terça-feira, 21 de outubro de 2014

Católicos e evangélicos ultraconservadores e as eleições presidenciais 2014

           
            Durante o período eleitoral, os católicos e evangélicos ultraconservadores costumam aparecer. Eles pertencem aos segmentos mais fechados das Igrejas cristãs. Emitem seus juízos pautando-se nas doutrinas e nas tradições de suas denominações religiosas.

Não bebem das fontes genuinamente evangélicas e, justamente por isso, seus juízos não resistem à palavra de Jesus, que é pura acolhida misericordiosa dos pecadores. Nossa reflexão quer discorrer a respeito de alguns pontos e/ou características das falas e condutas destes ultraconservadores, a fim de que o leitor não pense que eles são representantes legítimos de suas Igrejas.  

  1. O papel da religião em um mundo plural
O grande equívoco dos ultraconservadores é pensar que estamos vivendo em tempos de cristandade, ou seja, na época em que todas as pessoas viviam sob o domínio da autoridade religiosa. Este tempo não existe mais. Nas sociedades pré-modernas, a religião tinha uma força muito grande. Sua palavra era uma ordem. Quem não obedecesse era castigado.

Os líderes religiosos eram considerados representantes de Deus na terra e, por isso mesmo, afirmavam ter uma autoridade concedida por Deus para abençoar e amaldiçoar. Na Igreja católica, utilizavam-se da Inquisição para punir aqueles que eram considerados hereges e inimigos de Deus.

Hoje, não somos mais pré-modernos, mas, mesmo assim, contamos com milhões de cristãos com mentalidade pré-moderna. A interpretação que estes fazem das Escrituras Sagradas é antievangélica, pois não leva em consideração o mandamento do amor ensinado por Jesus, mas tal interpretação está alicerçada nas tradições e na conservação das leis.

Ao interpretar a palavra de Deus, visa-se fortalecer a tradição e conservar os preceitos religiosos. Busca-se, na Bíblia, legitimação para ambas as coisas. A vida das pessoas na diversidade de seus contextos não é levada em conta. Já na época de Jesus, os mestres da lei e fariseus se comportavam desta forma: para eles, o importante era o cumprimento da lei.

Para ilustrar, citemos um exemplo. Conta o evangelho segundo João, no cap. 8, versículos de 1 a 11, que os escribas e fariseus trouxeram uma mulher apanhada em adultério e a colocaram diante de Jesus. A lei dada por Moisés autorizava que mulheres adúlteras fossem apedrejadas. Detalhe: mulheres, não homens adúlteros! Estes não eram apedrejados.

Diante da situação, Jesus surpreende a todos, dizendo: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” Os membros da elite religiosa ficaram desconcertados, e tiveram que ir embora sem apedrejar a mulher. Jesus, dirigindo-se a ela, perguntou: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” E diante da sua resposta, Jesus pede que ela vá embora, recomendando que não pecasse mais.

Os cristãos ultraconservadores não concordam com este gesto libertador de Jesus. Eles até leem em suas Igrejas esta passagem do evangelho, mas, na prática, não concordam. Para eles, Jesus tinha que ter deixado a mulher morrer apedrejada, pois ela cometeu um pecado gravíssimo. O leitor deve ter percebido que na pedagogia de Jesus, a lei deve está a serviço da edificação da vida, e não a vida a serviço da edificação da lei.

Por causa deste e de outros casos, Jesus foi acusado de ser um rebelde, um desobediente em relação à lei. De fato, em inúmeros casos Jesus mostrou que a lei precisava ser aperfeiçoada para entrar em sintonia com a vontade de Deus. Nas Igrejas cristãs, o que os ultraconservadores não aceitam é este aperfeiçoamento da doutrina e da tradição, pois nestas, muitas coisas precisam ser revisadas à luz do evangelho de Jesus.

Isto explica a dificuldade que os cristãos tem, principalmente os ultraconservadores, para aceitarem a diversidade religiosa e cultural presente na humanidade. Eles sequer procuram, na maioria dos casos, estudar a diversidade religiosa e cultural, simplesmente a condenam e julgam segundo suas convicções religiosas.

Julgam e condenam o candomblé, a umbanda, ritmos musicais, homossexuais, prostitutas, casais de segunda união, e tantas outras religiões, situações e pessoas. Para os ultraconservadores, todos estes estão nas trevas do pecado. Repito: julgam e condenam a partir das doutrinas religiosas e das tradições de suas denominações religiosas. E o pior é que o fazem em nome de Deus, que se mostra um pecado gravíssimo, pois em nenhum momento Deus autorizou quem quer que seja para fazer tal coisa.

  1. Os ultraconservadores e o PT
Nas redes sociais encontramos facilmente um ódio contra o Partido dos Trabalhadores, partido de Lula e Dilma. Trata-se de ódio porque as expressões são carregadas de uma vontade de exterminar tanto o partido político, com seus integrantes, quanto seus simpatizantes. Parte desse ódio é praticada por cristãos católicos e evangélicos ultraconservadores.

Neste momento e somente neste, ambos cristãos se tornam “irmãos em Cristo Jesus”, deixando de lado suas diferenças religiosas para investirem, conjuntamente, contra o governo atual e seu partido. Acusam, incansavelmente, o governo federal e o PT de serem a favor do aborto, da legalização da maconha, de promoverem a cultura gay e de serem contra os valores tradicionais da família cristã.

Em primeiro lugar, é preciso considerar a ignorância (falta de conhecimento) por parte da maioria destes ultraconservadores. Eles mostram que não são bem informados, pois simplesmente recortam reportagens de jornais e revistas, assim como fazem leitura de informações fragmentadas na Internet, nos canais da mídia oficial (Globo, Veja, Istoé, Folha de São Paulo e alguns outros); além de consultarem o magistério da Igreja, principalmente os documentos emitidos antes do Concílio Vaticano II e o direito canônico, portanto, antes de a Igreja tentar abrir as portas para entrar os novos ventos da modernidade (no caso dos católicos), e fazerem uma leitura fundamentalista da Bíblia, principalmente em muitas passagens do Antigo Testamento. Somam tudo isso para atacar, impiedosamente, a presidenta e candidata Dilma Rousseff e seu partido.

A leitura de algumas postagens é escandalosamente vergonhosa. No caso dos católicos, enquanto que em Roma o papa Francisco está fazendo todo esforço para fazer com que a Igreja seja, de fato, uma humilde serva do Senhor, na acolhida dos pecadores e na prática da misericórdia, nas bases da Igreja, os ultraconservadores semeiam o ódio e a confusão através da calúnia, da injúria e da difamação.

Depois das eleições, eles calam e voltam para o seio de suas Igrejas, comportando-se como se não tivesse acontecido nada. No caso dos católicos, geralmente, pertencem a comunidades ligadas à Renovação Carismática Católica (a Canção Nova com o Pe. Paulo Ricardo é a maior representante de todas); no caso dos evangélicos, geralmente, pertencem às Igrejas neopentecostais (Universal do Reino de Deus, Assembleia de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus etc.).

Todo governante, independentemente de suas crenças religiosas, precisa cumprir a Constituição Federal. A respeito do aborto, eis o que está escrito no artigo 128 do Código Penal brasileiro: Não se pude o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante (Aborto necessário); II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Pela redação da legislação penal brasileira, criada em 1940, o leitor percebe que a lei permite essas duas formas de aborto. Quer o presidente concorde, quer não, a lei permite e as instituições de saúde estão respaldadas para efetivá-los. O que ocorre, na maioria dos casos, é que as mulheres engravidam e por vários motivos, que aqui não queremos discutir, procuram meios clandestinos para provocarem o aborto. Anualmente, são milhares de abortos cometidos clandestinamente no Brasil. Nestes casos, a lei é severa e incrimina as condutas da mulher e as de todos aqueles que concorrem para a prática do aborto.

Não existe por parte do governo federal nenhuma iniciativa ou campanha a favor da legalização do aborto. Como visto acima, as formas legais de se abortar estão previstas em lei. Somente o Poder Legislativo pode mudar a situação, criando novas leis a respeito do caso.

Não é o presidente da República, como muita gente pensa, que cria lei para incriminar ou não condutas. Tornar o aborto uma prática legal nas demais circunstâncias não previstas acima é uma discussão ampla que cabe ao Congresso Nacional realizar. Repito: o Poder Executivo não tem como função típica a criação de leis de nenhuma espécie.

            No caso da legalização do uso da maconha, até onde conheço, quem levantou abertamente esta bandeira foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas como os ultraconservadores são simpatizantes dos partidos de direita, FHC não foi tão contestado. Tal legalização é um tema importante, que precisa ser discutido, a fim de que se encontre uma solução. Cremos que toda a sociedade, juntamente com o Congresso Nacional pode chegar a uma conclusão sobre o caso. Agora, afirmar que o PT é o grande responsável por incentivar tal legalização é desconhecer os acontecimentos.

            No que se refere ao reconhecimento civil, por parte do Supremo Tribunal Federal, da união de pessoas do mesmo sexo, tal reconhecimento não é mérito do PT. Não foi este partido que encabeçou o movimento. Uma vez reconhecida tal união, é dever do Estado assegurar todos os direitos e garantias destes casais. Eles merecem ser respeitados e reconhecidos, como todos os demais brasileiros. Se os cristãos não aceitam as uniões homoafetivas, aí é um problema interno do cristianismo.  

Cremos que as Igrejas cristãs devem sentar para discutir tal questão. Se os homossexuais são ou não aceitos nas Igrejas, isto não cabe ao Estado. É uma questão religiosa. Portanto, não confundamos as coisas. Cabe ao Estado, independentemente das crenças religiosas do presidente da República e dos demais membros dos três poderes constituídos, assegurar os direitos e garantias fundamentais e zelar pela integridade das manifestações religiosas e culturais.

            Se os cristãos ultraconservadores desejam que todos os brasileiros se tornem católicos e/ou evangélicos, seguindo Jesus pautando-se nas doutrinas e tradições cristãs, este é um problema que cabe às Igrejas. Projetar esse desejo na sociedade nunca deu certo nem haverá de dar.

  1. O que devem fazer os cristãos para que seu testemunho seja escutado hoje?
A mulher e o homem pós-modernos repudiam a uniformidade. Esta não tem futuro num mundo cada vez mais plural. Assim, torna-se urgentemente necessário que os cristãos façam uma séria revisão de suas doutrinas, preceitos e tradições, trazendo o evangelho de Jesus para o centro de sua vida e missão; do contrário, continuarão mergulhados na crise na qual estão submetidos.

            Perdem a razão quando não fazem tal revisão e se voltam contra governos que visam o reconhecimento da diversidade cultural de seus povos. Os governos de direita que sempre governaram o Brasil, segundo uma análise apurada da história, eles, sim, prejudicaram e muito o autêntico progresso cultural e religioso dos povos. Unindo-se às elites tradicionais das Igrejas promoveram ditaduras, impediram as manifestações populares em prol da justiça e da igualdade de direitos e condições, reforçaram certa uniformidade, em detrimento das culturas nativas. 

O Brasil é um dos exemplos mais fortes disso. A direita conservadora, em nome da ideologia da segurança nacional e de valores ultrapassados, promoveu uma barbárie que marcará a história republicana de nosso país. Pelo que se vê, os ultraconservadores estão sentindo falta deste tempo. A candidatura do mineiro Aécio Neves representa bem estes ultraconservadores, que somente aparentam disciplina e reta intenção, mas que, na verdade, não passam de gente preconceituosa, hipócrita e ultrapassada. São merecedores desses adjetivos todos aqueles que fazem o que Deus reprova: o juízo e a condenação do próximo, em detrimento da autêntica unidade cristã que acontece na pluralidade das manifestações da fé.


Tiago de França

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