Algumas
pessoas pediram a minha opinião sobre a Carta ao povo de Deus, assinada por
dezenas de Bispos da Igreja católica, publicada pela coluna da jornalista Mônica
Bergamo, na Folha de São Paulo, no dia 26 de julho do corrente ano. Li e
analisei o conteúdo da Carta, bem como estou acompanhando nas redes sociais as
reações de inúmeras pessoas e grupos, tanto dentro quanto fora da Igreja
católica. Neste breve artigo, quero tecer algumas considerações tanto sobre o
conteúdo quanto sobre essas reações. Inicialmente, é preciso dizer que não sou filiado
a nenhum partido político, nem faço a defesa apaixonada de nenhum deles. Falo
como cristão, candidato às ordens sacras, advogado e professor.
1. O conteúdo da Carta
Os
signatários da Carta começam falando que estamos vivendo uma situação grave, e
que resolveram se manifestar em comunhão com o Papa e seu magistério, bem como
com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, à luz do Evangelho e da
Doutrina Social da Igreja. A premissa básica para a compreensão da Carta é o
prévio conhecimento, nem que seja em linhas gerais, do significado da comunhão
eclesial e da Doutrina Social da Igreja. Cabe aos Bispos se pronunciarem sobre
os fatos, quer como Conferência Episcopal, quer individualmente. Neste caso,
vários Bispos, de diferentes regiões do Brasil, resolveram se pronunciar sobre
o momento grave em que estamos vivendo. Quem ignora a gravidade deste momento,
não compreende a Carta.
Em seguida, os Bispos falam do
significado da missão da Igreja no mundo. Explicam aquilo que todo bom católico
conhece e tem convicção: A Igreja nasceu para evangelizar. Citando o Papa
Francisco, explicitam o conceito simples e teologicamente profundo sobre a
evangelização: “Evangelizar é tornar o
Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). O Reino de
Deus está presente no mundo. Trata-se de uma realidade dinâmica e
transformadora, que conhecerá a sua realização plena na volta definitiva de
Cristo. A Igreja está a serviço desse Reino, e não o contrário. Esta é a fé da
Igreja, fundamentada nas Escrituras Sagradas.
A Carta segue manifestando a
intenção dos Bispos: “Nosso único
interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que
avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e
solidária, como uma civilização do amor”. Eles não falam em nome de um
partido político, nem em função da política partidária. Nenhum deles tem a
pretensão de governar o País. Esta não é a função deles. Mas como a Igreja não vive
a sua missão fora da realidade, esta merece a apreciação de todos, inclusive
dos Bispos. Estes são homens de Deus e do mundo, e não podem ignorar o que
acontece no mundo.
A partir deste momento, os Bispos
começam a fazer uma descrição pormenorizada dos principais problemas que afetam
os brasileiros. Eles falam com a autoridade de quem conhece e tem a missão de
anunciar o Reino de Deus. Neste anúncio está a denúncia das injustiças.
Considerando a falta de um projeto de poder que favoreça, efetivamente, a
promoção dos pobres e mais vulneráveis, bem como a proteção do meio ambiente, os
Bispos retratam as consequências sociais que decorrem desta ausência.
O leitor da Carta precisa considerar que o atual governo
não tem priorizado os mais pobres, mas governado para as classes mais
favorecidas, composta, principalmente, por empresários que lutaram para eleger
o atual presidente. Basta recordar a campanha eleitoral do presidente em 2018.
Independente de viés ideológico, todo brasileiro, minimamente informado, sabe
que o presidente foi eleito com o apoio da elite econômica do país. E sabe
também que esta elite econômica controla o governo. Por isso, as medidas
governamentais não favorecem os pobres.
Em breve será aprovada a Reforma Tributária, que está sendo
apresentada aos poucos, para não assustar a população. Quem analisar essa
Reforma verá que os pobres continuarão pagando mais impostos que os ricos. As
mudanças tendem a piorar a situação dos pobres. Afirmar isso significa adesão
ao comunismo? Se a resposta for positiva, então convido a estudar um pouco
sobre dois conceitos: Ideologia e comunismo. Não adianta negar a realidade. O negacionismo
é sinônimo de ignorância. Independentemente de preferências políticas, temos
que admitir que a corda está no pescoço dos pobres.
A Carta continua com a denúncia dos discursos
anticientíficos, “que tentam naturalizar
ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como
fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com
o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os
conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço”. Os
Bispos também reconhecem a “incapacidade
e inabilidade do Governo Federal” em enfrentar as crises política e
econômica. Também fazem uma dura crítica ao modelo econômico neoliberal, “que privilegia o monopólio de pequenos
grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população”.
Os Bispos também reprovam as ações que atentam contra a
democracia, perpetradas pelo governo e assistidas por todos os brasileiros: Os
ataques às instituições, que geraram grave instabilidade institucional, fato
inédito na história da República brasileira. Outros expedientes condenáveis
pela moral católica e pelo bom senso das pessoas são denunciados pelos Bispos:
flexibilização das leis de trânsito; uso de armas de fogo pela população; recurso
à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas (fake news).
Também denunciam o “desprezo
pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia”, que os estarrece. Citam
ações praticadas pelo governo federal que explicitam este desprezo em cada um
desses âmbitos. No aspecto econômico, os Bispos denunciam o Ministro da
Economia, que “desdenha dos pequenos
empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando
apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos
financeiros que nada produzem”. Falam da recessão que ameaça o país,
gerando desemprego e fome.
De forma contundente, denunciam a “omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da
sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as
populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que sobrevive nas
ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia
do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os
levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são
impostas de forma cruel”. Citam o descaso do governo quanto à situação dos
povos indígenas, que, “dentre outros
pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos
hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação
sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais
(Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020)”.
Os Bispos também denunciam a manipulação religiosa por
parte do governo, que se utiliza da religião “para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o
ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes”. Essa manipulação
acontece porque assiste-se à “associação
entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos
religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário”. Não é
novidade para ninguém que o presidente é amigo pessoal de muitos pastores de
Igrejas ditas evangélicas, e que sempre busca favorecê-las. Curiosamente, o
presidente se diz cristão, mas frequenta inúmeras Igrejas.
Chegando ao final da Carta, os Bispos convidam ao respeito
à pluralidade. Como não basta denunciar, mas é necessário propor; então, eles propõem
“um amplo diálogo nacional que envolva
humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e
mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição
Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com
transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise
ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com
alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade
para todos”.
A Carta é finalizada com um convite: “Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros
espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam.
Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se
aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm
13,12)”, e com a bênção sacerdotal do livro de Números, capítulo 6,
versículos 24 a 26.
2. As reações à Carta
As
reações à Carta foram imediatas. Fora da Igreja católica, foi bem recebida
pelos intelectuais comprometidos com as necessárias transformações que
beneficiam os mais pobres. Esses intelectuais não são necessariamente de
esquerda, mas são ativistas engajados em questões políticas e sociais, sem
paixões partidárias. Também os membros dos partidos de esquerda se
identificaram com as denúncias feitas na Carta. O mesmo se pode falar,
certamente, dos movimentos sociais que lutam com os menos favorecidos.
A elite econômica e todos aqueles que
se beneficiam das ações contrárias ao bem comum, praticadas pelo governo
federal, certamente não gostaram da Carta. Pessoas e grupos ligados ao governo
devem ter se sentido confrontados, porque se beneficiam de um governo que não
governa para todos. Também não deve ter gostado da Carta os pastores das
Igrejas ditas evangélicas, que fazem propaganda do governo em suas Igrejas, em
troca de favores. Não preciso citar nomes, porque já são bastante conhecidos.
Os eleitores não arrependidos do
presidente Bolsonaro, principalmente os mais fanáticos, odiaram a Carta. Muitos
deles estão vociferando seu ódio nas redes sociais. É algo estarrecedor. Utilizam-se
de palavrões e expressões ofensivas. São, de fato, fanáticos.
Dominados pelo ódio e pela total ausência de reflexão,
dedicam-se a defender o presidente da República. Calúnia, difamação e muitas
notícias falsas aparecem como um oceano infinito. As redes sociais se
transformaram num palco de exposição do que há de mais vergonhoso no ser
humano. E para piorar, muitos agem em nome de Deus e da religião cristã. Não aceitam
críticas, nem estão abertos ao diálogo; são violentos e intolerantes; desconhecem
Jesus e sua mensagem de justiça e paz.
No seio da Igreja
católica, as reações à Carta também apareceram. Os católicos tradicionalistas,
que são mais fechados e possuem mentalidade de cristandade, odiaram a Carta. Eles
também ocupam as redes sociais, sites, blogs e canais no YouTube para julgar e
condenar a iniciativa dos Bispos, que são acusados de serem comunistas e
petistas. No mundo da ignorância e da intolerância, discordar do atual governo
é coisa de comunista e petista. Quem é contrário ao governo é, necessariamente,
comunista e petista. O mesmo se diga dos críticos dos governos petistas, que
também são taxados de fascistas e bolsonaristas. Trata-se de uma visão míope,
reducionista e infundada.
Salvo exceções, os católicos tradicionalistas são eleitores
do presidente Jair Bolsonaro. Há os que não são tradicionalistas, mas se
reconhecem como conservadores, tanto clérigos quanto leigos, que também são
eleitores convictos do presidente. Pelas reações de muitos nas redes sociais,
também não gostaram da Carta. Alguns se utilizam das mesmas expressões dos
tradicionalistas radicais, verdadeiros “talibãs católicos”. Outros não são tão
violentos, mas se declaram explicitamente contrários aos Bispos, por
considerarem a política um tema que não deve ser abordado na Igreja católica. Muitos
acreditam que os problemas sociais e políticos são “coisas do mundo”, e que a
Igreja não deve se ocupar com tais coisas.
Esses católicos parecem ignorar o Evangelho e a Doutrina
Social da Igreja. Também confundem política com partido político. A maioria
desconhece o verdadeiro significado terminológico, sociológico, filosófico e
histórico da palavra comunismo. Muitas publicações nas redes sociais revelam a
ausência de argumentos minimamente razoáveis.
Há uma infinita repetição de frases de efeito, pensamentos
sem lógica, notícias falsas e dados supostamente históricos, que
cientificamente não se sustentam. Falta muita leitura, interpretação de texto,
conhecimento histórico e senso crítico. Os tradicionalistas confundem Tradição
(com “t” maiúsculo) com tradição. E quando se referem à Tradição, mostram que
não a conhecem. Trata-se de uma confusão proposital e interminável, uma
violência que divide a Igreja e envergonha o cristianismo perante o mundo.
Alguns dizem que a Carta não goza de legitimidade porque
seus signatários não integram a presidência da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil e, por isso, não poderiam falar em nome da Igreja. Sobre esse ponto,
é preciso considerar três aspectos: 1) Cada Bispo é autônomo para falar em nome
da Igreja, por ser sucessor dos Apóstolos, Pastor da Igreja, mestre da
doutrina, sacerdote do culto e ministro de governo eclesiástico (cf. o cânon
375, §1 do Código de Direito Canônico), portanto, possui plena autonomia para
se manifestar sobre qualquer assunto, especialmente acerca de questões que
ferem a dignidade da pessoa humana; 2) Cada Bispo é livre para pensar, bem como
para agir conforme a sua consciência. A Conferência Episcopal não é formada por
Bispos que pensam e agem da mesma forma. Não existe nem deve existir pensamento
uniforme na Igreja. A pluralidade de ideias e posturas é necessária e saudável,
e não fere a colegialidade episcopal; 3) A legitimidade das manifestações está
relacionada não somente ao poder que o Batismo confere a todo cristão, mas
sobretudo ao testemunho que todos os batizados manifestam ao se interessar
pelos problemas do mundo, tendo em vista solucioná-los à luz do Evangelho de
Jesus.
Cada Bispo, padre, diácono e todos os demais fiéis devem
procurar viver o Evangelho, e tal vivência acontece em meio aos conflitos que
ocorrem na sociedade. Não se vive o Evangelho nas sacristias das igrejas, mas
no meio do mundo, porque as “alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (Gaudium et Spes – constituição pastoral sobre
a Igreja no mundo atual, n. 1).
Por isso, parabenizo a iniciativa e a coragem dos Bispos
que escreveram e assinaram a Carta. A situação social e política do país não
pode ser ignorada. Cabe à Igreja profetizar. Uma Igreja sem profecia não serve
ao Reino de Deus. Apesar dos riscos inerentes à profecia, é necessário obedecer
ao que Deus manda. O mandato missionário de Jesus é claro e precisa ser
cumprido. Não se deve pecar por omissão.
No juízo final, Jesus julgará pelo que se fez aos pobres e
pequeninos (cf. Mt 25,31-45), ou seja, o amor será o critério do julgamento. Não
é a defesa ferrenha da doutrina, da moral e dos bons costumes que salva, mas o
anúncio de Jesus Cristo que acontece na prática da caridade. A doutrina, a
moral e os bons costumes devem convergir para Cristo; do contrário,
transformam-se em empecilhos na caminhada para Deus.
Em síntese, é o que penso sobre a Carta ao Povo de Deus,
que muito me alegrou, por saber que a Igreja não é indiferente ao que se passa
com o sofrido povo brasileiro. É preciso avançar para as águas mais profundas,
sem medo das tempestades. Cristo Jesus está na embarcação, decidido a
permanecer nela até o fim dos tempos.
Tiago de França
7 comentários:
Como sempre, ótimo comentário. Bem fundamentado e claro! Obrigado Tiago!
Belíssima reflexão. Quem tem olhos, ouvidos, que veja, ouça e porque não saia do comodismo, afinal a conivência do silêncio, também pode ajudar a matar.
Como sempre você ressalta tudo bem detalhado, parabéns meu amigo
Obrigado! Reze por mim. Abraço!
Obrigado! Reze por mim. Grande abraço!
Obrigado! Reze por mim. Grande abraço!
Precisamos acordar verdadeiramente.O Reino de Deus deve iniciar aqui, e' dever nosso denunciar toda forma de injustiça.Parabens aos Bispos brasileiros.Coragem! O nosso apoio.
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