“Vós abandonais o mandamento
de Deus para seguir a tradição dos homens” (Mc 7,8).
No campo religioso, muito facilmente
se coloca o cumprimento dos preceitos religiosos no centro da vida de fé. As
regras dão certa segurança e previsibilidade à vida. Portanto, o apego a elas não
é algo difícil de acontecer, pois criam hábitos fixos, quase que intocáveis,
fazendo surgir costumes que se perpetuam no tempo, formando as tradições.
O legalismo consiste na prática da
lei pela lei, desconsiderando a pluralidade das culturas e das circunstâncias,
bem como negligenciando a dignidade da pessoa humana. Cria-se a lei com
pretensão de universalidade, válida para todos, para ser aplicada de maneira
uniformizada. Ignora-se a evolução oriunda das transformações que acontecem na
vida cotidiana das inúmeras sociedades. Surge até uma tradição de prezar, em
primeiro lugar, pela aplicação da lei, gerando pessoas e realidades engessadas.
Em nome de certas tradições, muitos
males já foram cometidos contra inúmeras categorias de pessoas. A “tradição dos
homens”, expressão utilizada por Jesus, não pode ser invocada como ferramenta
obrigatória para o acesso a Deus. Jesus denuncia os fariseus e mestres da lei,
que se utilizavam da tradição humana para abandonar o mandamento de Deus.
Não há nenhum mal em fazer memória
do passado, com o objetivo de aprender com este. É verdade que os antepassados
nos legaram tradições importantes, que tem muito a ensinar. São riquezas
valiosas que precisam ser guardadas na memória do coração. É justo e salutar
respeitar estas riquezas e mantê-las conservadas para as gerações futuras.
Também no hoje da história, as
mulheres e homens criam e recriam comportamentos e práticas que tornam viável a
vida. Por isso, não se pode repetir o passado a qualquer custo. A inteligência
humana é capaz de ler o passado para criar condições de possibilidade para o
presente, facilitando a realização de todas as coisas para o bem de todos. O
bem comum não pode ser marginalizado por causa da mera repetição de tradições
antigas.
Quando engessadas, tratadas como se
fossem intocáveis, as tradições funcionam como se fossem leis que não admitem
exceções, nem aperfeiçoamentos. Dessa forma, não há evolução possível,
impedindo o progresso integral da humanidade. Cada época é composta por pessoas
que ousaram criar, repensar, reinventar e, assim, provocar mudanças. A mudança
provoca a evolução, enquanto que a tradição tende à conservação.
O Evangelho mostra que Jesus não foi
totalmente contrário a todas as tradições judaicas. Mas conhecemos a sua
oposição a toda espécie de tradição que ocasionava a anulação do mandamento de
Deus. Para Jesus, nada é mais importante que o amor a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a si mesmo. Diante do amor, o cumprimento da lei é
relativo. Toda lei que contraria este mandamento divino não pode ser observada.
O mandamento de Deus promove o bem
de todos. O mal se apresenta como oposição a este mandamento. Colocar a lei
acima do mandamento de Deus é um mal, um pecado gravíssimo. Portanto, cada
circunstância exige discernimento, para se saber a vontade de Deus manifestada.
O que Deus está querendo dizer? O que Ele está pedindo? Discernir para que se
cumpra o mandamento de Deus, e não a lei pela lei.
Uma lei religiosa somente possui
legitimidade se a sua aplicação conduzir à proximidade com Deus. Ninguém pode,
em nome de Deus, legislar em prejuízo desta proximidade. Trata-se de uma
visível contradição. Os desafios pastorais das múltiplas realidades eclesiais
exigem discernimento, para se evitar a falta do remédio da misericórdia divina devido
à aplicação da lei. Se é possível oferecer ao povo de Deus a Palavra e o Pão
que salvam, nenhuma lei humana pode impedir tal intento, porque a missão da
Igreja no mundo é anunciar a Palavra e partilhar o Pão da Vida com os que tem
sede e fome de justiça e paz.
Na Igreja católica, temos a
legislação canônica. No último cânon do Código de Direito Canônico está escrito
que a salvação das almas “deve ser sempre a lei suprema da Igreja”. Assim, a
lei canônica não pode ser usada para impedir as pessoas de terem acesso a Deus.
A lei canônica não deve ser pedra de tropeço na caminhada cristã, mas
instrumento que ajude as pessoas a observar o mandamento de Deus. Hoje, na vida
da Igreja católica, muitos dos que exercem ofícios eclesiásticos estão deixando
de lado esta “lei suprema da Igreja”.
O excesso de proibições fere de
morte a vitalidade da Igreja e o anúncio do Evangelho de Jesus. É preciso
reafirmar que a lei canônica não está acima do Evangelho, mas decorre dele. Se
Jesus diz sim, a lei canônica não pode dizer não. Jesus é o Mestre e o Legislador
por excelência. É ele o caminho que conduz ao Pai. Ele é a porta das ovelhas.
Não é a lei que salva, mas é Jesus que tem palavras de vida eterna. É Jesus o
centro da vida cristã, não a normativa canônica.
Os nossos dias estão exigindo essa afirmação categórica da
centralidade de Cristo Jesus na vida e missão da Igreja. A norma canônica não
pode ser utilizada para impor tradições que travam o processo de evangelização
da Igreja. Não podemos esquecer que a Igreja é de Jesus Cristo, e seu Evangelho
deve ser a regra da vida cristã e eclesial. Este Evangelho é incompatível com
toda forma de legalismo.
Por fim, é preciso considerar que no
juízo final todos seremos julgamos segundo a lei do amor (cf. Mt 25,31-46).
Deus não nos perguntará se fomos fieis às leis, mas se o amamos em nossos
irmãos e irmãs. Uma pessoa pode até ser fiel às prescrições de sua religião,
mas se não tiver amor, de nada servirá a fidelidade a tais prescrições. O mundo
e as Igrejas cristãs de nossos dias precisam de mulheres e homens livres e
fieis no amor, pessoas que transcendem o cumprimento da lei e, assim, tornam-se
sal da terra e luz do mundo, testemunhas de Jesus Cristo.
Tiago
de França
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