“Mais
que comum dos dias, olhei o mais que pude os rostos dos pobres, gastos pela
fome, esmagados pelas humilhações, e neles descobri teu rosto, Cristo
Ressuscitado!” (Dom Helder Câmara).
O dia 27 de agosto é o dia de fazer a memória de dois
grandes pastores da Igreja católica: dom Helder Câmara e dom Luciano Mendes. O
primeiro morreu no dia 27 de agosto de 1999, e o segundo, no mesmo dia e mês do
ano de 2006. Ambos foram bispos. Dom Luciano, nascido no Rio de Janeiro, foi
jesuíta. Dom Helder, nascido no Ceará, diocesano. Ambos exerceram funções
importantes em seus ministérios e morreram com fama de santidade. Foram
incompreendidos e perseguidos, inclusive pela própria Igreja.
O
presente artigo não quer oferecer detalhes de ambas as personalidades. Há excelentes
obras biográficas que podem ser consultadas. A partir das características que
eram comuns a estes bispos, queremos discorrer não somente a respeito da
importância deles para a Igreja, como também acentuar a necessidade de
continuarmos sonhando com uma Igreja mais humana e fraterna.
O
encontro com Cristo no outro, preferencialmente nos pobres
Dom Helder e dom
Luciano fizeram a experiência do encontro com Cristo nos pobres. Este encontro
transformou suas vidas, convertendo-os ao evangelho de Jesus. Tornaram-se
amigos dos pobres. Isto chamava a atenção de todos que tomavam conhecimento de
seus gestos e palavras. Justamente por isso, eram considerados homens
evangélicos. De fato, viveram a opção pelos pobres, em plena sintonia com
Jesus. Sabiam que estavam no caminho do divino Mestre. Viveram com convicção,
maturidade, liberdade, generosidade, disponibilidade, humildade, desapego e
alegria o chamado que receberam de Deus.
Ninguém consegue encontrar um sinal sequer de alianças
com os poderosos em benefício próprio. Não se aproveitavam do título de bispo
para se promoverem, para serem aplaudidos, bajulados. Eram queridos e
admirados, e até aplaudidos, mas jamais perderam a humildade. Também foram
incompreendidos e perseguidos, vítimas do ódio e do ostracismo de muitos, mas
não se deixaram abater. Tinham os olhos fixos em Jesus. O Mestre que os chamou
estava com eles na contemplação e na ação, confirmando-os na fé. Todos quantos
se aproximavam deles sentiam que eram assistidos pelo Espírito do Senhor,
Espírito de sabedoria e de fidelidade à missão.
Suas palavras e gestos constituem um grito que ecoa em
toda a Igreja, um grito que não se cansa de dizer: Lembrai-vos, irmãos, dos pobres! Em Cristo, eles são nossos mestres e
senhores! Renunciai ao poder, ao
prestígio e à riqueza, e convertei-vos ao Servo Sofredor, que se fez pobre
entre os pobres para confundir os poderosos deste mundo. Convertei-vos, irmãos,
para o bem do povo de Deus! Os pobres que foram alcançados pelos cuidados e
preocupações destes bispos sentem muita saudade deles. Há saudade até em muitos
que não tiveram a graça de conhecê-los pessoalmente. Diante deles, afirmavam os
pobres: Bendito seja Deus, que não nos
abandona! Os poderosos, pelo contrário, procuravam uma maneira eficaz de
lhes calar a voz, tramando-lhes a morte.
Contemplativos
na ação
Os escritos de
Dom Helder e de dom Luciano demonstram com clareza a riqueza de homens
mergulhados em Deus. Não davam tanta importância ao poder que o título lhes
conferia, mas estavam habitados pelo Espírito do Senhor, que liberta de todo
apego e ilusão. Apesar do cansaço físico provocado pelo cumprimento fiel dos
compromissos, não se esqueciam da oração. No silêncio do deserto, como Jesus,
escutavam a voz de Deus para fazer Sua vontade. São considerados místicos na
missão episcopal porque eram contemplativos na ação. Não se permitiam dominar
pelo ativismo nem pela ociosidade. Não estavam preocupados em produzir nem
serem eficazes, mas simplesmente eram em Deus.
Suas homilias, palestras, conferências, entrevistas e as
inúmeras intervenções em diversos lugares eram escutadas com respeito e
veneração. Não brincavam com coisa séria. O Espírito do Senhor lhes concedeu o
dom da palavra certa na ocasião certa. Eram autênticos no falar e coerentes no
viver. Falavam do que viviam no cotidiano. Proclamavam a palavra de Deus com
coragem e alegria. Estavam conectados à realidade do mundo, denunciavam as
injustiças e sonhavam com outro mundo possível. Eram esperançosos e despertavam
a esperança, uma esperança ativa. Praticaram o amor amando as pessoas e
ensinavam com o testemunho da própria vida que o amor é a via única capaz de
salvar toda a humanidade do caos em que se encontra.
A espiritualidade que cultivavam era pautada neste amor
que se faz doação. Não viviam nas nuvens, aéreos, em êxtases. Aprenderam com
Jesus que ser contemplativo significa olhar, misericordiosamente, para o rosto
das pessoas, indo ao seu encontro. A contemplação acontece no encontro. Sabiam
se encontrar com Deus, afetiva e efetivamente. Não o levavam a ninguém, pois
compreendiam que Deus já encontrava nas pessoas. Dom Helder e dom Luciano
viveram uma espiritualidade profundamente encarnada porque, para eles, o
evangelho não estava somente no ambão (mesa da palavra), mas estava também na
vida do povo de Deus. O evangelho traduz a vida do povo de Deus e promove sua
unidade.
Profetas
para a ressurreição da Igreja
Insistentemente,
antes de morrer, o teólogo José Comblin denunciava a letargia na qual estava
mergulhada a Igreja. Os mais conservadores certamente consideram o termo
letargia demasiadamente pessimista. Isto ocorre porque pensam que a cristandade
ainda vigora. Na verdade, ainda há resquícios dela. Seu espírito paira em
alguns segmentos da Igreja. O papa Francisco está tentando convencer a todos
que a cristandade não existe mais, que é hora de sair da vida cômoda e partir
para a missão. A maioria dos que compõem o clero não quer sair, preferem
continuar vivendo comodamente, fazendo-se de conta que seguem Jesus. Até
admiram os pronunciamentos e a coragem do bispo de Roma, mas se recusam,
terminantemente, a aderir o espírito missionário proclamado pelo Concílio
Vaticano II.
Esta é a situação atual: uma Igreja consciente de sua
missão no mundo, mas que tem medo de sair de si mesma. Continua ensimesmada. O
papa Francisco publicou a Evangelii
Gaudium, mas na base da Igreja, seus efeitos são praticamente inexistentes.
Há muito euforia, entusiasmo, despertar da esperança, mas quase ninguém sai do
lugar. Os poucos que saem somente contam com o auxílio da graça porque no
conjunto não há adesão ao projeto renovador da Igreja, proposto corajosamente
pelo bispo de Roma. Aos que acham que esta visão é pessimista, propomos a seguinte
indagação: Onde estão ocorrendo, efetivamente, as mudanças estruturais? Não as vejo em lugar nenhum. Os que defendem
que tais mudanças são desnecessárias, na verdade, estão ocultando o medo de
perderem seus privilégios, que lhes assegura uma vida segura e tranquila. Segurança
e tranquilidade é o lema da maioria do clero.
Dom Helder e dom Luciano não levavam uma vida segura e
tranquila, apesar de serem bispos. Não se consideravam nem se comportavam como
príncipes da Igreja. Não sofriam com o mal da “psicologia de príncipes”. Uma
boa parcela dos bispos, atualmente, continua do mesmo jeito que antes do
Vaticano II: gozam de todos os privilégios e prerrogativas do título de bispo. Neste
caso, ser bispo é sinônimo de homem do poder, aliançado com os poderosos. Quando
era criança, o pároco da minha paróquia de origem, em Alagoas, dizia: Veja bem, o poder do padre equivale ao de um
prefeito, e o poder do bispo equivale ao de um governador de estado. Aqui sou
amigo do prefeito e não pode ser de outra forma, e em Maceió, o arcebispo é
amigo do governador do estado.
Esse esquema está na
cabeça do povo até hoje. Sempre foi assim, desde a institucionalização do
ministério ordenado na Igreja. Assim como o governador mora no palácio do
governo, o arcebispo mora no palácio episcopal. E a justificativa dos bispos
que se recusam a deixar o conforto e a segurança do palácio não convence
ninguém. Ousam dizer: Para servir ao povo
não preciso deixar o palácio! O que vale é a minha disponibilidade em servi-lo!
É verdade que não basta sair do palácio e continuar com a mentalidade de um
palaciano, mas tal deslocamento é um belo sinal.
A
celebração da memória destes Santos Padres da Igreja latino-americana é ocasião
oportuna para uma séria reflexão não somente do modelo de bispo para uma Igreja
renovada segundo o espírito do Vaticano II, mas também para uma leitura
comprometida dos sinais dos tempos atuais. A Igreja está vivendo um momento de
graça com a profecia do papa Francisco. Será que continuará insensível aos
apelos do Espírito do Senhor?... Até quando vai sobreviver a terrível
insistência de muitos em ressuscitar práticas obsoletas que não conseguem dizer
absolutamente nada à mulher e ao homem pós-moderno?... Quando é que o evangelho
de Jesus ocupará o centro da vida eclesial?... Até quando os pobres serão
tratados como meros destinatários da evangelização?... O Espírito do Senhor
está soprando, mas sua ação respeita a liberdade do ser humano. Que dom Helder
e dom Luciano intercedam a Deus por nós!
Tiago de França
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