A saída
do ex-ministro Sérgio Moro do Ministério da Justiça gerou confusão, revelou
algumas verdades e confirmou outras. O fato é que nada pode passar
despercebido, pois a situação deveria interessar a todos os brasileiros. Muitos
não se interessam, apesar de serem vítimas da situação. Tudo depende da
política. Não adianta fugir disso.
1. Um dado inicial: A ligação do
ex-ministro com a Globo
Há um dado inicial que precisa ser
considerado, e que explica muito daquilo que está sendo veiculado hoje: A
ligação do ex-ministro com a Globo. Não é uma novidade para aqueles que
acompanharam os desdobramentos da operação Lava Jato. A Globo teve o privilégio
de ter acesso antecipado a muitas das informações sigilosas da operação. Esse repasse
de informações ficou conhecido como “vaza jato”.
Esta prática é ilegal, mas a
ilegalidade se tornou prática comum no Brasil. As informações foram vazadas, de
forma seletiva e para prejudicar pessoas determinadas, e nada se fez para punir
os responsáveis. O então juiz Sérgio Moro saiu ileso de Curitiba. A defesa dos
réus, especialmente a do ex-presidente Lula, denunciou as irregularidades dos
processos no STF e na ONU, mas nada aconteceu. As chamadas nulidades
processuais não foram rigorosamente apreciadas: Tanto o Tribunal Regional da
região de Curitiba quanto o STJ e STF ignoraram tais nulidades.
A mesma Globo, neste momento,
continua fiel ao seu papel: Recebeu do ex-ministro mensagens de celular,
fazendo, desse modo, a sua defesa perante a opinião pública. A ideia é clara:
Manter a fama de “herói nacional” construída durante a operação Lava Jato. O ex-juiz
está na condição de quem é justo, saindo de um governo de gente suspeita. Quando
juiz, eis a falta grave no exercício de sua função: A total ausência de
imparcialidade na condução dos processos contra o ex-presidente Lula. A sua
ligação com a Globo é uma das provas incontestáveis disso.
2. O histórico do presidente e as eleições
de 2018
Não é novidade para ninguém que o
atual presidente, desde quando deputado, sempre militou a favor de sua própria
família. O histórico político do ex-capitão mostra que nunca fez nada de
significativo pelo bem comum. Durante quase três décadas foi deputado pelo Rio
de Janeiro. O que efetivamente fez por aquele Estado? A situação do Rio de Janeiro
expressa bem o que a maioria dos políticos anda fazendo por aquela parcela
sofrida de brasileiros. O fato é que o ex-capitão nunca fez nada de grandioso
sequer pelos militares.
Mas parcela do povo brasileiro – não
a maioria, pois esta não compareceu ao segundo turno das eleições – o quis
presidente da República. As classes média e empresarial são responsáveis pela
vitória do ex-capitão. Isto está registrado nas páginas sombrias da história
política brasileira. Uma minoria de gente pobre entrou na onda e também votou. Mas
a maioria dos pobres, presente principalmente no nordeste, não se identificou
com o discurso de ódio adotado por Bolsonaro em sua campanha. O pobre
nordestino, de modo geral, logo percebeu a falácia do discurso.
3. A participação de Moro na vitória do
presidente
Hoje, o presidente afirma que foi eleito sem a
ajuda do ex-juiz. Isto não é verdade, pois durante a campanha eleitoral já se
falava na possibilidade do então juiz se tornar Ministro da Justiça de seu
governo. O nome do então juiz foi usado e abusado durante a campanha, e os
eleitores do presidente acreditaram que, de fato, o então candidato era
comprometido com o combate à corrupção, por indicar a escolha de um juiz que
ganhou a fama de justiceiro.
O então juiz cumpriu o seu papel:
Tirou o ex-presidente Lula, que resistiu até o fim, da corrida ao cargo de
presidente da República. O candidato Bolsonaro precisava disso, pois se fosse
concorrer com o ex-presidente Lula, certamente teria perdido logo no primeiro
turno.
A Globo também fez seu papel, publicando grampos telefônicos
e mensagens de texto que comprometeram, gravemente, a campanha eleitoral do
candidato do PT no lugar do ex-presidente Lula, o ex-prefeito de São Paulo, Fernando
Haddad. Mesmo assim, a eleição presidencial foi para o segundo turno. E neste,
o ódio ao PT venceu: “Grita forte,
brasileiro, ê, ê, ê, fora Dilma! Fora Lula! Fora PT”, cantavam e dançavam
os bolsonaristas. A esta altura, muitos já estão arrependidos. Mas nem todos. Ainda
há muita gente iludida.
4. A nomeação do ex-juiz e a falácia da “carta
branca”
O presidente nomeou o ex-juiz, que julgou e condenou o seu
principal adversário político, como Ministro da Justiça. Os iludidos
acreditaram que seria o fim da corrupção no Brasil! O discurso anticorrupção,
no Brasil, de modo geral, esconde a corrupção. Os mais esclarecidos já
perceberam isso. A elite política e econômica ama esse discurso. Numa sociedade
cuja maioria da população está cansada da velha e corrompida política, tal
discurso gera credibilidade. O problema é que as pessoas não analisam os perfis
de quem está propagando esse discurso.
O ex-juiz afirma ter sido enganado pelo presidente, pois já
antes da nomeação, este o assegurou que teria “carta branca” para agir. Se ele
realmente acreditou nisso, então era um iludido. Na política brasileira não
existe “carta branca” para se combater a corrupção. Bastava o ex-juiz olhar o
histórico da família Bolsonaro para compreender a falácia da “carta branca”. Inúmeras
vezes, o presidente e os seus foram envolvidos em suspeitas. O filho do
presidente está sendo investigado pela Polícia Federal por supostas práticas
ilícitas da época em que foi deputado estadual no Rio de Janeiro.
5. A atuação do Ministro e a gravidade da tentativa
de interferência do presidente
Mas o ex-juiz sabia muito bem o que estava fazendo e com
quem estava lidando. Dificilmente encontramos na magistratura alguém que seja
politicamente iludido. É possível encontrar desonestos, mas iludidos, jamais. No
Ministério da Justiça, o ex-juiz não teve êxito. As grandes operações da
Polícia Federal cessaram; o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco
não foi solucionado; o sistema prisional permanece caótico; total ausência de
política de promoção dos direitos humanos; ausência de uma eficiente política
nacional de segurança pública etc. O ex-ministro permaneceu em silêncio: Foi um
dos ministros mais apagados do governo.
No segundo semestre de 2019, o presidente resolveu dar
sinais de que não estava satisfeito com a atuação da Polícia Federal, e sugeriu
a demissão do diretor-geral da corporação, bem como a substituição de alguns
superintendentes. Segundo o que se apurou, a preocupação do presidente não era
com o combate à corrupção, mas com algumas investigações que estavam caminhando
na direção de sua família. Por ocasião de sua saída do governo, o ex-ministro
fez questão de confirmar esta suspeita.
A tentativa de substituir o diretor-geral e
superintendentes sem que estes tenham cometido falta funcional constitui interferência
indevida na Polícia Federal, afetando a necessária autonomia que a instituição
precisa para desenvolver o seu trabalho. Esta Polícia é, por lei, subordinada
ao Presidente, mas este não tem o direito de saber sobre o andamento das
investigações. Os relatórios de inteligência da Polícia Federal não podem ser
enviados ao Presidente da República.
O presidente recuou na tentativa de substituição desses
agentes, em 2019. Como as investigações continuaram, o presidente resolveu
agir: Demitiu o diretor-geral da Polícia Federal, sem o aval do Ministro da
Justiça. Este reagiu, imediatamente, tentando reverter a situação, mas não teve
êxito. O diretor-geral é um de seus amigos, que atuou na operação Lava Jato. O ex-juiz
não perdeu tempo, e aproveitou a oportunidade para deixar o governo.
6. A entrevista bombástica do Ministro e
sua saída do governo Bolsonaro
O contexto favoreceu a saída do ex-juiz Moro, que, certamente,
estava esperando uma boa oportunidade. Tendo esperado o momento certo,
surpreendeu o presidente ao convocar uma entrevista coletiva, com o objetivo de
preservar a imagem que conseguiu construir junto à população. O ex-juiz não tem
nada de ingênuo.
A fala do ex-juiz é bombástica e coloca o presidente numa
situação arriscada. O teor da entrevista aponta para o cometimento de possíveis
crimes: obstrução de justiça, falsidade ideológica, advocacia administrativa,
prevaricação, corrupção, coação e crime de responsabilidade, que podem abrir
caminho para o processo de impeachment. É o que dizem os especialistas em
direito criminal, que se debruçaram sobre a entrevista do ex-juiz Moro. É preciso
considerar que, no momento da entrevista, o ex-juiz falou como Ministro de
Estado, ou seja, agente público. Portanto, a sua fala goza da presunção de
veracidade.
Não é nosso propósito fazer uma análise minuciosa da fala
do ex-juiz, mas apenas situá-la no âmbito da conjuntura política nacional. Um ministro
de Estado não é um agente do Poder Judiciário, ou seja, Sérgio Moro não é mais
Juiz Federal. Todo ministro milita a favor do governo que representa. Assim que
foi nomeado, ganhou a fama de ser um superministro de Estado. Isso significa
que era um dos homens de confiança do Presidente da República.
7. Bolsonaro ganha um forte inimigo
político
Neste sentido, é preciso considerar que o presidente foi
eleito com a ajuda do ex-juiz e este foi beneficiado com o cargo de Ministro da
Justiça. O mesmo ouviu do presidente a promessa de que seria indicado para ser
Ministro do Supremo Tribunal Federal. O presidente assinalou publicação esta
possibilidade. Mas a promessa não foi suficiente para manter o ex-juiz sob o
controle de suas pretensões e caprichos pessoais. O superministro se
transformou em um forte inimigo político. Este conhece o presidente e os
bastidores de seu governo.
Após a entrevista do ex-juiz, o presidente tentou se
defender. Tentou passar a ideia de que seu ex-ministro é um traidor e
oportunista. Não é possível conceber esta ideia porque, na verdade, o ex-juiz
continua sendo fiel ao seu propósito inicial: Ao deixar a magistratura, Sérgio
Moro optou pela política partidária. Deixou o tribunal para atuar na seara
política, e sabia muito bem que a política brasileira não é formada por santos.
As palavras e os gestos do ex-ministro apontam para a
crença de que o caminho que optou é exitoso, e com o apoio da Globo, o sucesso
pode ser garantido. Um político ignorado pela grande mídia tem mais dificuldade
de ter sucesso em suas pretensões. É verdade que a mesma mídia que exalta é a
que, posteriormente, pode execrar. Mas a aposta inicial tem dado certo. O perfil
do ex-ministro se encaixa, perfeitamente, no jeito de fazer política no Brasil.
Por isso, não causaria surpresa se o ex-ministro optasse por se filiar a um
partido político, para tornar mais claras as suas pretensões. O PSDB tem
interesse nisso.
8. O pedido de investigação da fala do
ex-ministro e seus desdobramentos políticos
Como a Procuradoria Geral da República solicitou ao STF a
investigação das declarações do ex-ministro, caso se confirmem, também ele pode
se complicar. Mas isto depende da forma como o Judiciário vai lidar com a
situação investigada. Dependendo do consenso dos que irão analisar o resultado
das investigações, o ex-juiz poderá seguir ileso. O resultado das investigações
e o convencimento dos juízes podem resultar no fim da carreira política tanto
do presidente quanto do ex-juiz, ou de um deles. Pode ocorrer também que tudo
permaneça como está, e ambos continuem atuando no triste e vergonhoso cenário
político nacional.
Imediatamente após o anúncio de seu pedido de demissão, o
ex-ministro repassou ao Jornal Nacional da Globo mensagens de seu celular que
comprovam a insatisfação do presidente em relação ao diretor-geral da Polícia
Federal. A interferência parece nítida. Trata-se de algo que precisa ser
devidamente esclarecido, porque compromete, seriamente, tanto o trabalho da
Polícia Federal quanto a imagem da corporação, que nos últimos tempos,
principalmente durante os governos petistas, gozou de liberdade para investigar
os crimes cometidos e supostamente cometidos por pessoas ricas e influentes.
9. O presidente procura a solução para seu
problema: Encontrar amigos para o Ministério da Justiça e direção-geral da
Polícia Federal.
Passada a tensão das primeiras horas do conflito, o
presidente, desde então, começou a articular a sucessão para os cargos de
Ministro da Justiça e diretor-geral da Polícia Federal. Os nomes conhecidos até
o momento, e mesmo se forem substituídos por outros, confirmam a ideia de que o
presidente está querendo, para ambos os cargos, pessoas com as quais tenha
contato direto e constante, para o repasse de informações. Os escolhidos serão conhecidos
próximos do presidente e de seus filhos. Estes tem sido seus assessores
diretos. Dificilmente, um ministro permanece no cargo se desagradá-los.
Como o presidente e seus filhos estão sendo alvo de
investigações por parte da Polícia Federal, o futuro Ministro da Justiça e o
diretor-geral da Polícia Federal serão pessoas que terão que lidar com essas
investigações. Se o Poder Judiciário permitir que o presidente nomeie pessoas “amigas”,
o resultado de toda essa confusão já é previsível: Vai dar em pizza! É possível
que o Judiciário interfira nas nomeações a estes cargos? Sim, é possível, e
dependendo de quem seja nomeado, é necessário que se interfira com rapidez e
firmeza.
10. A clareza dos princípios
constitucionais que regem a Administração Pública direta e indireta
No que se refere à Administração Pública, eis o que dispõe
o artigo 37, caput, da Constituição
de 1988: A administração pública direta e
indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência. O presidente e seus filhos precisam
conhecer este importante artigo da Constituição. Estes princípios
constitucionais não são opcionais, mas de cumprimento obrigatório. Em outros
termos, devem ser observados em todas as circunstâncias. O presidente precisa
conhecer tais princípios e colocá-los em prática, principalmente os princípios
da impessoalidade e da moralidade.
A Polícia Federal não pode ser transformada numa espécie de
gestapo (polícia que servia ao regime
nazista na Alemanha), ou seja, numa polícia que serve à satisfação dos
interesses do presidente, de sua família e aliados políticos. A Polícia Federal
é Polícia de Estado, chefiada pelo presidente da República, mas que não pode
ser submetida a seus caprichos pessoais. Não trabalha somente nas investigações
dos crimes contra a pessoa do Presidente da República, mas sua missão é de “exercer as atribuições de polícia
judiciária e administrativa da União, a fim de contribuir na manutenção da lei
e da ordem, preservando o estado democrático de direito” (é assim que a
Polícia Federal define a sua missão em seu site oficial na Internet).
11. E agora, José?...
O cenário político parece bem desenhado. Não parece
inexistir clareza quanto ao que está ocorrendo. Só não compreende a situação aqueles
que não se ocupam com análises críticas da realidade. Como a maioria dos
brasileiros assim procede, então o ex-ministro está sendo considerado uma
espécie de vítima da falta de honestidade e transparência do presidente.
Na verdade, o que se pode concluir é que ambos são
parecidos; ambos se beneficiaram do aparelho estatal para se manterem
politicamente. Enquanto isso, os pobres que integram a maioria do povo
brasileiro padecem com a pandemia do coronavírus e o crescimento de desemprego.
Mas o presidente não está preocupado com isso, pois anda bastante ocupado com a
busca dos “amigos” que ocuparão os cargos vagos. Estes cargos são cruciais para
a sua sobrevivência política. Como a frágil e sofrida democracia brasileira é pouco
participativa, resta-nos esperar para ver no que vai dar. Fiquemos atentos, e
em casa.
Tiago de França
2 comentários:
Tiago, seu texto é excelente, como sempre, porém muito longo para a linguagem da mídia. Seria interessante, colocá-lo ponto a ponto.
Obrigado, prezada Lygia!
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