domingo, 14 de junho de 2020

A compaixão de Jesus e o perigo da insensibilidade


“...vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9,36).
            Jesus viu as multidões. O verbo ver precisa ser melhor vivido pelas pessoas. Às vezes, corremos o risco de viver sem olhar para os outros, mas apenas centrados em nós mesmos. Quem se ocupa somente consigo mesmo, com seus próprios interesses, com suas buscas e sonhos, preocupado somente em alcançar seus objetivos, facilmente se torna egoísta. O verbo ver nos oferta uma questão importante: Tenho enxergado as pessoas, ou sigo minha vida pensando e agindo somente em função da minha realização e felicidade pessoais?...
            No seio da comunidade cristã também é necessário se perguntar se as pessoas estão sendo esquecidas, ou deixadas de lado. Temos pessoas invisíveis em nossas comunidades? Ou será que somente enxergamos aquelas que nos podem ajudar, ou satisfazer nossos interesses e caprichos? A fé cristã é comunitária, e não permite que o cristão se comporte ignorando os outros. Nas famílias e comunidades é preciso redimensionar o olhar. As pessoas precisam ser enxergadas, especialmente as mais frágeis e sofredoras. Tenho enxergado o sofrimento dos outros, ou finjo que eles não existem?...
            Jesus se compadeceu porque as multidões estavam cansadas e abatidas. Hoje, as multidões de brasileiros estão cansadas e abatidas, por causa da pandemia do coronavírus e das crises econômica e política. O cansaço e abatimento decorrem de inúmeras situações, dentre as quais podemos citar o medo de adoecer, de passar fome e morrer; a fome que já maltrata milhões de pessoas, muitas delas, desempregadas, ou incapazes de trabalhar; a violência doméstica que aumenta; a ansiedade que domina por causa do medo em relação ao futuro incerto; as constantes ameaças ao regime democrático já fragilizado; a falta de compaixão de autoridades que se aproveitam do cenário atual para tirar vantagens política e econômica etc. Estou enxergando esta realidade, ou penso e ajo como se nada tivesse a ver comigo?...
            O evangelista diz que as multidões estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não tem pastor. Isso significa que as multidões estavam abandonadas à própria sorte, desamparadas. Quem consegue enxergar a realidade atual, logo percebe que a situação de abandono e desamparo é gritante. Nas Igrejas cristãs há uma tentação constante, que precisa ser enfrentada com coragem, reflexão, discernimento e oração: Há o risco de os líderes religiosos se preocuparem, em primeiro lugar, com a própria sobrevivência e com a sobrevivência de suas instituições, em detrimento da vida sofrida do povo. Parece que foi isso que ocorreu, recentemente, com alguns religiosos que ofereceram apoio ao presidente da República em troca de verba pública para seus meios de comunicação. Por que esses religiosos não pediram para o governo ter compaixão das vítimas da pandemia do coronavírus?...
            Ao ver a situação das multidões cansadas e abatidas, Jesus se dirige a seus discípulos e lhes faz a seguinte recomendação: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi pois ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita!” (Mt 9,37). O campo de trabalho é imenso, há muito o que se fazer. Não se pode reclamar a falta de serviço. Há muita gente precisando de ajuda em toda parte. Isso é uma constante na história da humanidade. São muitos os campos de missão; muitas as periferias materiais e existenciais. Sempre é possível fazer alguma coisa. Não se trata de abarcar o mundo, no afã de resolver tudo, mas de estender a mão para alguém: escutar, apoiar, incentivar, ajudar de alguma forma.
            Quando Jesus recomenda aos discípulos que peçam a Deus que envie trabalhadores para a colheita, na verdade, ele está apontando para a realidade. Pedir para que Deus envie trabalhadores para a sua colheita. Não se pode conceber que Deus envie trabalhadores para que vivam ocupados somente com o seu próprio bem-estar. Isso não é ser trabalhador, mas mercenário. O trabalhador da messe do Senhor vive em função da messe, não em função de si mesmo. Nas Igrejas, os que se consagram ao serviço do Senhor, consagram-se ao serviço da messe. Às vezes, tem-se a impressão de que muitos consagrados se esquecem de que são operários da messe do Senhor.
            O trabalhador da messe do Senhor é alguém que se identifica com Jesus e seus desígnios, e esta identificação exige compromisso com a construção do Reino de Deus, que é amor, justiça e paz para todos. Para isso, exige-se uma entrega total de si. O trabalhador da messe do Senhor é alguém que vive a contemplação na ação. A santidade deste trabalhador depende, necessariamente, de sua dedicação pastoral e de seu compromisso com o mundo. É o que nos ensina o Papa Francisco em sua belíssima encíclica Gaudete et Exsultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual, nn. 25-27.
            Após nomear os doze discípulos, dando-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar doenças e enfermidades, Jesus ordena para irem primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10,6). O trabalhador da messe do Senhor não é chamado a julgar e condenar as ovelhas perdidas, mas recebeu de Jesus a ordem de ir até elas para resgatá-las. Jesus praticou isso em sua missão: Aproximou-se, acolheu, curou e deu dignidade às pessoas consideradas perdidas. Qual tem sido o nosso pensamento e nossa maneira de agir quando nos deparamos com as pessoas que consideramos “perdidas”? Se as julgamos, condenamos, mandamos para o inferno, ou agimos para que sejam mais prejudicadas ainda, então não estamos no caminho de Jesus. E nossas Igrejas, como tem tratado estas ovelhas?...
            É preciso anunciar que o Reino dos céus está próximo (Mt 10,7). Este Reino não é uma má notícia, nem ocasião de condenação para as ovelhas perdidas, mas anúncio de renovação da vida em Jesus Cristo para a glória de Deus Pai. O trabalhador da messe do Senhor é um agente da Boa notícia, não é um propagador do medo e da morte.
No mundo, já existe muita gente para anunciar o medo e a morte. Essa triste atuação não cabe ao trabalhador da messe do Senhor, porque enviado por Deus, deve anunciar a alegria da ressurreição de Jesus, que restaura, dá força e salva. Em sintonia com as palavras e o agir de Jesus, todo cristão é chamado a ser trabalhador da messe do Senhor, vivendo como Jesus viveu, sendo sensível e solidário com os que sofrem. Esta é a vocação primeira do cristão e do cristianismo no mundo.
Tiago de França

Um comentário:

Unknown disse...

Muito profunda a reflexão.