quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A instrumentalização do Direito e as injustiças sociais


       Geralmente, as pessoas confundem Direito com Justiça, bem como Justiça com Judiciário. Em breves linhas, queremos oferecer algumas provocações que podem ajudar a clarear um pouco as diferenças não somente conceituais, mas, sobretudo, práticas destas realidades.

            O Direito é uma ciência. No curso de Direto fala-se da possibilidade de uma ciência jurídica. Assim como as demais ciências, a ciência jurídica é criação humana, sujeita a manipulações. O homem criou o Direito e o aperfeiçoa a partir das evoluções que vão se dando nas diversas sociedades ao longo da história.

            Como ciência, há teorias e técnicas. De forma sucinta, podemos dizer que no Direito, temos as leis, que podem ser materiais e processuais. Lei material trata dos direitos em geral como, por exemplo, o direito à educação. Há uma hierarquia entre as leis, estando a Constituição no topo da pirâmide legal. A Constituição é a Lei Maior, a Lei Fundamental, a Carta Magna. Abaixo dela, podemos encontrar as demais leis: complementares e ordinárias, entre outros regulamentos.

            A lei processual é a que rege os processos. Temos a lei processual civil (código de processo civil), a lei processual penal (código de processo penal) e outras. Isso significa que o processo não pode ser realizado de qualquer forma, pois há leis que regem os processos. Há ritos processuais a serem observados, para que se possa ter a legalidade na aplicação da lei. Processos que fogem da lei processuais são nulos, ou viciados, impondo-se a nulidade, ou a revisão processual.

            Portanto, a ciência jurídica é técnica e exige habilidade. O operador do Direito (juiz, advogado, ministério público) são pessoas que estudam a ciência jurídica e são capacitados para lidar com ela. São técnicos, manipuladores (no bom sentido do termo) da ciência e da técnica processuais. Sem o estudo sistemático da ciência jurídica, toda e qualquer opinião não passa de achismo. Em matéria científica, o achismo não tem valor, pois, em ciência, “quem acha” não conhece.

            Isso significa, ainda, que todos os institutos materiais e processuais do Direito possuem fundamentação, que implica conhecimento da matéria (daquilo que cada instituto significa) e da técnica processual (do como se aplica). Em outras palavras, é necessário saber o que é e como se aplica. Durante todo o curso de Direito, em um percurso formativo de cinco anos, aprende-se, sistematicamente, estas duas coisas: o que é e como se aplica cada instituto do Direito. A sistemática jurídica é complexa, densa e sujeita a constantes atualizações.

            Nos Tribunais temos a jurisprudência, que consiste no entendimento firmado acerca de determinada questão, que passa a ser seguido de forma vinculante (obrigatória). A jurisprudência, na prática jurídica, funciona como que uma lei processual que deve ser observada. Não é lei, mas é como se fosse. Exemplo: a partir da última decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão após condenação em segunda instância, a jurisprudência deste Tribunal firmou o entendimento vinculante de que não se pode mandar prender após a condenação em segunda instância, exceto nos casos em que caiba prisão, nos termos do artigo 282 do Código de Processo Penal (medidas cautelares).

            No curso de Direito se aprende que aos operadores do Direito, enquanto seres humanos dotados de subjetividade, é possível a manipulação (no mau sentido da palavra) do Direito para fins contrários à justiça; considerando que esta é o resultado daquele. Facilmente, o Direito pode se transformar em instrumento de opressão e, portanto, de injustiças. A manipulação da ciência jurídica, praticada nos Tribunais, mostra que é possível desrespeitar os direitos e garantias fundamentais se utilizando da própria lei. Trata-se do que se passou a chamar de injustiça institucionalmente legalizada.

            O legislador, aquele que cria as leis (Poder Legislativo: vereadores, deputados e senadores), é capaz de criar leis injustas, e nos Tribunais estas leis podem ser aplicadas, sem dar ao cidadão a possibilidade de recorrer a quem quer que seja. Se a lei injusta foi criada respeitando-se o processo legislativo previsto, e se os Tribunais aplicam tal lei respeitando o devido processo legal, o cidadão vai recorrer a quem? Parece ser isto que está acontecendo no Brasil. Dois exemplos claros disso são as reformas trabalhista e previdenciária, que foram pensadas não para beneficiar os que mais precisam, mas para manter as vantagens e privilégios dos mais ricos dos brasileiros.

            Além da aplicação de leis injustas, os juízes, únicos que podem julgar, segundo a Constituição, podem também cometer injustiças contra as pessoas, principalmente as pessoas pobres. Estas pessoas costumam repetir nas rodas de conversas: “O pobre não tem vez quando procura a Justiça”. Corrigindo a expressão, o correto seria dizer: “O pobre não tem vez quando procura o Judiciário”. Muitas vezes, este não pratica a Justiça. De modo geral, os pobres não encontram saída, sendo, portanto, obrigados a sofrer sem ter para onde correr: “Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come!”, diz o ditado popular.

            É verdade que existem bons juízes, preocupados com esta situação. Juízes que aplicam a lei, de forma justa, e até questionam as leis injustas, esforçando-se para torná-las menos nocivas aos mais pobres. Estes juízes existem, mas não constituem a maioria da magistratura. Os mais ricos sabem disso, e encontram na maioria do Judiciário, do Executivo e do Legislativo o apoio necessário para manter suas vantagens e privilégios injustos. A maioria dos que compõem estes três poderes da República veio das famílias ricas. Por isso, a tendência é defender os interesses dos ricos. Esta é uma realidade histórica.

            As notícias revelam uma realidade vergonhosa de manipulação judicial. Muitas decisões judiciais são visivelmente injustas, pois não correspondem ao que se considera Justiça. Basta ter bom senso para perceber que tais decisões são viciadas, pautadas na subjetividade de quem trabalha para beneficiar pessoas e grupos, em detrimento do bem comum. São decisões que ferem os direitos e garantias, violando, assim, a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da ordem constitucional vigente.

            Um caso, entre outros, que revela esta vergonhosa situação é o da investigação da Polícia Federal na Bahia. A operação Faroeste, cuja 4ª fase foi deflagrada nesta quinta-feira, 19 de dezembro, investiga um suposto esquema criminoso de venda de decisões judiciais por juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia. É apenas uma demonstração, pois não se trata de caso isolado. O mais vergonhoso é saber que, muitas vezes, estas investigações não resultam em condenação e cumprimento de sentença. Quando o réu é juiz, o processo se desenrola por anos, e quando não resulta em condenação, ocorre a prescrição do crime, livrando o réu da necessária punição.

            Por incrível que pareça, a saída para este problema está no exercício livre e consciente do voto nas eleições. As pessoas precisam ter consciência da importância do Poder Legislativo para o progresso do País. Vereadores, deputados e senadores criam as leis. No Estado Democrático de Direito, a economia, a cultura e todas as demais dimensões da vida social dependem da política.

O Brasil precisa de políticos competentes e honestos. E não adianta dizer que não existe político honesto. Isso é mentira. Temos boas pessoas na política, e outras desejosas de atuar na política partidária. O problema está na falta de educação política, que provoca o que estamos assistindo hoje: políticos incompetentes e desonestos, eleitos por uma nação formada por gente ignorante (a maioria do povo brasileiro não sabe sequer o significado da palavra política!).

Bons políticos acreditam na educação como caminho capaz de assegurar o verdadeiro progresso. Uma educação de qualidade, acessível a todos. Uma educação que não priorize a criação de mão de obra para o mercado financeiro, mas capacite as pessoas não somente para atuar no mercado de trabalho, mas, sobretudo, atuar na sociedade como cidadãos livres e conscientes. A maioria de nossos políticos revela o tamanho da ignorância da grande maioria do povo brasileiro.

Se tivéssemos uma educação de qualidade, acessível a todos e que promovesse a conscientização dos brasileiros, o País certamente seria diferente, mais justo e menos desigual. Teríamos cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres; políticos atuantes, que agiriam em prol do bem comum; juízes competentes e promotores da justiça social; enfim, um povo verdadeiramente brasileiro, livre e igualitário, modelo para o resto do mundo.

Tiago de França

2 comentários:

Ana Maria Zodi disse...

A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto. (Darcy Ribeiro). Se tivéssemos uma educação libertadora, como dizia Paulo Freire, o país seria muito melhor. Mas o sistema não quer.

Tiago de França disse...

Verdade, Ana. Estamos vivenciando uma situação vergonhosa. Rezemos.