“Amai-vos uns aos outros, pois
o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3, 14).
Neste domingo após a solene
celebração do Natal do Senhor, a Igreja católica celebra a festa da Sagrada
Família de Jesus, Maria e José. Muito pode ser dito sobre a instituição
familiar, célula fundamental da sociedade; mas, à luz dos textos bíblicos da
festa (cf. Eclo 3,3-7.14-17a; Sl 127; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23) e da
realidade brasileira, queremos oferecer algumas provocações que podem nos
ajudar a pensar a situação da família hoje.
A família pode ser real e ideal. A
família real é a que temos, que se apresenta hoje em nossa sociedade, marcada
pelas crises que assolam a humanidade. Não existe família fora da realidade.
Portanto, tudo o que afeta a realidade social, afeta também a família. Não nos
parece correto pensar a família, partindo de um modelo ideal. As vicissitudes
humanas não nos permitem alcançar o ideal de família; o ser humano não consegue
chegar à perfeição. Assim, família perfeita somente a de Jesus, Maria e José.
Caminha-se para o ideal, inspirando-se neste, mas com a humildade de reconhecer
as limitações inerentes às pessoas e suas respectivas famílias.
Se nenhuma família é perfeita,
exceto a de Jesus de Nazaré, então é incorreta e inadequada toda pregação que
julga e condena as famílias. Ninguém recebeu de Deus a missão de agir dessa
forma. Cabe à Igreja refletir e promover o bem da família, pois este bem é “decisivo para o futuro do mundo e da
Igreja” (Amoris Laetitia, n. 31).
Nesta mesma exortação apostólica, no n. 36, o Papa Francisco, com a humildade
que lhe é peculiar, diz: “Ao mesmo tempo
devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira
de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram
a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar
reação de autocrítica”.
Em muitas comunidades cristãs
encontramos pessoas que se recusaram a celebrar o matrimônio na Igreja após
terem escutado os líderes cristãos falar sobre as convicções cristãs a respeito
do sacramento do matrimônio. Apresenta-se, muitas vezes, um ideal inalcançável
de família, um modelo excessivamente rígido e distante da realidade, bem como
desprovido de fundamentação bíblica. Facilmente, aqueles que lidam com as pastorais
e movimentos, com a reflexão e acompanhamento de casais e famílias podem cair
num subjetivismo doentio, que tende a induzir casais e famílias a trilharem
caminhos que não condizem com práticas e vivências saudáveis e fundamentadas na
experiência familiar de Jesus de Nazaré.
Para ilustrar, citemos um exemplo de
enrijecimento bastante nocivo que aparece no trabalho pastoral com casais e
famílias, que afasta as pessoas, convencendo-as de não querer participar do respectivo
trabalho pastoral e a não abraçar o matrimônio na Igreja: a preocupação
excessiva com o pecado. É verdade que o pecado existe e integra a condição
humana. Todos são pecadores. Mas para ser um casal e uma família de Deus não há
necessidade de centralizar o pecado na reflexão da fé no seio familiar. A
ênfase excessiva no pecado traz consigo a figura do diabo, de modo que este é
mais citado que o próprio Cristo no seio de muitas famílias fervorosamente
católicas.
A graça que purifica e santifica deve ocupar o centro da
reflexão da fé na família. A Trindade Santa é o centro. Se a família se entrega
a Deus, não é necessário preocupar-se com o pecado, pois não é o diabo e o
pecado a centralidade da vida familiar. Todo excesso é sintomático, e a ênfase
na atividade diabólica pode ser sinal indicador de falta de fé no Cristo que
venceu o pecado e a morte.
No que se refere ao bem da família,
não restam dúvidas de que a família não vai bem, e os motivos são inúmeros. Um
dos motivos, talvez o principal, é a crise de valores que assola a humanidade.
Hoje, mais que em outras épocas, alguns valores fundamentais que promovem o bem
da família estão sendo relativizados. Amor,
perdão, solidariedade, compreensão, fidelidade, confiança, justiça, humildade,
mansidão, respeito, e outros valores inerentes às relações interpessoais e
familiares estão sendo relativizados e, consequentemente, considerados
ultrapassados e dispensáveis. Sem a vivência desses valores não é possível
construir família.
As novas configurações familiares
que vão surgindo na sociedade constituem outro desafio para o trabalho de
evangelização das famílias. Há uma configuração tradicional, que integra a
doutrina tradicional da Igreja católica: a família é a relação amorosa que se
dá entre pai, mãe e filhos. Com o surgimento dos inúmeros problemas que afetam
o gênero humano, foram surgindo famílias com outras configurações: pai criando
os filhos; mãe criando os filhos; avós criando os netos; tios criando os
sobrinhos; adotantes criando adotados; vizinhos criando filhos dos outros.
Ultimamente, devido à possibilidade de adoção no âmbito civil, surgiram as
“famílias homoafetivas”: casais homoafetivos que adotam crianças. A Igreja
católica ensina que as uniões homoafetivas não podem ser equiparadas ao
matrimônio (cf. o n. 52 da Amoris
Laetitia).
Não queremos discorrer, nesta breve
reflexão, a respeito desta vedação. Quem sabe noutra oportunidade poderemos
refletir sobre o tema. É possível que esta questão conheça futuros
desdobramentos na reflexão teológica da Igreja católica. Independentemente
disso, é necessário que se considere que as uniões homoafetivas não constituem
uniões doentias, nem uma ameaça à ordem social. Também não ameaçam a
instituição familiar defendida e promovida pela Igreja católica. Não gera
comunhão nem acolhida a declaração de juízo e condenação de situações
familiares que não se encaixam no modelo tradicional de família. A missão da
Igreja é acolher, compreender e promover o bem das pessoas e da sociedade,
jamais se colocando como instituição que julga e condena pessoas e situações
familiares. O amor, valor fundamental da família, também está presente na
variedade das situações familiares que surgem no mundo atual. Isto é inegável. Acima
das discordâncias e da falta de conformidade com a doutrina da Igreja católica está
o amor, que santifica e salva a todos.
Quando escreve aos colossenses, Paulo
diz que o amor é o vínculo da perfeição.
No Natal celebramos a encarnação do amor no mundo. É este amor que sustenta a
família. Sem o amor não existe nem matrimônio nem família. O vínculo que une o
casal, que legitima o consentimento manifestado no enlace matrimonial, é o
amor. Este é a base sobre a qual a família é construída e mantida. No amor, a
família participa da vida divina. O amor é a solução para todos os problemas enfrentados
pela família: desunião, infidelidade, descrença, apatia, intrigas, esfriamento
das relações, revoltas etc. No amor, a família permanece em Deus, e nele
encontram a felicidade e a paz.
No amor, os filhos respeitam e amam
seus pais. Honrar pai e mãe é ensinamento divino que se vive no amor. A ingratidão
dos filhos para com seus pais é sinal evidente da falta de amor. Não é mera
desconsideração. Se um/a filho/a não ama seus pais, deve analisar o próprio
conceito de amor. Trata-se de um pecado gravíssimo a ausência de amor para com
os pais. Deus abençoa abundantemente os filhos que honram seus pais. Filhos que
desonram seus pais são pessoas infelizes, maus exemplos para aqueles que serão
seus filhos e para toda a comunidade. Mesmo quando os pais são infiéis e
ingratos, os filhos são chamados a dar testemunho de gratidão e fidelidade,
pois não se deve pagar o mal com o mal.
Também os pais são abençoados,
quando amam seus filhos. O amor se manifesta no cuidado para com eles. Pais irresponsáveis,
que não cuidam, desprezam, maltratam e abandonam os filhos cometem grave pecado
diante de Deus. Amar os filhos é sinônimo de cuidado responsável, de afeto e
atenção, de proteção e respeito. Assim como Maria e José, os pais são chamados
ao cuidado amoroso, manifestando, assim, o amor infinito de Deus. A maternidade
e a paternidade são dons de Deus, que frutificam no amor, na fé e na esperança.
A sociedade brasileira continuará
gravemente enferma se não valorizar, respeitar e promover a família e seus
respectivos valores. Estamos falando de famílias abertas, acolhedoras,
dispostas a contribuir com o progresso integral dos brasileiros. Neste sentido,
a família não pode ser usada pelos moralistas de plantão, que destituídos de
autoridade moral, apresentam-se como defensores de um modelo de família que
julga e condena pessoas e grupos sociais.
Este modo de proceder é violento e, consequentemente,
antievangélico. Em nome da família não podemos julgar e condenar as pessoas.
Deus não instituiu a família com esta finalidade. A família nasceu para
acolher, educar, promover a dignidade da pessoa humana. Família é lugar de
humanização, berço do amor, casa do Evangelho, Igreja doméstica, morada de
Deus, lugar da fraternidade. Fora disso, não passa de mentira e confusão,
aparência de amor e lugar propício para toda espécie de abuso. Que nossas
famílias se transformem em casas do amor, escolas de aprendizagem da fé, da
esperança e do amor.
Tiago
de França
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