segunda-feira, 20 de julho de 2020

Pe. Cícero Romão Batista e o chamado à santidade


“O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos chamados” (Gaudete et Exsultate, n. 1).
            Estas palavras do Papa Francisco, tiradas de sua exortação apostólica que trata do chamado à santidade no mundo atual, podem ser aplicadas à vida do Pe. Cícero Romão Batista. No dia vinte de julho de 1934, aos noventa anos, o santo Patriarca de Juazeiro do Norte, entregava a sua alma a Deus. Foi o dia mais triste da história daquela localidade.
Anualmente, os católicos de Juazeiro e os romeiros da Mãe das Dores, nesta data, vestem-se de preto para marcar o luto em sua memória. O “Padim Ciço”, como até hoje é carinhosamente chamado pelos romeiros, marcou a história da Igreja católica no Brasil. Neste artigo, como devoto deste grande sacerdote, quero discorrer um pouco sobre a sua santidade.
            É preciso dizer, inicialmente, que este sacerdote obediente e fiel à mentalidade e estilo de vida de sua época e região, até hoje é vítima de interpretações equivocadas oriundas da falta do necessário conhecimento da sua vida e missão. Interpretar os fatos à luz do contexto da época é uma exigência fundamental para evitar anacronismos. A personalidade do Padim Ciço é rica em detalhes, e a sua atuação pode ser estudada a partir de vários ângulos.
            Por que podemos afirmar que ele era um homem santo? É importante considerar que a santidade não é sinônimo de perfeição, porque esta pertence unicamente a Deus. Os santos não são pessoas perfeitas. Ao analisar a vida de um santo, ensina o Papa Francisco, que “não convém deter-se nos detalhes, porque nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto de sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa” (Gaudete et Exsultate, n. 22).
            O conjunto da vida e o caminho inteiro de santificação do Padim Ciço revela esta “figura que reflete algo de Jesus Cristo”. Assim como muitos outros santos, ele fez a opção de Jesus, dedicando-se à evangelização dos pobres. Nestes o Padim Ciço encontrou a razão do seu ministério sacerdotal, porque aprendeu que Jesus Cristo está presente na vida dos pobres e sofredores.
Fiel à teologia recebida no então Seminário da Prainha, onde estudou sob o regime de formação tridentina, marcado pela disciplina aplicada pelos Padres Lazaristas, o Padim Ciço era um pregador exímio. Narra a história que a sua pregação era compreendida pelos mais simples, que ouviam com atenção a voz eloquente de um sacerdote de estatura baixa e de olhos azuis.
            Para servir melhor aos pobres e desvalidos, vítimas da fome, das doenças e das injustiças, organizou um grupo de beatos e beatas, exigindo-lhes um estilo de vida austero, caracterizado pela caridade, oração, penitência e obediência. Para cada função tinha um beato ou beata: catequese, visitas, doações, fabricação de remédios caseiros, oração, serviços de sacristia e limpeza de igrejas, cultivo da terra, aconselhamento etc. A ordem era clara: Ninguém deveria ir embora sem ser atendido pelo Padim Ciço. Para todo tipo de problema havia uma solução possível. Isso dava segurança ao povo simples, que o procurava sem cessar.
            Outro importante aspecto da santidade do Padim Ciço é a oração. Rezava e ensinava o povo a rezar. A devoção a Nossa Senhora das Dores foi proposta por ele. O rosário da Mãe de Deus e o Ofício da Imaculada Conceição são as orações prediletas dos romeiros. Ele ensinava que nada é impossível à pessoa que reza, pois a oração é alimento da fé. Educando o povo na prática da oração, Padim Ciço despertava e fortalecia a fé do povo, para que este pudesse suportar com paciência os sofrimentos da vida. “Deus nunca deixou trabalho sem recompensa, nem lágrimas sem consolação”, dizia ele.
            A integridade moral do Padim Ciço é outra qualidade que causa admiração. Nunca se ouviu dizer que tenha desrespeitado alguém. Aos doze anos de idade, influenciado pela leitura que fez da vida de São Francisco Sales, fez voto de castidade e o cumpriu por toda a sua longa vida. Era respeitado, gostava de respeitar e ensinava o valor do respeito. Homem de palavra, cumpria o que prometia, sem voltar atrás. Pastor zeloso, corrigia os errados, para que abraçassem o bom caminho. Era escutado porque tinha autoridade moral para denunciar as injustiças e os maus costumes.
            Tinha a paciência de escutar o clamor dos pobres e desvalidos. Passava horas atendendo os fiéis, tanto no sacramento da confissão quanto no aconselhamento. Para cada situação tinha uma palavra de conforto e ânimo. Seus conselhos salvaram muita gente. Recebia muitas cartas e a todas respondia com afeto paternal. Gostava de orientar os romeiros da Mãe de Deus em todos os assuntos da vida. A sua teologia era prática. Assim como Jesus, gostava de falar com simplicidade. Era tão simples que o povo gravava e guardava seus ensinamentos na mente e no coração.
            Com o passar do tempo o povo foi percebendo que estava diante de um santo, e sua fama foi se espalhando em todo o Nordeste. Muita gente deixou seus lugares de origem para morar no Juazeiro, terra da Mãe de Deus. As romarias foram aumentando, e a cidade foi crescendo. O número de romeiros aumentou mais ainda após o milagre da hóstia, ocorrido em 1889. Várias vezes, durante a comunhão, a hóstia se transformou em sangue na boca da beata Maria de Araújo. O povo logo entendeu que era um milagre, e vinha gente de toda parte para conhecer o padre, a beata e as circunstâncias do fato.
            Este milagre, que até hoje está sendo estudado por quem é de direito na Igreja, trouxe muito sofrimento ao Padim Ciço. Duas comissões de peritos foram formadas e enviadas a Juazeiro para verificar o fato. A primeira comissão afirmou ter sido milagre; a segunda desmentiu. O caso foi a Roma, bem como o Padim Ciço, que compareceu ao Tribunal do Santo Ofício para se explicar.
            Recebeu autorização para voltar ao Juazeiro e retomar o exercício do seu ministério, mas, posteriormente, o Bispo diocesano o suspendeu. Não tendo mais conseguido voltar ao exercício do ministério sacerdotal, o Padim Ciço, atendendo aos apelos dos amigos, ingressou na política. Como o tema de nossa abordagem é a santidade Padim Ciço, não abordaremos a dimensão política da vida do Padim Ciço.
            Mas é preciso considerar outro aspecto importante da santidade do Patriarca do Juazeiro: Durante toda a questão provocada pelo milagre da hóstia, ele se manteve obediente às determinações da Igreja. Teve a oportunidade de se rebelar, mas optou pela via da obediência; e morreu dizendo que, no futuro, a própria Igreja iria fazer a sua defesa. O processo de reconciliação que acontece em Roma sinaliza que esta profecia se cumprirá no tempo oportuno. É a esperança de todo romeiro da Mãe de Deus e do Padim Ciço.
            O Padim Ciço morreu com fama de santo, aclamado pelos mais pobres. Já antes de morrer, conta-se a realização de inúmeros milagres. Após sua morte, os romeiros passaram a pedir a sua intercessão junto a Deus. Desde então, incontáveis são os milagres alcançados graças à sua intercessão. Qualquer pessoa sensível ao sentimento religioso do povo, basta ir ao Juazeiro em tempos de romaria, para ver de perto o significado do amor ao Padim Ciço. Juazeiro respira religiosidade; é uma cidade que gira em torno da pessoa dele. Sem ele, Juazeiro não seria a cidade que é: Grande, bela, hospitaleira e marcada pela fé.
            O testemunho do Padim Ciço revela o significado da santidade na vida da Igreja: Entregar-se a Deus para ganhar a vida verdadeira. Entregar-se a Deus é doar-se aos irmãos, gastando a vida inteira no exercício evangélico da caridade. Fora da caridade não existe santidade, porque o que santifica a pessoa é a vivência do amor. Este é o que permanece para sempre. Para saber se uma pessoa é santa, basta verificar se vive segundo as bem-aventuranças do Evangelho de Cristo. Deus olha a caridade vivida, porque nela está a salvação. Cristo nos salva no amor.
            Conhecer, saber e ensinar a doutrina da Igreja é importante, bem como é importante ser dizimista, ir à Missa, receber os sacramentos, rezar o rosário, ser devoto dos santos e de Maria etc., mas se todas estas “coisas” não forem acompanhadas pela vivência do amor, de nada servem. Também na vida clerical podemos dizer o mesmo: O clérigo pode até rezar a Missa e a Liturgia das Horas, observar as rubricas na liturgia, fazer uma boa pregação, ensinar ortodoxamente a doutrina, administrar bem a paróquia, construir igrejas e demais prédios, usar batina e indumentárias belas e caras, mas se não demonstrar amor, de nada serve. O amor é a regra da missão.
            Tem crescido muito o interesse de muitos católicos pelas beatificações e canonizações. O culto aos santos é importante, mas não deve ocupar a centralidade da vida eclesial. O cristianismo não deve viver de devoções, apesar destas terem a sua importância. O mais importante é cada cristão procure ser santo.
É Jesus o centro da vida cristã e eclesial. Muitas vezes, corre-se o risco de reivindicar a canonização de leigos ou clérigos, que até que foram boas pessoas, mas que não viveram a caridade conforme o Evangelho. Não é porque uma pessoa, leigo ou clérigo, tenha ganhado notoriedade na mídia, tendo-se utilizado desta para o ensino da doutrina, que já possa ser considerada santa.
Por isso, mais do que a busca por canonização que visam incrementar o grande número de santos, a urgência do momento é que cada cristão católico procure seguir Jesus. A Igreja precisa de mais pessoas que aceitem o desafio da santidade, para que, assim, a Igreja possa dar testemunho de unidade, justiça e paz no mundo.
Tendo verificado o conjunto da vida do Padim Ciço, os sinais de santidade são evidentes. Antes mesmo de sua canonização, já é santo no coração dos romeiros da Mãe de Deus. Os pobres conhecem e sabem venerar os santos de Deus, e a Igreja reconhece isso (cf. o sensus fidelium na constituição dogmática Lumen Gentium, n. 12): O povo de Deus, guiado pelo Espírito Santo, não se engana na fé, e isto se manifesta por meio do sentir sobrenatural da fé. Por isso, nunca se deve pensar que o povo fiel não sabe das coisas de Deus. O Padim Ciço tinha consciência disso, mesmo antes do concílio Vaticano II.
Tiago de França

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