorra para a vida eterna. Quem bebe da Palavra nunca mais terá
sede, pois nela está Jesus de Nazaré, o único capaz de saciar a fome e a sede
de justiça e de paz que trazemos no mais profundo de nosso ser.
A Palavra é capaz de transformar toda
pessoa que a acolhe. Sem esta acolhida, não é possível a conversão. É inconcebível
que alguém leia, medite e contemple a Palavra, e continue da mesma forma,
mergulhado na mesquinhez e na mediocridade. A Palavra transforma interiormente
a pessoa. Ela age como o oleiro que trabalha o barro; é uma espada de dois
gumes, que corta e penetra; é um fogo que queima e aquece; é como a água em
terra esturricada.
A Palavra é um dos lugares de encontro
com Deus. Este encontro é sempre fecundo e libertador. Na Palavra, Deus
trabalha o ser da pessoa, transformando-a naquilo que Ele quer. Por meio da
Palavra, a pessoa se une a Deus, participando da sua vida. Neste sentido, vale
considerar o que dizia o sábio São Jerônimo: “Ignorar as Escrituras é ignorar a
Cristo”. Este grande leitor, intérprete e tradutor das Escrituras assim se
pronunciou porque sabia que o mistério pascal de Cristo constitui o centro das
Sagradas Escrituras.
O Papa Francisco tem razão ao
instituir o Domingo da Palavra de Deus. Infelizmente, a Palavra, mesmo após o
Vaticano II, ainda não ocupou o seu devido lugar em toda a Igreja católica.
Muitas preocupações continuam ocupando o lugar da Palavra. Em muitos lugares,
as devoções a Maria e aos santos ocupam lugar central. É verdade que as
devoções tem a sua importância na vida da Igreja católica, mas é verdade também
que a missão da Igreja é anunciar o Evangelho de Jesus, e este Evangelho
precisa permanecer no centro da vida e da missão da Igreja.
Se as pessoas não se convertem, se
não se colocam no caminho de Jesus e nele perseveram, se abandonam este
caminho, se não se sentem amadas por Deus, se desconhecem o amor divino...
estes são sinais evidentes da ausência de uma autêntica leitura, meditação e
contemplação da Palavra de Deus.
Para que exista uma Igreja verdadeiramente discípula e
missionária, a Palavra precisa permanecer no centro do trabalho de
evangelização. Sem esta centralidade da Palavra, continuaremos tendo multidões
sedentas da Palavra, “como ovelhas sem pastor” (cf. Mt 9,32-38). Sem o alimento
da Palavra, os cristãos tendem a perder o sentido da sua vida, extraviando-se e
aventurando-se por caminhos que não são os de Deus.
O momento atual, profundamente marcado pelo desespero
gerado pela grave crise de civilização, clama por verdade e liberdade. As pessoas
estão cansadas de mentiras e confusão, cansadas de promessas ilusórias; estão
cansadas e abatidas. Falta a muita gente a esperança necessária para continuar
trilhando a caminhada da vida, vivendo o amor.
A Palavra de Deus carrega consigo esta esperança. Ela é
capaz de despertar a esperança no espírito dos fracos e abatidos. Todo aquele
que já se encontrou com esta Palavra de esperança é chamado a oferecê-la a
outras pessoas. Partilhar a Palavra é atitude que faz parte da vida daquele que
fez e faz uma experiência de Deus, encontrando-se com Ele nas Sagradas
Escrituras. Na partilha da Palavra, a vida se renova e Deus se faz presença que
conforta, ilumina, orienta e salva.
Tiago de França
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