Durante o período
eleitoral, os católicos e evangélicos ultraconservadores costumam aparecer.
Eles pertencem aos segmentos mais fechados das Igrejas cristãs. Emitem seus
juízos pautando-se nas doutrinas e nas tradições de suas denominações
religiosas.
Não
bebem das fontes genuinamente evangélicas e, justamente por isso, seus juízos
não resistem à palavra de Jesus, que é pura acolhida misericordiosa dos
pecadores. Nossa reflexão quer discorrer a respeito de alguns pontos e/ou
características das falas e condutas destes ultraconservadores, a fim de que o
leitor não pense que eles são representantes legítimos de suas Igrejas.
- O papel da
religião em um mundo plural
O
grande equívoco dos ultraconservadores é pensar que estamos vivendo em tempos
de cristandade, ou seja, na época em que todas as pessoas viviam sob o domínio
da autoridade religiosa. Este tempo não existe mais. Nas sociedades
pré-modernas, a religião tinha uma força muito grande. Sua palavra era uma
ordem. Quem não obedecesse era castigado.
Os
líderes religiosos eram considerados representantes de Deus na terra e, por
isso mesmo, afirmavam ter uma autoridade concedida por Deus para abençoar e
amaldiçoar. Na Igreja católica, utilizavam-se da Inquisição para punir aqueles
que eram considerados hereges e inimigos de Deus.
Hoje,
não somos mais pré-modernos, mas, mesmo assim, contamos com milhões de cristãos
com mentalidade pré-moderna. A interpretação que estes fazem das Escrituras
Sagradas é antievangélica, pois não leva em consideração o mandamento do amor
ensinado por Jesus, mas tal interpretação está alicerçada nas tradições e na
conservação das leis.
Ao
interpretar a palavra de Deus, visa-se fortalecer a tradição e conservar os
preceitos religiosos. Busca-se, na Bíblia, legitimação para ambas as coisas. A
vida das pessoas na diversidade de seus contextos não é levada em conta. Já na
época de Jesus, os mestres da lei e fariseus se comportavam desta forma: para
eles, o importante era o cumprimento da lei.
Para
ilustrar, citemos um exemplo. Conta o evangelho segundo João, no cap. 8,
versículos de 1 a 11, que os escribas e fariseus trouxeram uma mulher apanhada
em adultério e a colocaram diante de Jesus. A lei dada por Moisés autorizava
que mulheres adúlteras fossem apedrejadas. Detalhe: mulheres, não homens
adúlteros! Estes não eram apedrejados.
Diante
da situação, Jesus surpreende a todos, dizendo: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” Os
membros da elite religiosa ficaram desconcertados, e tiveram que ir embora sem
apedrejar a mulher. Jesus, dirigindo-se a ela, perguntou: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” E diante da sua
resposta, Jesus pede que ela vá embora, recomendando que não pecasse mais.
Os
cristãos ultraconservadores não concordam com este gesto libertador de Jesus. Eles
até leem em suas Igrejas esta passagem do evangelho, mas, na prática, não
concordam. Para eles, Jesus tinha que ter deixado a mulher morrer apedrejada,
pois ela cometeu um pecado gravíssimo. O leitor deve ter percebido que na
pedagogia de Jesus, a lei deve está a serviço da edificação da vida, e não a
vida a serviço da edificação da lei.
Por
causa deste e de outros casos, Jesus foi acusado de ser um rebelde, um desobediente
em relação à lei. De fato, em inúmeros casos Jesus mostrou que a lei precisava
ser aperfeiçoada para entrar em sintonia com a vontade de Deus. Nas Igrejas
cristãs, o que os ultraconservadores não aceitam é este aperfeiçoamento da
doutrina e da tradição, pois nestas, muitas coisas precisam ser revisadas à luz
do evangelho de Jesus.
Isto
explica a dificuldade que os cristãos tem, principalmente os
ultraconservadores, para aceitarem a diversidade religiosa e cultural presente
na humanidade. Eles sequer procuram, na maioria dos casos, estudar a
diversidade religiosa e cultural, simplesmente a condenam e julgam segundo suas
convicções religiosas.
Julgam
e condenam o candomblé, a umbanda, ritmos musicais, homossexuais, prostitutas, casais
de segunda união, e tantas outras religiões, situações e pessoas. Para os
ultraconservadores, todos estes estão nas trevas do pecado. Repito: julgam e
condenam a partir das doutrinas religiosas e das tradições de suas denominações
religiosas. E o pior é que o fazem em nome de Deus, que se mostra um pecado
gravíssimo, pois em nenhum momento Deus autorizou quem quer que seja para fazer
tal coisa.
- Os
ultraconservadores e o PT
Nas
redes sociais encontramos facilmente um ódio contra o Partido dos
Trabalhadores, partido de Lula e Dilma. Trata-se de ódio porque as expressões são
carregadas de uma vontade de exterminar tanto o partido político, com seus
integrantes, quanto seus simpatizantes. Parte desse ódio é praticada por
cristãos católicos e evangélicos ultraconservadores.
Neste
momento e somente neste, ambos cristãos se tornam “irmãos em Cristo Jesus”,
deixando de lado suas diferenças religiosas para investirem, conjuntamente,
contra o governo atual e seu partido. Acusam, incansavelmente, o governo
federal e o PT de serem a favor do aborto, da legalização da maconha, de
promoverem a cultura gay e de serem contra os valores tradicionais da família
cristã.
Em
primeiro lugar, é preciso considerar a ignorância (falta de conhecimento) por
parte da maioria destes ultraconservadores. Eles mostram que não são bem
informados, pois simplesmente recortam reportagens de jornais e revistas, assim
como fazem leitura de informações fragmentadas na Internet, nos canais da mídia
oficial (Globo, Veja, Istoé, Folha de São Paulo e alguns outros); além de
consultarem o magistério da Igreja, principalmente os documentos emitidos antes
do Concílio Vaticano II e o direito canônico, portanto, antes de a Igreja
tentar abrir as portas para entrar os novos ventos da modernidade (no caso dos
católicos), e fazerem uma leitura fundamentalista da Bíblia, principalmente em
muitas passagens do Antigo Testamento. Somam tudo isso para atacar,
impiedosamente, a presidenta e candidata Dilma Rousseff e seu partido.
A
leitura de algumas postagens é escandalosamente vergonhosa. No caso dos
católicos, enquanto que em Roma o papa Francisco está fazendo todo esforço para
fazer com que a Igreja seja, de fato, uma humilde serva do Senhor, na acolhida
dos pecadores e na prática da misericórdia, nas bases da Igreja, os ultraconservadores
semeiam o ódio e a confusão através da calúnia, da injúria e da difamação.
Depois
das eleições, eles calam e voltam para o seio de suas Igrejas, comportando-se
como se não tivesse acontecido nada. No caso dos católicos, geralmente,
pertencem a comunidades ligadas à Renovação Carismática Católica (a Canção Nova
com o Pe. Paulo Ricardo é a maior representante de todas); no caso dos
evangélicos, geralmente, pertencem às Igrejas neopentecostais (Universal do
Reino de Deus, Assembleia de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus etc.).
Todo
governante, independentemente de suas crenças religiosas, precisa cumprir a
Constituição Federal. A respeito do aborto, eis o que está escrito no artigo
128 do Código Penal brasileiro: Não se
pude o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida
da gestante (Aborto necessário); II –
se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Pela
redação da legislação penal brasileira, criada em 1940, o leitor percebe que a
lei permite essas duas formas de aborto. Quer o presidente concorde, quer não,
a lei permite e as instituições de saúde estão respaldadas para efetivá-los. O
que ocorre, na maioria dos casos, é que as mulheres engravidam e por vários
motivos, que aqui não queremos discutir, procuram meios clandestinos para
provocarem o aborto. Anualmente, são milhares de abortos cometidos
clandestinamente no Brasil. Nestes casos, a lei é severa e incrimina as condutas
da mulher e as de todos aqueles que concorrem para a prática do aborto.
Não
existe por parte do governo federal nenhuma iniciativa ou campanha a favor da
legalização do aborto. Como visto acima, as formas legais de se abortar estão
previstas em lei. Somente o Poder Legislativo pode mudar a situação, criando
novas leis a respeito do caso.
Não
é o presidente da República, como muita gente pensa, que cria lei para
incriminar ou não condutas. Tornar o aborto uma prática legal nas demais
circunstâncias não previstas acima é uma discussão ampla que cabe ao Congresso
Nacional realizar. Repito: o Poder Executivo não tem como função típica a
criação de leis de nenhuma espécie.
No caso da legalização do uso da maconha, até onde
conheço, quem levantou abertamente esta bandeira foi o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, mas como os ultraconservadores são simpatizantes dos partidos
de direita, FHC não foi tão contestado. Tal legalização é um tema importante,
que precisa ser discutido, a fim de que se encontre uma solução. Cremos que
toda a sociedade, juntamente com o Congresso Nacional pode chegar a uma
conclusão sobre o caso. Agora, afirmar que o PT é o grande responsável por
incentivar tal legalização é desconhecer os acontecimentos.
No que se refere ao reconhecimento civil, por parte do
Supremo Tribunal Federal, da união de pessoas do mesmo sexo, tal reconhecimento
não é mérito do PT. Não foi este partido que encabeçou o movimento. Uma vez
reconhecida tal união, é dever do Estado assegurar todos os direitos e
garantias destes casais. Eles merecem ser respeitados e reconhecidos, como
todos os demais brasileiros. Se os cristãos não aceitam as uniões homoafetivas,
aí é um problema interno do cristianismo.
Cremos
que as Igrejas cristãs devem sentar para discutir tal questão. Se os
homossexuais são ou não aceitos nas Igrejas, isto não cabe ao Estado. É uma
questão religiosa. Portanto, não confundamos as coisas. Cabe ao Estado,
independentemente das crenças religiosas do presidente da República e dos
demais membros dos três poderes constituídos, assegurar os direitos e garantias
fundamentais e zelar pela integridade das manifestações religiosas e culturais.
Se os cristãos ultraconservadores desejam que todos os
brasileiros se tornem católicos e/ou evangélicos, seguindo Jesus pautando-se
nas doutrinas e tradições cristãs, este é um problema que cabe às Igrejas.
Projetar esse desejo na sociedade nunca deu certo nem haverá de dar.
- O que devem fazer
os cristãos para que seu testemunho seja escutado hoje?
A
mulher e o homem pós-modernos repudiam a uniformidade. Esta não tem futuro num
mundo cada vez mais plural. Assim, torna-se urgentemente necessário que os
cristãos façam uma séria revisão de suas doutrinas, preceitos e tradições,
trazendo o evangelho de Jesus para o centro de sua vida e missão; do contrário,
continuarão mergulhados na crise na qual estão submetidos.
Perdem a razão quando não fazem tal revisão e se voltam
contra governos que visam o reconhecimento da diversidade cultural de seus
povos. Os governos de direita que sempre governaram o Brasil, segundo uma
análise apurada da história, eles, sim, prejudicaram e muito o autêntico
progresso cultural e religioso dos povos. Unindo-se às elites tradicionais das
Igrejas promoveram ditaduras, impediram as manifestações populares em prol da
justiça e da igualdade de direitos e condições, reforçaram certa uniformidade,
em detrimento das culturas nativas.
O
Brasil é um dos exemplos mais fortes disso. A direita conservadora, em nome da
ideologia da segurança nacional e de valores ultrapassados, promoveu uma
barbárie que marcará a história republicana de nosso país. Pelo que se vê, os
ultraconservadores estão sentindo falta deste tempo. A candidatura do mineiro
Aécio Neves representa bem estes ultraconservadores, que somente aparentam
disciplina e reta intenção, mas que, na verdade, não passam de gente
preconceituosa, hipócrita e ultrapassada. São merecedores desses adjetivos
todos aqueles que fazem o que Deus reprova: o juízo e a condenação do próximo,
em detrimento da autêntica unidade cristã que acontece na pluralidade das
manifestações da fé.
Tiago de França
Nenhum comentário:
Postar um comentário