quarta-feira, 23 de julho de 2014

A liberdade dos profetas

“Foi-me dirigida a palavra do Senhor, dizendo: ‘Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações’” (Jr 1, 5).

            A profecia é uma vocação, um chamado de Deus. Desde o Judaísmo antigo até nossos dias, os profetas sempre existiram. Para os cristãos, além de Filho de Deus, Jesus é o profeta por excelência. Também os judeus reconheceram que Jesus era profeta, e os discípulos que desciam para Emaús, após o episódio da crucificação, disseram que se tratava de um profeta poderoso, em palavras e obras. 

Nossa reflexão será ilustrada com dois testemunhos proféticos: o testemunho de Jesus de Nazaré e o de Dom Oscar Romero, bispo católico assassinado em El Salvador, na América Central, em março de 1980. Iniciemos falando da missão do profeta e, assim, descobriremos a sua liberdade. Ao falarmos dos profetas, também estamos considerando a vocação das profetisas.

            Quando se afirma que ser profeta corresponde a uma vocação, a um chamado de Deus, isto significa que se trata de um escolhido por Deus para o exercício de uma missão específica. Portanto, o profeta vive segundo os desígnios de Deus, pautando sua vida a partir da missão que lhe é confiada por Deus. Esta missão acontece neste mundo, especialmente no meio dos pobres.  

O profeta realiza a opção divina pelos marginalizados neste mundo, opção claramente visível no testemunho das Sagradas Escrituras. Não é o profeta que escolhe aleatoriamente e/ou segundo sua vontade o lugar no qual vai realizar a sua missão, mas vai para onde Deus envia, mesmo que a vontade divina contrarie a sua própria vontade. A escolha pertence a Deus, a iniciativa sempre parte d’Ele.

            Deus chama o profeta através do clamor dos pobres. As inúmeras injustiças geram dor e sofrimento, assim como um forte grito por justiça. O povo dos pobres clama por profetas e Deus escuta seu clamor, enviando seus mensageiros. Para fazer justiça aos pobres, Deus age pela boca e pelas mãos dos profetas.  

Na boca destes se encontra a palavra transformadora de Deus, uma palavra capaz de “extirpar e destruir, devastar e derrubar, construir e plantar” (Jr 1, 10). Por meio das mãos do escolhido, o Deus e Pai dos pobres socorre as vítimas das injustiças, curando-lhes as feridas, concedendo-lhes conforto e força.

            Geralmente, as palavras do profeta são consideras duras e pessimistas. Certo dia, os discípulos de Jesus reclamaram da dureza de seu ensinamento e receberam a seguinte resposta: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6, 67). Esta pergunta de Jesus revela a sua liberdade. Ele era livre e não queria escravos, mas discípulos livres para fazer outros ingressarem no mesmo caminho de liberdade.  

O profeta segue o mesmo exemplo: não se prende nem submete ninguém. A vocação profética só se realiza na liberdade. Os poderosos deste mundo não conseguem deter o profeta: não conseguem corrompê-lo, pois se trata de pessoa ungida pelo Espírito do Senhor, possuindo, dessa forma, a força divina para resistir às propostas que tendem a reforçar as forças do anti-Reino.

            Esta força divina conduz o profeta na missão até as últimas consequências. A maioria alcança a coroa do martírio, outros os poderosos não dão conta de matar. Dom Helder Câmara foi um dos profetas que não chegou ao derramamento de sangue, mas viveu o martírio de maneira diferente. Também Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia – MT: foi bastante ameaçado, mas não conseguiram matá-lo. Este último, ainda vivo, é um dos maiores profetas da Igreja católica no Brasil.

            O profeta sabe dos riscos que corre. Sabe também que conta com a força de Deus. Os poderosos sabem que se trata de um homem de Deus e com os escolhidos de Deus não se brinca. Mesmo assim, os opositores do Reino de Deus não sossegam; ameaçam e fazem de tudo para eliminar os profetas porque estes incomodam e representam uma ameaça constante.

Como lutam contra a força divina, entãao não triunfam, pois sua ruína pode até ser tardia, mas é certa como o nascer do sol. O profeta está a serviço do projeto de Deus, que é a edificação de seu Reino. Os poderosos estão a serviço dos próprios projetos, alicerçados nos interesses e ambições. Antes de falarmos do testemunho de dom Oscar Romero, vamos encerrar nossas considerações a respeito da vocação profética falando do lugar da denúncia e do anúncio na vida profética.  

            O profeta é um homem da denúncia, chamado a arrancar e destruir. Esta é constituída pela revelação da realidade. O profeta fala da realidade, revelando-a, desmascarando-a. Ele sabe que os poderosos procuram deturpar a verdade. Deus concede ao profeta o dom da visão da realidade. Causa admiração e medo em muita gente a visão do profeta. “Como conseguiu enxergar isso? Será que é isto mesmo? De onde vem a perspicácia desta visão?...”: são algumas das perguntas que costumam surgir, provocadas pela ação profética.

A denúncia profética é dirigida a toda pessoa e estrutura que se opõem à edificação do Reino de Deus. Quando necessário, o profeta denuncia sua própria família e religião, assim como toda autoridade e força poderosa que explora e oprime o povo de Deus. O cristão que responde ao chamado à profecia não pode se omitir, pois sabe que a denúncia faz parte de sua vocação. Pelo batismo, todo cristão é chamado a ser profeta, mas a maioria se recusa a assumir tal vocação, deixando-se dominar pelo medo.

            O profeta é um homem do anúncio, chamado a construir e plantar. O anúncio do Reino desperta a esperança no coração dos pobres. Estes são motivados e sustentados pela esperança. Não há profecia desvinculada da esperança. Esta não se direciona à mera utopia, mas é espera ativa da plenitude do Reino.  

O profeta provoca o aparecimento de pessoas esperançosas, motivadas para o futuro, de mangas arregaçadas na labuta diária da messe do Senhor. Anuncia-se a alegria, a esperança, a justiça, o amor, a reconciliação, a solidariedade, a paz, a amizade, entre tantos outros valores. Denuncia-se, simultaneamente, a tristeza, o desespero, a injustiça, o desamor, a indiferença, o egoísmo, a violência e as intrigas, entre tantas outras forças opostas ao Reino.

            Por fim, consideremos o testemunho profético de dom Oscar Romero. Antes de ser bispo, Oscar Romero era um jovem comum do seu povo, que desejava ser padre. No seminário, um seminarista brilhante: inteligente e obediente. Ordenado, era um padre conservador, fiel à ortodoxia e obediente ao seu bispo. Gozava das qualidades necessárias para ser nomeado bispo. Foi o que aconteceu.  

Pouco tempo depois chegou a ser arcebispo de El Salvador. Tratava-se de um bispo impecável: culto, piedoso, obediente e dedicado à missão episcopal. Não representava ameaça alguma, nem às autoridades civis nem à Cúria Romana. João Paulo II era o papa da época (1980) e apreciava bispos mais obedientes que íntegros!

            Quando era arcebispo, a ditadura militar eclodiu em El Salvador. Assim como em muitos países da América Latina, as injustiças eram gritantes: os militares eliminavam impiedosamente toda pessoa que se colocava contra a ditadura: perseguições, prisões, ameaças, torturas e mortes assolavam o país.  

Inicialmente, dom Oscar Romero não enxergava a realidade e silenciava. Com o passar do tempo e com o aumento do clamor dos pobres da cidade e do campo, ele percebeu que se tratava de uma gravíssima injustiça que precisava ser denunciada com veemência. Quando escutou o clamor dos injustiçados, dom Oscar Romero se converteu ao evangelho de Jesus, tornando-se um grande profeta do Reino de Deus.

A denúncia dos crimes ditatoriais e o anúncio da justiça do Reino se tornaram o conteúdo fundamental de suas homilias. Dirigia-se aos criminosos citando nomes e situações. O povo se alegrou porque era um sinal claro da presença amorosa do Deus que não abandona seus filhos e filhas.

            O papa João Paulo II não gostou da profecia de dom Oscar Romero: advertiu-o severamente! O pobre profeta ficou escandalizado com a ordem papal de abandonar a profecia, mas não obedeceu. Preferiu obedecer ao Espírito do Senhor que o conduzia na missão. A Cúria Romana não teve tempo para tirar dom Oscar Romero do arcebispado de El Salvador, pois em março de 1980, um atirador o matou durante a celebração da Eucaristia em um hospital.  

O profeta bispo cumpriu sua missão: denunciou com ousadia e coragem a terrível ditadura que estava tirando a vida de seu povo. Denunciou também o medo e a covardia de uma Igreja omissa e aliada aos poderosos. Alcançou a coroa do martírio. Lavou as vestes no sangue do Cordeiro. Venceu a morte e ressuscitou na vida do povo de El Salvador. Seu testemunho permanece vivo para sempre porque participou da sorte de Jesus na cruz e com Ele ressuscitou.

O papa Francisco deseja reconhecer sua santidade, canonizando-o, mas ele já é considerado pelo povo de seu país e pela Igreja militante junto aos pobres, uma das maiores testemunhas da ressurreição de Jesus. É venerado como um bispo que foi, de fato, pastor do rebanho do Senhor, ao ponto de dar sua vida por suas ovelhas. Seu testemunho é uma prova de que o Espírito do Senhor faz brotar até no alto clero homens para o exercício sublime, santo, admirável e necessário da profecia na Igreja e no mundo.

Hoje, na Igreja, os profetas são poucos: isto é um claro sinal de que a fidelidade ao evangelho anda “adormecida”, quase que desaparecendo. Há muita liturgia e pouco testemunho, muito documento feito com boa vontade e pouca adesão às grandes causas do Reino de Deus. Apesar disso, discretamente, há profetas trabalhando, e são iguais às formiguinhas, sem pressa e sem chamar a atenção de ninguém. Há pouca coisa, mas algo bom está acontecendo e são poucos que enxergam e gozam da alegria que daí surge. O Reino está acontecendo, graças a Deus!


Tiago de França

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