quinta-feira, 5 de março de 2020

O pecado e a graça


“A mensagem de Jesus é a misericórdia”. (Papa Francisco)
            O tempo da Quaresma é oportuno para falarmos do pecado e da graça. O que nos orienta nesta meditação é o trecho do evangelho de Jesus segundo Lucas 18, 9-14 e estas belíssimas palavras do Papa Francisco que introduzem estas breves reflexões.
            O texto de Lucas nos fala de duas pessoas que se colocaram diante de Deus em oração: um era fariseu, e o outro, publicano (cobrador de impostos). Em sua oração, o fariseu começa agradecendo a Deus por não ser “como os outros”. Estes “outros” eram os ladrões, os desonestos, os adúlteros e o publicano. O fariseu reza em tom de superioridade, ou seja, colocando-se acima dos outros, apresentando-se como alguém superior.
            Este tipo de atitude não agrada a Deus. Sentir-se superior aos outros já constitui um pecado. Trata-se de uma postura orgulhosa. Deus não escuta a prece do orgulhoso. Este tipo de comportamento não deveria existir, pois todos somos pecadores. A condição de pecador é única: todos dela participamos. Um pecador não deve apontar o pecado do outro. A ninguém Jesus deu este poder. Quem assim procede, comete pecado e se afasta de Deus.
            Em seguida, o fariseu acrescenta que jejuava duas vezes por semana e pagava o dízimo de toda a sua renda. Estas eram as suas obras. Ele parecia querer se justificar diante de Deus a partir destas suas obras. O fariseu era um fiel cumpridor dos preceitos religiosos. Mas isto não basta. A justificação não passa pelo fiel cumprimento dos preceitos. É verdade que estes possuem o seu lugar e a sua importância na vida cristã. Mas por si mesmos não salvam, nem justificam a pessoa diante de Deus.
            É necessário ir além. A mera observância das leis é muito pouco para Deus. Jesus nos revelou que o mais importante é o amor a Deus e ao próximo. Trata-se de um amor exigente, que requer renúncia, entrega, disponibilidade, encontro, abraço, gestos concretos. O amor é ação que nos faz transcender a nós mesmos. O amor nos arrebata para a mais alta e sublime comunhão com Deus na relação amorosa com o próximo. Este é o que está caído à beira dos caminhos da vida, carente de nossa atenção e cuidado.
            O fariseu jejuava e pagava o dízimo, mas não estava aberto ao próximo. Este não foi contemplado na lista de suas preocupações. O fariseu estava preocupado em ser fiel às prescrições de sua religião, pois o mais importante era o cumprimento da lei. O publicano não cumpria a lei, mas era um pecador público, pessoa rejeitada e odiada pelos outros, porque cobrava além do estabelecido.
            O texto fala de três gestos que integram a atitude do publicano em sua maneira de rezar: ficou à distância, não se atrevia a levantar os olhos e batia no peito. É a postura de quem se reconhece pecador, de quem tem consciência de seu pecado. A sua oração revela esta verdade: “Meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador”. O publicano se humilhou diante de Deus, enquanto que o fariseu se exaltou.
            Somente quem se reconhece pecador está em condições de implorar a misericórdia divina. Este reconhecimento é a porta de entrada para a mudança de vida. Como se converter sem se reconhecer pecador? A clareza e consciência dos próprios pecados, e o firme propósito de emendar-se são requisitos essenciais para a experiência da misericórdia de Deus. O texto fala que o publicano voltou para casa justificado, e o fariseu não. O publicano se mostrou necessitado da misericórdia de Deus. Não sofria do pecado da autossuficiência.
            Em nossas comunidades cristãs encontramos muitas pessoas que imitam a atitude do fariseu: pessoas que cumprem os preceitos religiosos e batem no peito, achando-se perfeitas e justas somente por causa disso. Não é possível conhecer a bondade do coração de Jesus comportando-se desse jeito. A falsa piedade esconde uma multidão de pecados. Não adianta cumprir os preceitos se não amamos o próximo. Este farisaísmo religioso está causando o descrédito da religião cristã.
            Há uma multidão de ovelhas e pastores que desconhecem a misericórdia divina, pois se colocam como juízes da conduta alheia; são arrogantes e impiedosos, orgulhos e prepotentes, amigos da aparência que ilude e engana. Jesus reprovou tais coisas, e as denunciou com veemência. Jesus nos revelou a face de um Deus todo-misericordioso, que não se cansa de perdoar, que sempre nos espera de braços abertos, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva.
            A graça nos liberta do pecado do fechamento em nós mesmos, em nossa própria justiça. Na verdade, é a justiça de Deus que prevalece. Certamente, não podemos defender nem promover a impunidade. Mas não podemos utilizar o discurso contra a impunidade para praticarmos injustiças contra o próximo. A justiça divina restaura a vida do pecador, levando-o a reconhecer o seu pecado, acolhendo-o.
Quando alcançados pela misericórdia divina somos tomados pela serenidade, alegria, mansidão, compreensão e paz. Quem experimenta a misericórdia divina, recebe o perdão de Deus e se torna misericordioso com o próximo. Quem não é misericordioso desconhece a misericórdia de Deus; desconhece a mensagem de Jesus.
            No seio do cristianismo está ressurgindo movimentos e grupos rigoristas, que exaltam uma falsa defesa da tradição. É falsa defesa porque se utilizam da tradição para julgar e condenar os outros. Isto é pecado. Não é graça, mas desgraça. Grande parcela destes rigoristas é formada por sepulcros caiados, que jogam pesados fardos nas costas dos outros. Não são pessoas íntegras e honestas, mas praticantes da falsa religiosidade, capazes de atos terríveis contra o próximo.
            O tempo quaresmal é uma feliz oportunidade para compreendermos e assimilarmos esta realidade belíssima que é a misericórdia divina. Esta é a pura manifestação da graça de Deus, que é infinita e disponível a todos. Não podemos deixar que esta graça passe despercebida, mas que nos preencha e nos liberte, para sermos divinamente humanos, reconciliados e felizes, livres e fieis.

Tiago de França

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