“...vendo Jesus as multidões,
compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não
têm pastor” (Mt 9,36).
Jesus viu as multidões. O verbo ver precisa ser melhor vivido pelas
pessoas. Às vezes, corremos o risco de viver sem olhar para os outros, mas
apenas centrados em nós mesmos. Quem se ocupa somente consigo mesmo, com seus
próprios interesses, com suas buscas e sonhos, preocupado somente em alcançar
seus objetivos, facilmente se torna egoísta. O verbo ver nos oferta uma questão importante: Tenho enxergado as pessoas, ou sigo minha vida pensando e agindo
somente em função da minha realização e felicidade pessoais?...
No seio da comunidade cristã também
é necessário se perguntar se as pessoas estão sendo esquecidas, ou deixadas de
lado. Temos pessoas invisíveis em nossas comunidades? Ou será que somente
enxergamos aquelas que nos podem ajudar, ou satisfazer nossos interesses e
caprichos? A fé cristã é comunitária, e não permite que o cristão se comporte
ignorando os outros. Nas famílias e comunidades é preciso redimensionar o
olhar. As pessoas precisam ser enxergadas, especialmente as mais frágeis e
sofredoras. Tenho enxergado o sofrimento
dos outros, ou finjo que eles não existem?...
Jesus se compadeceu porque as
multidões estavam cansadas e abatidas.
Hoje, as multidões de brasileiros estão cansadas e abatidas, por causa da
pandemia do coronavírus e das crises econômica e política. O cansaço e
abatimento decorrem de inúmeras situações, dentre as quais podemos citar o medo
de adoecer, de passar fome e morrer; a fome que já maltrata milhões de pessoas,
muitas delas, desempregadas, ou incapazes de trabalhar; a violência doméstica
que aumenta; a ansiedade que domina por causa do medo em relação ao futuro
incerto; as constantes ameaças ao regime democrático já fragilizado; a falta de
compaixão de autoridades que se aproveitam do cenário atual para tirar
vantagens política e econômica etc. Estou
enxergando esta realidade, ou penso e ajo como se nada tivesse a ver comigo?...
O evangelista diz que as multidões
estavam cansadas e abatidas, como ovelhas
que não tem pastor. Isso significa que as multidões estavam abandonadas à
própria sorte, desamparadas. Quem consegue enxergar a realidade atual, logo
percebe que a situação de abandono e desamparo é gritante. Nas Igrejas cristãs
há uma tentação constante, que precisa ser enfrentada com coragem, reflexão,
discernimento e oração: Há o risco de os líderes religiosos se preocuparem, em
primeiro lugar, com a própria sobrevivência e com a sobrevivência de suas
instituições, em detrimento da vida sofrida do povo. Parece que foi isso que
ocorreu, recentemente, com alguns religiosos que ofereceram apoio ao presidente
da República em troca de verba pública para seus meios de comunicação. Por que esses religiosos não pediram para o
governo ter compaixão das vítimas da pandemia do coronavírus?...
Ao ver a situação das multidões
cansadas e abatidas, Jesus se dirige a seus discípulos e lhes faz a seguinte
recomendação: “A messe é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Pedi pois ao dono da messe que envie trabalhadores
para a sua colheita!” (Mt 9,37). O campo de trabalho é imenso, há muito o
que se fazer. Não se pode reclamar a falta de serviço. Há muita gente
precisando de ajuda em toda parte. Isso é uma constante na história da
humanidade. São muitos os campos de missão; muitas as periferias materiais e existenciais.
Sempre é possível fazer alguma coisa. Não se trata de abarcar o mundo, no afã
de resolver tudo, mas de estender a mão para alguém: escutar, apoiar, incentivar,
ajudar de alguma forma.
Quando Jesus recomenda aos
discípulos que peçam a Deus que envie
trabalhadores para a colheita, na verdade, ele está apontando para a
realidade. Pedir para que Deus envie trabalhadores para a sua colheita. Não se pode conceber que Deus envie
trabalhadores para que vivam ocupados somente com o seu próprio bem-estar. Isso
não é ser trabalhador, mas mercenário. O trabalhador da messe do Senhor vive em
função da messe, não em função de si mesmo. Nas Igrejas, os que se consagram ao
serviço do Senhor, consagram-se ao serviço da messe. Às vezes, tem-se a
impressão de que muitos consagrados se esquecem de que são operários da messe
do Senhor.
O trabalhador da messe do Senhor é
alguém que se identifica com Jesus e seus desígnios, e esta identificação exige
compromisso com a construção do Reino de Deus, que é amor, justiça e paz para
todos. Para isso, exige-se uma entrega total de si. O trabalhador da messe do
Senhor é alguém que vive a contemplação na ação. A santidade deste trabalhador
depende, necessariamente, de sua dedicação pastoral e de seu compromisso com o
mundo. É o que nos ensina o Papa Francisco em sua belíssima encíclica Gaudete et Exsultate, sobre o chamado à
santidade no mundo atual, nn. 25-27.
Após nomear os doze discípulos,
dando-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar doenças e
enfermidades, Jesus ordena para irem primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10,6). O trabalhador da
messe do Senhor não é chamado a julgar e condenar as ovelhas perdidas, mas
recebeu de Jesus a ordem de ir até elas para resgatá-las. Jesus praticou isso
em sua missão: Aproximou-se, acolheu, curou e deu dignidade às pessoas
consideradas perdidas. Qual tem sido o
nosso pensamento e nossa maneira de agir quando nos deparamos com as pessoas
que consideramos “perdidas”? Se as julgamos, condenamos, mandamos para o
inferno, ou agimos para que sejam mais prejudicadas ainda, então não estamos no
caminho de Jesus. E nossas Igrejas, como
tem tratado estas ovelhas?...
É preciso anunciar que o Reino dos céus está próximo (Mt 10,7).
Este Reino não é uma má notícia, nem ocasião de condenação para as ovelhas
perdidas, mas anúncio de renovação da vida em Jesus Cristo para a glória de
Deus Pai. O trabalhador da messe do Senhor é um agente da Boa notícia, não é um
propagador do medo e da morte.
No mundo, já existe muita gente para anunciar o medo e a
morte. Essa triste atuação não cabe ao trabalhador da messe do Senhor, porque
enviado por Deus, deve anunciar a alegria da ressurreição de Jesus, que
restaura, dá força e salva. Em sintonia com as palavras e o agir de Jesus, todo
cristão é chamado a ser trabalhador da messe do Senhor, vivendo como Jesus
viveu, sendo sensível e solidário com os que sofrem. Esta é a vocação primeira
do cristão e do cristianismo no mundo.
Tiago
de França
Um comentário:
Muito profunda a reflexão.
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