“O Senhor pede tudo e, em
troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos chamados” (Gaudete et Exsultate, n. 1).
Estas palavras do Papa Francisco,
tiradas de sua exortação apostólica que trata do chamado à santidade no mundo
atual, podem ser aplicadas à vida do Pe. Cícero Romão Batista. No dia vinte de
julho de 1934, aos noventa anos, o santo Patriarca de Juazeiro do Norte,
entregava a sua alma a Deus. Foi o dia mais triste da história daquela
localidade.
Anualmente, os católicos de Juazeiro e os romeiros da Mãe
das Dores, nesta data, vestem-se de preto para marcar o luto em sua memória. O “Padim
Ciço”, como até hoje é carinhosamente chamado pelos romeiros, marcou a história
da Igreja católica no Brasil. Neste artigo, como devoto deste grande sacerdote,
quero discorrer um pouco sobre a sua santidade.
É preciso dizer, inicialmente, que
este sacerdote obediente e fiel à mentalidade e estilo de vida de sua época e
região, até hoje é vítima de interpretações equivocadas oriundas da falta do necessário
conhecimento da sua vida e missão. Interpretar os fatos à luz do contexto da
época é uma exigência fundamental para evitar anacronismos. A personalidade do
Padim Ciço é rica em detalhes, e a sua atuação pode ser estudada a partir de
vários ângulos.
Por que podemos afirmar que ele era
um homem santo? É importante considerar que a santidade não é sinônimo de
perfeição, porque esta pertence unicamente a Deus. Os santos não são pessoas
perfeitas. Ao analisar a vida de um santo, ensina o Papa Francisco, que “não convém deter-se nos detalhes, porque
nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é
plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que
devemos contemplar é o conjunto de sua vida, o seu caminho inteiro de
santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai
quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa” (Gaudete et Exsultate, n. 22).
O conjunto da vida e o caminho
inteiro de santificação do Padim Ciço revela esta “figura que reflete algo de
Jesus Cristo”. Assim como muitos outros santos, ele fez a opção de Jesus, dedicando-se à evangelização dos pobres.
Nestes o Padim Ciço encontrou a razão do seu ministério sacerdotal, porque
aprendeu que Jesus Cristo está presente na vida dos pobres e sofredores.
Fiel à teologia recebida no então Seminário da Prainha,
onde estudou sob o regime de formação tridentina, marcado pela disciplina
aplicada pelos Padres Lazaristas, o Padim Ciço era um pregador exímio. Narra a
história que a sua pregação era compreendida pelos mais simples, que ouviam com
atenção a voz eloquente de um sacerdote de estatura baixa e de olhos azuis.
Para servir melhor aos pobres e
desvalidos, vítimas da fome, das doenças e das injustiças, organizou um grupo
de beatos e beatas, exigindo-lhes um estilo de vida austero, caracterizado pela
caridade, oração, penitência e obediência. Para cada função tinha um beato ou
beata: catequese, visitas, doações, fabricação de remédios caseiros, oração,
serviços de sacristia e limpeza de igrejas, cultivo da terra, aconselhamento
etc. A ordem era clara: Ninguém deveria ir embora sem ser atendido pelo Padim
Ciço. Para todo tipo de problema havia uma solução possível. Isso dava
segurança ao povo simples, que o procurava sem cessar.
Outro importante aspecto da
santidade do Padim Ciço é a oração. Rezava
e ensinava o povo a rezar. A devoção a Nossa Senhora das Dores foi proposta por
ele. O rosário da Mãe de Deus e o Ofício da Imaculada Conceição são as orações
prediletas dos romeiros. Ele ensinava que nada é impossível à pessoa que reza,
pois a oração é alimento da fé. Educando o povo na prática da oração, Padim
Ciço despertava e fortalecia a fé do povo, para que este pudesse suportar com
paciência os sofrimentos da vida. “Deus
nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrimas sem consolação”, dizia
ele.
A integridade moral do Padim Ciço é outra qualidade que causa
admiração. Nunca se ouviu dizer que tenha desrespeitado alguém. Aos doze anos
de idade, influenciado pela leitura que fez da vida de São Francisco Sales, fez
voto de castidade e o cumpriu por toda a sua longa vida. Era respeitado,
gostava de respeitar e ensinava o valor do respeito. Homem de palavra, cumpria
o que prometia, sem voltar atrás. Pastor zeloso, corrigia os errados, para que
abraçassem o bom caminho. Era escutado porque tinha autoridade moral para
denunciar as injustiças e os maus costumes.
Tinha a paciência de escutar o clamor dos pobres e
desvalidos. Passava horas atendendo os fiéis, tanto no sacramento da confissão quanto
no aconselhamento. Para cada situação tinha uma palavra de conforto e ânimo. Seus
conselhos salvaram muita gente. Recebia muitas cartas e a todas respondia com
afeto paternal. Gostava de orientar os romeiros da Mãe de Deus em todos os
assuntos da vida. A sua teologia era prática. Assim como Jesus, gostava de
falar com simplicidade. Era tão simples que o povo gravava e guardava seus
ensinamentos na mente e no coração.
Com o passar do tempo o povo foi
percebendo que estava diante de um santo, e sua fama foi se espalhando em todo
o Nordeste. Muita gente deixou seus lugares de origem para morar no Juazeiro,
terra da Mãe de Deus. As romarias foram aumentando, e a cidade foi crescendo. O
número de romeiros aumentou mais ainda após o milagre da hóstia, ocorrido em 1889.
Várias vezes, durante a comunhão, a hóstia se transformou em sangue na boca da
beata Maria de Araújo. O povo logo entendeu que era um milagre, e vinha gente
de toda parte para conhecer o padre, a beata e as circunstâncias do fato.
Este milagre, que até hoje está
sendo estudado por quem é de direito na Igreja, trouxe muito sofrimento ao
Padim Ciço. Duas comissões de peritos foram formadas e enviadas a Juazeiro para
verificar o fato. A primeira comissão afirmou ter sido milagre; a segunda
desmentiu. O caso foi a Roma, bem como o Padim Ciço, que compareceu ao Tribunal
do Santo Ofício para se explicar.
Recebeu autorização para voltar ao
Juazeiro e retomar o exercício do seu ministério, mas, posteriormente, o Bispo
diocesano o suspendeu. Não tendo mais conseguido voltar ao exercício do
ministério sacerdotal, o Padim Ciço, atendendo aos apelos dos amigos, ingressou
na política. Como o tema de nossa abordagem é a santidade Padim Ciço, não
abordaremos a dimensão política da vida do Padim Ciço.
Mas é preciso considerar outro
aspecto importante da santidade do Patriarca do Juazeiro: Durante toda a
questão provocada pelo milagre da hóstia, ele se manteve obediente às
determinações da Igreja. Teve a oportunidade de se rebelar, mas optou pela via
da obediência; e morreu dizendo que,
no futuro, a própria Igreja iria fazer a sua defesa. O processo de
reconciliação que acontece em Roma sinaliza que esta profecia se cumprirá no
tempo oportuno. É a esperança de todo romeiro da Mãe de Deus e do Padim Ciço.
O Padim Ciço morreu com fama de santo, aclamado pelos mais pobres. Já antes de
morrer, conta-se a realização de inúmeros milagres. Após sua morte, os romeiros
passaram a pedir a sua intercessão junto a Deus. Desde então, incontáveis são
os milagres alcançados graças à sua intercessão. Qualquer pessoa sensível ao
sentimento religioso do povo, basta ir ao Juazeiro em tempos de romaria, para
ver de perto o significado do amor ao Padim Ciço. Juazeiro respira
religiosidade; é uma cidade que gira em torno da pessoa dele. Sem ele, Juazeiro
não seria a cidade que é: Grande, bela, hospitaleira e marcada pela fé.
O testemunho do Padim Ciço revela o
significado da santidade na vida da Igreja: Entregar-se a Deus para ganhar a
vida verdadeira. Entregar-se a Deus é doar-se
aos irmãos, gastando a vida inteira no exercício evangélico da caridade. Fora da
caridade não existe santidade, porque o
que santifica a pessoa é a vivência do amor. Este é o que permanece para
sempre. Para saber se uma pessoa é santa, basta verificar se vive segundo as
bem-aventuranças do Evangelho de Cristo. Deus olha a caridade vivida, porque
nela está a salvação. Cristo nos salva no amor.
Conhecer, saber e ensinar a doutrina
da Igreja é importante, bem como é importante ser dizimista, ir à Missa,
receber os sacramentos, rezar o rosário, ser devoto dos santos e de Maria etc.,
mas se todas estas “coisas” não forem acompanhadas pela vivência do amor, de
nada servem. Também na vida clerical podemos dizer o mesmo: O clérigo pode até rezar
a Missa e a Liturgia das Horas, observar as rubricas na liturgia, fazer uma boa
pregação, ensinar ortodoxamente a doutrina, administrar bem a paróquia,
construir igrejas e demais prédios, usar batina e indumentárias belas e caras,
mas se não demonstrar amor, de nada serve. O amor é a regra da missão.
Tem crescido muito o interesse de
muitos católicos pelas beatificações e canonizações. O culto aos santos é
importante, mas não deve ocupar a centralidade da vida eclesial. O cristianismo
não deve viver de devoções, apesar destas terem a sua importância. O mais
importante é cada cristão procure ser santo.
É Jesus o centro da vida cristã e eclesial. Muitas vezes,
corre-se o risco de reivindicar a canonização de leigos ou clérigos, que até que
foram boas pessoas, mas que não viveram a caridade conforme o Evangelho. Não é
porque uma pessoa, leigo ou clérigo, tenha ganhado notoriedade na mídia, tendo-se
utilizado desta para o ensino da doutrina, que já possa ser considerada santa.
Por isso, mais do que a busca por canonização que visam
incrementar o grande número de santos, a urgência do momento é que cada cristão
católico procure seguir Jesus. A Igreja precisa de mais pessoas que aceitem o
desafio da santidade, para que, assim, a Igreja possa dar testemunho de
unidade, justiça e paz no mundo.
Tendo verificado o conjunto da vida do Padim Ciço, os
sinais de santidade são evidentes. Antes mesmo de sua canonização, já é santo
no coração dos romeiros da Mãe de Deus. Os pobres conhecem e sabem venerar os
santos de Deus, e a Igreja reconhece isso (cf. o sensus fidelium na constituição dogmática Lumen Gentium, n. 12): O povo de Deus, guiado pelo Espírito Santo,
não se engana na fé, e isto se manifesta por meio do sentir sobrenatural da fé. Por isso, nunca se deve pensar que o
povo fiel não sabe das coisas de Deus. O Padim Ciço tinha consciência disso,
mesmo antes do concílio Vaticano II.
Tiago de França
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