“Foi-me
dirigida a palavra do Senhor, dizendo: ‘Antes de formar-te no ventre materno,
eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz
profeta das nações’” (Jr 1, 5).
A profecia é uma vocação, um chamado de Deus. Desde o
Judaísmo antigo até nossos dias, os profetas sempre existiram. Para os
cristãos, além de Filho de Deus, Jesus é
o profeta por excelência. Também os judeus reconheceram que Jesus era
profeta, e os discípulos que desciam para Emaús, após o episódio da
crucificação, disseram que se tratava de um profeta poderoso, em palavras e
obras.
Nossa
reflexão será ilustrada com dois testemunhos proféticos: o testemunho de Jesus
de Nazaré e o de Dom Oscar Romero, bispo católico assassinado em El Salvador,
na América Central, em março de 1980. Iniciemos falando da missão do profeta e,
assim, descobriremos a sua liberdade. Ao falarmos dos profetas, também estamos
considerando a vocação das profetisas.
Quando se afirma que ser profeta corresponde a uma vocação,
a um chamado de Deus, isto significa que se trata de um escolhido por Deus para o exercício de uma missão específica. Portanto,
o profeta vive segundo os desígnios de Deus, pautando sua vida a partir da
missão que lhe é confiada por Deus. Esta missão acontece neste mundo,
especialmente no meio dos pobres.
O
profeta realiza a opção divina pelos marginalizados neste mundo, opção
claramente visível no testemunho das Sagradas Escrituras. Não é o profeta que
escolhe aleatoriamente e/ou segundo sua vontade o lugar no qual vai realizar a
sua missão, mas vai para onde Deus envia,
mesmo que a vontade divina contrarie a sua própria vontade. A escolha pertence
a Deus, a iniciativa sempre parte d’Ele.
Deus chama o
profeta através do clamor dos pobres. As inúmeras injustiças geram dor e
sofrimento, assim como um forte grito por justiça. O povo dos pobres clama por
profetas e Deus escuta seu clamor, enviando seus mensageiros. Para fazer justiça aos pobres, Deus age pela boca e
pelas mãos dos profetas.
Na
boca destes se encontra a palavra transformadora de Deus, uma palavra capaz de “extirpar e destruir, devastar e derrubar,
construir e plantar” (Jr 1, 10). Por meio das mãos do escolhido, o Deus e
Pai dos pobres socorre as vítimas das injustiças, curando-lhes as feridas,
concedendo-lhes conforto e força.
Geralmente, as palavras do profeta são consideras duras e
pessimistas. Certo dia, os discípulos de Jesus reclamaram da dureza de seu
ensinamento e receberam a seguinte resposta: “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6, 67). Esta pergunta de Jesus
revela a sua liberdade. Ele era livre e não queria escravos, mas discípulos
livres para fazer outros ingressarem no mesmo caminho de liberdade.
O
profeta segue o mesmo exemplo: não se prende nem submete ninguém. A vocação profética só se realiza na
liberdade. Os poderosos deste mundo não conseguem deter o profeta: não
conseguem corrompê-lo, pois se trata de pessoa ungida pelo Espírito do Senhor,
possuindo, dessa forma, a força divina para resistir às propostas que tendem a
reforçar as forças do anti-Reino.
Esta força divina conduz o profeta na missão até as últimas consequências. A maioria
alcança a coroa do martírio, outros
os poderosos não dão conta de matar. Dom Helder Câmara foi um dos profetas que
não chegou ao derramamento de sangue, mas viveu o martírio de maneira
diferente. Também Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix
do Araguaia – MT: foi bastante ameaçado, mas não conseguiram matá-lo. Este último,
ainda vivo, é um dos maiores profetas da Igreja católica no Brasil.
O profeta sabe dos riscos que corre. Sabe também que
conta com a força de Deus. Os poderosos sabem que se trata de um homem de Deus
e com os escolhidos de Deus não se brinca. Mesmo assim, os opositores do Reino
de Deus não sossegam; ameaçam e fazem de tudo para eliminar os profetas porque
estes incomodam e representam uma ameaça constante.
Como
lutam contra a força divina, entãao não triunfam, pois sua ruína pode até ser
tardia, mas é certa como o nascer do sol. O
profeta está a serviço do projeto de Deus, que é a edificação de seu Reino.
Os poderosos estão a serviço dos próprios projetos, alicerçados nos interesses
e ambições. Antes de falarmos do testemunho de dom Oscar Romero, vamos encerrar
nossas considerações a respeito da vocação profética falando do lugar da denúncia e do anúncio na vida profética.
O profeta é um homem da denúncia, chamado a arrancar e
destruir. Esta é constituída pela revelação
da realidade. O profeta fala da realidade, revelando-a, desmascarando-a.
Ele sabe que os poderosos procuram deturpar a verdade. Deus concede ao profeta
o dom da visão da realidade. Causa admiração
e medo em muita gente a visão do profeta. “Como
conseguiu enxergar isso? Será que é isto mesmo? De onde vem a perspicácia desta
visão?...”: são algumas das perguntas que costumam surgir, provocadas pela
ação profética.
A
denúncia profética é dirigida a toda pessoa e estrutura que se opõem à
edificação do Reino de Deus. Quando necessário, o profeta denuncia sua própria
família e religião, assim como toda autoridade e força poderosa que explora e
oprime o povo de Deus. O cristão que responde ao chamado à profecia não pode se
omitir, pois sabe que a denúncia faz parte de sua vocação. Pelo batismo, todo cristão é chamado a ser profeta, mas a maioria se
recusa a assumir tal vocação, deixando-se dominar pelo medo.
O profeta é um homem do anúncio, chamado a construir e
plantar. O anúncio do Reino desperta a
esperança no coração dos pobres. Estes são motivados e sustentados pela
esperança. Não há profecia desvinculada
da esperança. Esta não se direciona à mera utopia, mas é espera ativa da
plenitude do Reino.
O
profeta provoca o aparecimento de pessoas esperançosas, motivadas para o
futuro, de mangas arregaçadas na labuta diária da messe do Senhor. Anuncia-se a
alegria, a esperança, a justiça, o amor, a reconciliação, a solidariedade, a
paz, a amizade, entre tantos outros valores. Denuncia-se, simultaneamente, a
tristeza, o desespero, a injustiça, o desamor, a indiferença, o egoísmo, a
violência e as intrigas, entre tantas outras forças opostas ao Reino.
Por fim, consideremos o testemunho profético de dom Oscar
Romero. Antes de ser bispo, Oscar Romero era um jovem comum do seu povo, que
desejava ser padre. No seminário, um seminarista brilhante: inteligente e
obediente. Ordenado, era um padre conservador, fiel à ortodoxia e obediente ao
seu bispo. Gozava das qualidades necessárias para ser nomeado bispo. Foi o que
aconteceu.
Pouco
tempo depois chegou a ser arcebispo de El Salvador. Tratava-se de um bispo
impecável: culto, piedoso, obediente e dedicado à missão episcopal. Não representava
ameaça alguma, nem às autoridades civis nem à Cúria Romana. João Paulo II era o
papa da época (1980) e apreciava bispos mais obedientes que íntegros!
Quando era arcebispo, a ditadura militar eclodiu em El
Salvador. Assim como em muitos países da América Latina, as injustiças eram
gritantes: os militares eliminavam impiedosamente toda pessoa que se colocava
contra a ditadura: perseguições, prisões, ameaças, torturas e mortes assolavam
o país.
Inicialmente,
dom Oscar Romero não enxergava a realidade e silenciava. Com o passar do tempo
e com o aumento do clamor dos pobres da cidade e do campo, ele percebeu que se
tratava de uma gravíssima injustiça que precisava ser denunciada com veemência.
Quando escutou o clamor dos injustiçados, dom Oscar Romero se converteu ao
evangelho de Jesus, tornando-se um grande profeta do Reino de Deus.
A
denúncia dos crimes ditatoriais e o anúncio da justiça do Reino se tornaram o
conteúdo fundamental de suas homilias. Dirigia-se aos criminosos citando nomes
e situações. O povo se alegrou porque era um sinal claro da presença amorosa do
Deus que não abandona seus filhos e filhas.
O papa João Paulo
II não gostou da profecia de dom Oscar Romero: advertiu-o severamente! O pobre
profeta ficou escandalizado com a ordem papal de abandonar a profecia, mas não
obedeceu. Preferiu obedecer ao Espírito
do Senhor que o conduzia na missão. A Cúria Romana não teve tempo para
tirar dom Oscar Romero do arcebispado de El Salvador, pois em março de 1980, um
atirador o matou durante a celebração da Eucaristia em um hospital.
O
profeta bispo cumpriu sua missão: denunciou com ousadia e coragem a terrível
ditadura que estava tirando a vida de seu povo. Denunciou também o medo e a covardia de uma Igreja omissa e aliada aos
poderosos. Alcançou a coroa do martírio. Lavou as vestes no sangue do
Cordeiro. Venceu a morte e ressuscitou na
vida do povo de El Salvador. Seu testemunho permanece vivo para sempre
porque participou da sorte de Jesus na cruz e com Ele ressuscitou.
O
papa Francisco deseja reconhecer sua santidade, canonizando-o, mas ele já é
considerado pelo povo de seu país e pela Igreja militante junto aos pobres, uma
das maiores testemunhas da ressurreição de Jesus. É venerado como um bispo que
foi, de fato, pastor do rebanho do Senhor, ao ponto de dar sua vida por suas
ovelhas. Seu testemunho é uma prova de que o Espírito do Senhor faz brotar até
no alto clero homens para o exercício sublime, santo, admirável e necessário da
profecia na Igreja e no mundo.
Hoje,
na Igreja, os profetas são poucos: isto é um claro sinal de que a fidelidade ao
evangelho anda “adormecida”, quase que desaparecendo. Há muita liturgia e pouco
testemunho, muito documento feito com boa vontade e pouca adesão às grandes
causas do Reino de Deus. Apesar disso, discretamente, há profetas trabalhando,
e são iguais às formiguinhas, sem pressa e sem chamar a atenção de ninguém. Há pouca
coisa, mas algo bom está acontecendo e são poucos que enxergam e gozam da
alegria que daí surge. O Reino está acontecendo, graças a Deus!
Tiago de França
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