quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Dom Helder Câmara e Dom Luciano Mendes: Santos Padres da Igreja na América Latina

“Mais que comum dos dias, olhei o mais que pude os rostos dos pobres, gastos pela fome, esmagados pelas humilhações, e neles descobri teu rosto, Cristo Ressuscitado!” (Dom Helder Câmara).

            O dia 27 de agosto é o dia de fazer a memória de dois grandes pastores da Igreja católica: dom Helder Câmara e dom Luciano Mendes. O primeiro morreu no dia 27 de agosto de 1999, e o segundo, no mesmo dia e mês do ano de 2006. Ambos foram bispos. Dom Luciano, nascido no Rio de Janeiro, foi jesuíta. Dom Helder, nascido no Ceará, diocesano. Ambos exerceram funções importantes em seus ministérios e morreram com fama de santidade. Foram incompreendidos e perseguidos, inclusive pela própria Igreja.  

O presente artigo não quer oferecer detalhes de ambas as personalidades. Há excelentes obras biográficas que podem ser consultadas. A partir das características que eram comuns a estes bispos, queremos discorrer não somente a respeito da importância deles para a Igreja, como também acentuar a necessidade de continuarmos sonhando com uma Igreja mais humana e fraterna.

O encontro com Cristo no outro, preferencialmente nos pobres

            Dom Helder e dom Luciano fizeram a experiência do encontro com Cristo nos pobres. Este encontro transformou suas vidas, convertendo-os ao evangelho de Jesus. Tornaram-se amigos dos pobres. Isto chamava a atenção de todos que tomavam conhecimento de seus gestos e palavras. Justamente por isso, eram considerados homens evangélicos. De fato, viveram a opção pelos pobres, em plena sintonia com Jesus. Sabiam que estavam no caminho do divino Mestre. Viveram com convicção, maturidade, liberdade, generosidade, disponibilidade, humildade, desapego e alegria o chamado que receberam de Deus.

            Ninguém consegue encontrar um sinal sequer de alianças com os poderosos em benefício próprio. Não se aproveitavam do título de bispo para se promoverem, para serem aplaudidos, bajulados. Eram queridos e admirados, e até aplaudidos, mas jamais perderam a humildade. Também foram incompreendidos e perseguidos, vítimas do ódio e do ostracismo de muitos, mas não se deixaram abater. Tinham os olhos fixos em Jesus. O Mestre que os chamou estava com eles na contemplação e na ação, confirmando-os na fé. Todos quantos se aproximavam deles sentiam que eram assistidos pelo Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de fidelidade à missão.

            Suas palavras e gestos constituem um grito que ecoa em toda a Igreja, um grito que não se cansa de dizer: Lembrai-vos, irmãos, dos pobres! Em Cristo, eles são nossos mestres e senhores! Renunciai ao poder, ao prestígio e à riqueza, e convertei-vos ao Servo Sofredor, que se fez pobre entre os pobres para confundir os poderosos deste mundo. Convertei-vos, irmãos, para o bem do povo de Deus! Os pobres que foram alcançados pelos cuidados e preocupações destes bispos sentem muita saudade deles. Há saudade até em muitos que não tiveram a graça de conhecê-los pessoalmente. Diante deles, afirmavam os pobres: Bendito seja Deus, que não nos abandona! Os poderosos, pelo contrário, procuravam uma maneira eficaz de lhes calar a voz, tramando-lhes a morte.

Contemplativos na ação

            Os escritos de Dom Helder e de dom Luciano demonstram com clareza a riqueza de homens mergulhados em Deus. Não davam tanta importância ao poder que o título lhes conferia, mas estavam habitados pelo Espírito do Senhor, que liberta de todo apego e ilusão. Apesar do cansaço físico provocado pelo cumprimento fiel dos compromissos, não se esqueciam da oração. No silêncio do deserto, como Jesus, escutavam a voz de Deus para fazer Sua vontade. São considerados místicos na missão episcopal porque eram contemplativos na ação. Não se permitiam dominar pelo ativismo nem pela ociosidade. Não estavam preocupados em produzir nem serem eficazes, mas simplesmente eram em Deus.

            Suas homilias, palestras, conferências, entrevistas e as inúmeras intervenções em diversos lugares eram escutadas com respeito e veneração. Não brincavam com coisa séria. O Espírito do Senhor lhes concedeu o dom da palavra certa na ocasião certa. Eram autênticos no falar e coerentes no viver. Falavam do que viviam no cotidiano. Proclamavam a palavra de Deus com coragem e alegria. Estavam conectados à realidade do mundo, denunciavam as injustiças e sonhavam com outro mundo possível. Eram esperançosos e despertavam a esperança, uma esperança ativa. Praticaram o amor amando as pessoas e ensinavam com o testemunho da própria vida que o amor é a via única capaz de salvar toda a humanidade do caos em que se encontra.

            A espiritualidade que cultivavam era pautada neste amor que se faz doação. Não viviam nas nuvens, aéreos, em êxtases. Aprenderam com Jesus que ser contemplativo significa olhar, misericordiosamente, para o rosto das pessoas, indo ao seu encontro. A contemplação acontece no encontro. Sabiam se encontrar com Deus, afetiva e efetivamente. Não o levavam a ninguém, pois compreendiam que Deus já encontrava nas pessoas. Dom Helder e dom Luciano viveram uma espiritualidade profundamente encarnada porque, para eles, o evangelho não estava somente no ambão (mesa da palavra), mas estava também na vida do povo de Deus. O evangelho traduz a vida do povo de Deus e promove sua unidade. 

Profetas para a ressurreição da Igreja

            Insistentemente, antes de morrer, o teólogo José Comblin denunciava a letargia na qual estava mergulhada a Igreja. Os mais conservadores certamente consideram o termo letargia demasiadamente pessimista. Isto ocorre porque pensam que a cristandade ainda vigora. Na verdade, ainda há resquícios dela. Seu espírito paira em alguns segmentos da Igreja. O papa Francisco está tentando convencer a todos que a cristandade não existe mais, que é hora de sair da vida cômoda e partir para a missão. A maioria dos que compõem o clero não quer sair, preferem continuar vivendo comodamente, fazendo-se de conta que seguem Jesus. Até admiram os pronunciamentos e a coragem do bispo de Roma, mas se recusam, terminantemente, a aderir o espírito missionário proclamado pelo Concílio Vaticano II.

            Esta é a situação atual: uma Igreja consciente de sua missão no mundo, mas que tem medo de sair de si mesma. Continua ensimesmada. O papa Francisco publicou a Evangelii Gaudium, mas na base da Igreja, seus efeitos são praticamente inexistentes. Há muito euforia, entusiasmo, despertar da esperança, mas quase ninguém sai do lugar. Os poucos que saem somente contam com o auxílio da graça porque no conjunto não há adesão ao projeto renovador da Igreja, proposto corajosamente pelo bispo de Roma. Aos que acham que esta visão é pessimista, propomos a seguinte indagação: Onde estão ocorrendo, efetivamente, as mudanças estruturais? Não as vejo em lugar nenhum. Os que defendem que tais mudanças são desnecessárias, na verdade, estão ocultando o medo de perderem seus privilégios, que lhes assegura uma vida segura e tranquila. Segurança e tranquilidade é o lema da maioria do clero.

            Dom Helder e dom Luciano não levavam uma vida segura e tranquila, apesar de serem bispos. Não se consideravam nem se comportavam como príncipes da Igreja. Não sofriam com o mal da “psicologia de príncipes”. Uma boa parcela dos bispos, atualmente, continua do mesmo jeito que antes do Vaticano II: gozam de todos os privilégios e prerrogativas do título de bispo. Neste caso, ser bispo é sinônimo de homem do poder, aliançado com os poderosos. Quando era criança, o pároco da minha paróquia de origem, em Alagoas, dizia: Veja bem, o poder do padre equivale ao de um prefeito, e o poder do bispo equivale ao de um governador de estado. Aqui sou amigo do prefeito e não pode ser de outra forma, e em Maceió, o arcebispo é amigo do governador do estado.

 Esse esquema está na cabeça do povo até hoje. Sempre foi assim, desde a institucionalização do ministério ordenado na Igreja. Assim como o governador mora no palácio do governo, o arcebispo mora no palácio episcopal. E a justificativa dos bispos que se recusam a deixar o conforto e a segurança do palácio não convence ninguém. Ousam dizer: Para servir ao povo não preciso deixar o palácio! O que vale é a minha disponibilidade em servi-lo! É verdade que não basta sair do palácio e continuar com a mentalidade de um palaciano, mas tal deslocamento é um belo sinal.

A celebração da memória destes Santos Padres da Igreja latino-americana é ocasião oportuna para uma séria reflexão não somente do modelo de bispo para uma Igreja renovada segundo o espírito do Vaticano II, mas também para uma leitura comprometida dos sinais dos tempos atuais. A Igreja está vivendo um momento de graça com a profecia do papa Francisco. Será que continuará insensível aos apelos do Espírito do Senhor?... Até quando vai sobreviver a terrível insistência de muitos em ressuscitar práticas obsoletas que não conseguem dizer absolutamente nada à mulher e ao homem pós-moderno?... Quando é que o evangelho de Jesus ocupará o centro da vida eclesial?... Até quando os pobres serão tratados como meros destinatários da evangelização?... O Espírito do Senhor está soprando, mas sua ação respeita a liberdade do ser humano. Que dom Helder e dom Luciano intercedam a Deus por nós!

Tiago de França 

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